Orwelliano ou kafkiano: o que significam estes adjetivos e quem eram os escritores por trás deles
Existem grandes escritores que, além de nos contarem histórias inesquecíveis, conseguem sintetizar filosofias, visões ou situações de forma tão significativa que seus nomes se transformam em adjetivos.
Se algo é espantoso, infernal ou pavoroso, é dantesco — como em A Divina Comédia, o livro do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321).
Se alguém age com astúcia e perfídia para atingir seus objetivos, é maquiavélico — ou seja, ele segue os conselhos de outro italiano, o filósofo político Nicolau Maquiavel (1469-1527), no livro O Príncipe.
E um idealista, que trabalha desinteressadamente pelas causas que acredita serem justas, pode ser quixotesco — como Dom Quixote, o imortal personagem do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616).
Além destes e de muitos outros, os sobrenomes de dois importantes escritores do século 20 também se transformaram em adjetivos. Suas ideias trazem tanta ressonância para o mundo atual que essas palavras são usadas com muita frequência — e, às vezes, erroneamente.
Um deles é Franz Kafka (1883-1924), nascido na Boêmia, hoje República Tcheca. O outro é o britânico George Orwell (1903-1950). Os dois escritores forneceram um mapa, um compêndio e uma advertência para este século.
Eles previram a criação do Twitter, do Zoom e dos reality shows de TV, sem falar nos smartphones e na permanente vigilância, além da ansiedade induzida pelo Estado e da crescente sensação de impotência frente a forças dificilmente identificadas.
Por isso, um século depois da morte de Kafka e mais de 75 anos depois da publicação de 1984, de Orwell, os epônimos decorrentes dos dois autores são cada vez mais apropriados para descrever alguns dos piores aspectos dos tempos atuais.
Mas os autores e suas distopias são díspares. E, para não confundir o que é kafkiano com orwelliano, o melhor é consultar os especialistas: Carolin Duttlinger, codiretora do Centro de Investigação Kafka da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e o escritor David J. Taylor, biógrafo de Orwell.
Os epônimos
Quando dizemos “kafkiano”, estamos nos referindo a uma profunda sensação de que algo não está bem, de culpa e acusações incompreensíveis que não levam a lugar algum.
“Na ponta mais sinistra do espectro, trata-se de instituições invisíveis que rastreiam e perseguem você”, afirma Duttlinger.
“Mas também acredito que ‘kafkiano’ tem componentes mais surrealistas e ligeiramente satíricos, de humor negro: o sentido do absurdo da vida cotidiana.”
Ácido ou não, o humor de Kafka é menos óbvio para quem não lê o escritor no original, em alemão.
“Para mim, é uma lástima que as pessoas pensem que Kafka só tem a ver com pesadelos e histórias realmente obscuras, porque as partes boas são perdidas”, lamenta Duttlinger.
“Seu humor talvez seja um gosto adquirido, mas ele certamente está presente no absurdo de um homem que tenta encontrar sentido em uma situação totalmente incompreensível… isso é muito divertido.”
Já em relação a Orwell, Taylor afirma que “‘orwelliano’ pode significar qualquer coisa que você queira que signifique”.
Para ele, “Orwell é tão onipresente no nosso mundo atual que a palavra ‘orwelliano’ pode designar praticamente qualquer pessoa que tenha algum tipo de reclamação contra a autoridade”.
“O significado exato que eu daria é de um mundo ou cenário no qual qualquer tipo de espírito individual é rotineiramente suprimido por uma autoridade vigilante, que tudo vê e é tecnologicamente capacitada.”
Por isso, quando qualificamos algo como orwelliano, não nos referimos a toda a obra do escritor britânico, mas a dois livros específicos: a sátira antiutópica A Revolução dos Bichos (1945) e a apavorante distopia 1984 (1949).
Em relação a 1984, a advertência contra o totalitarismo, que impressionou seus leitores de forma tão profunda, impregnou o imaginário cultural como muito poucas obras conseguiram até hoje.
“‘Orwelliano’, aplicado ao mundo de 1984, trata da negação da verdade objetiva, da supressão das liberdades individuais pela manipulação da linguagem e do olhar tecnológico — esta espécie de ideia miltoniana de abrir uma janela para as mentes dos homens, quer eles queiram ou não”, diz Taylor.
No caso de Kafka, seu romance O Processo, publicado postumamente em 1925, contém a essência kafkiana.
O termo se tornou sinônimo das ansiedades, da sensação de alienação da era moderna e da luta de uma pessoa comum contra uma autoridade irracional e irrazoável.
Caso você tenha esquecido ou não tenha lido os romances, aqui está um rápido resumo das duas obras:
O Processo conta a história de um homem chamado Josef K. Ele vive em Praga, onde é preso e julgado por um crime desconhecido, em um sistema jurídico absurdo que parece um pesadelo.
1984 é ambientado na Oceania, com um Estado totalitário que fez lavagem cerebral da população, para que ela obedeça irracionalmente seu líder, o Grande Irmão (ou Big Brother). O romance acompanha o protagonista Winston Smith, que tenta se rebelar secretamente contra o regime opressor, que a tudo observa.
O fracasso
É claro que não devemos considerar que Winston Smith – o personagem principal de 1984 – é, de alguma forma, similar ao seu criador, George Orwell. Mas será que existe algo do próprio Orwell que pode nos ajudar a entender a visão orwelliana?
“Orwell acreditava profundamente no conceito de fracasso – no seu próprio fracasso pessoal e no fracasso de quem se atravesse a questionar o Estado e as reverências do Estado”, responde Taylor. “Por isso, todos os seus romances, incluindo os realistas da década de 1930, tratam de pessoas que fracassam.”
“Eles têm o herói que se rebela contra o sistema e, por um momento, o sistema absorve um pouco dessas rebeliões para depois o esmagar. Em 1984, Winston Smith é simplesmente submetido pelo sistema.”
“O que Orwell quer mostrar é a absoluta inutilidade de se pensar que é possível conseguir alguma coisa”, explica ele. “E acredito que, desde o princípio, o leitor sabe que a rebelião está condenada ao fracasso.”
O final do romance é particularmente deprimente, já que não existe uma grande dramatização. Smith simplesmente termina na mesma cafeteria onde começou.
“Como sempre acontece na ficção de Orwell, houve um pequeno reajuste”, explica Taylor. “Coisas aconteceram, mas você essencialmente volta mais ou menos para onde estava.”
“E, para dar este toque biográfico, ele coincide com a visão que Orwell tinha de si mesmo”, prossegue o estudioso.
“Certa vez, ele produziu um aforismo totalmente deprimente, dizendo que a vida humana, de forma geral, é uma sucessão de fracassos e que somente os muito jovens ou muito tolos acreditam no contrário. De forma que a psicologia dos Estados totalitários de Orwell, acredito eu, está intimamente relacionada com a sua própria psicologia pessoal.”
Tudo isso, mesmo com seu grande sucesso — e não apenas no campo literário.
George Orwell trabalhou na BBC, onde foi muito querido e aclamado como inovador nas suas produções. Ele pediu demissão para voltar a escrever.
No documento oficial de sua saída, seu chefe disse:
“É impossível exagerar a qualidade do seu caráter ou dos seus sucessos. Sua dignidade moral é única. Seu gosto literário e artístico é infalível. Ele sai por vontade própria, para tristeza de todo o departamento.”
Três meses depois, Orwell já havia terminado o primeiro rascunho de A Revolução dos Bichos.
O sucesso
Voltando agora para Kafka, o que haverá do escritor em Josef K., o confuso protagonista de O Processo?
A julgar por algumas das cartas que enviou à sua prometida — a escritora Felice Bauer (1887-1960) —, a visão que Kafka tinha de si próprio não era muito favorável. Ele se descrevia como “irritável, triste, taciturno, insatisfeito e doentio”.
“Um homem que — e isso irá parecer para você similar à loucura — está aprisionado por correntes invisíveis a uma literatura invisível e grita quando alguém se aproxima porque pensa que estão tocando nessas correntes.”
Estaria ele sendo duro demais consigo mesmo?
“Estas cartas são muito interessantes, mas não são evidências confiáveis”, afirma Duttlinger.
“Se você ler todas elas, verá que ele começa vendendo a si mesmo — e é, realmente, um homem muito atraente, no sentido de que ele a ouve, preocupa-se com ela e a incentiva em suas diversas atividades — até decidir que ela não é a pessoa indicada para ele”, diz.
“Mas, em vez de romper o compromisso, ele começa a pintar a si mesmo desta forma incrivelmente desfavorável.”
Kafka escreveu suas obras durante os últimos dias do império dos Habsburgo.
Ele era um corretor de seguros emaranhado em uma enorme burocracia, fazia parte de uma família relativamente próspera e tinha um pai autoritário.
“Seus pais eram incrivelmente trabalhadores”, diz Duttlinger. “Seu pai havia crescido na pobreza extrema em uma cidade da Boêmia e abriu os caminhos com sua mãe.”
“Eles se mudaram cerca de cinco ou seis vezes nos primeiros anos da vida de Kafka, até que, em Praga, eles tiveram sua própria loja, onde ambos trabalhavam seis dias por semana”, diz. “Quase nunca estavam em casa, mas este tipo de espírito de esforço é encarnado por Kafka, em grande parte, e também é observado no seu personagem, Josef K.”
Para ela, “é interessante que tenhamos falado do fracasso em relação a Orwell, pois acredito que Kafka, em certo sentido, é obcecado com a noção de sucesso”.
Mas como seria este sucesso?
“Josef K. é um jovem em ascensão”, explica ela. “Não está por cima, mas está comodamente acima da média e gosta de usar o seu poder. Ele faz os clientes esperarem na calçada, existem jogos de poder com seu chefe imediato e assim por diante.”
“Em grande parte, O Processo também é um romance sobre essa psicologia moderna, talvez masculina, de rivalidade, de ocupar seu lugar etc.”
A verdade
Agora, o momento da verdade para os especialistas: qual será a opinião deles sobre os adjetivos “kafkiano” e “orwelliano”?
“Não costumo usar nenhum dos dois”, responde Duttlinger.
Mas ela acha interessante que as pessoas façam isso. “Claramente, eles são uma boa forma de comunicar um estado de espírito ou experiência específica de forma sucinta e, neste sentido, são muito úteis.”
No caso de Orwell, Taylor indica que o adjetivo é muito usado porque “como as frases têm difusão muito ampla – temos programas de televisão sobre o Quarto 101 [de 1984] e o Big Brother –, existe uma consciência coletiva sobre ele que transcende qualquer obra que ele tenha escrito”.
“Sociedades inteiras conhecem Orwell de segunda mão e, se você mencionar seu nome, alguém com formação média sabe de quem você está falando, mesmo que não tenha lido o livro.”
Para Duttlinger, “outra razão do grande sucesso de Kafka é a incrível simplicidade do seu estilo, a grande clareza com que ele escreve”.
Este tipo de prosa direta, que transmite a mensagem da forma mais transparente, também é associada a Orwell. E as visões dos dois autores podem ser consideradas complementares.
Mas não devemos esquecer que, em um sistema kafkiano, a verdade zelosamente protegida não pode ser alcançada. E existem inúmeros obstáculos criados para impedir o acesso aos fatos.
Um personagem kafkiano pode passar a vida toda envolvido em tarefas inúteis que devem ser completadas, rumo a um objetivo indefinido. E os governos ou organizações kafkianas são comicamente tão ineptos que parecem quase fantásticos.
Já em uma sociedade orwelliana, a verdade é manipulada em nome do poder. Um personagem orwelliano é constantemente vigiado — física, social, emocional e intelectualmente.
Os regimes orwellianos são entes poderosos e invisíveis, que impõem rigorosos controles e falsificam a realidade, transformando o livre arbítrio em uma ilusão. Por isso, o líder é adorado, mesmo sendo nefasto.
O kafkiano é absurdo. O orwelliano é uma falácia.