Os 500 anos do inquérito de Lutero, que abriu o mundo ocidental para a liberdade de pensamento
Edison Veiga
Questionar a autoridade papal era crime gravíssimo na Europa daqueles tempos. Propor mudanças na tradicional estrutura da poderosa Igreja Católica consistia em se expor ao risco de um julgamento impiedoso. O religioso Jan Huss (1369-1415) foi tachado de herege e acabou queimado vivo em praça pública.
Por pouco não teve o mesmo destino o monge agostiniano germânico Martinho Lutero (1483-1546). Doutor em teologia, ele era um respeitado professor na Universidade de Wittenberg quando propôs um debate acadêmico que acabaria mudando para sempre a história do cristianismo ocidental — e, consequentemente, abrindo brechas para o direito ao livre-pensamento.
Em 31 de outubro de 1517, ele afixou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Repleto de críticas ao modo como o catolicismo vinha sendo praticado, a publicação provocou reações entre intelectuais, religiosos e autoridades da época.
Três anos mais tarde, em 15 de junho de 1520, o puxão de orelhas no monge germânico veio em forma de bula papal. Em Exsurge Domine, o papa Leão 10° (1475-1521) ameaçou Lutero de excomunhão caso não se retratasse em 70 dias. O germânico não aceitou — e ainda queimou o documento do sumo pontífice.
Em 3 de janeiro de 1521, Leão 5° excomungou Lutero. Esse contexto todo trouxe as ideias do agostiniano para o centro da chamada Dieta de Worms, uma assembleia oficial do Sacro Império Romano Germânico, com funções de órgão deliberativo, que se reuniu entre 28 de janeiro a 26 de maio de 1521, presidida pelo imperador Carlos 5° (1500-1558).
“Decidiu-se que Lutero deveria participar da dieta porque havia uma mistura política e religiosa de suas questões em um contexto de nascimento dos estados nacionais. Eram mudanças religiosas, da piedade cristã, com um sentimento protonacionalista dos estados alemães, que se sentiam explorados por Roma”, pontua a historiadora Jaquelini de Souza, professora na Universidade Regional do Cariri e pesquisadora nas Faculdades EST (antiga Escola Superior de Teologia), instituição da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. “[Do ponto de vista político] era extremamente importante que Lutero se retratasse e, portanto, quebrasse qualquer tipo de argumento de que havia um abuso econômico contra os principados alemães.”
“[A Dieta de Worms] não foi convocada única e exclusivamente para ouvir Martinho Lutero. [Mas o caso] foi incorporado na agenda da assembleia a pedido do príncipe Frederico. A convocação de Lutero foi um desdobramento de seus escritos críticos à Igreja de Roma”, contextualiza a pastora luterana Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic).
“Antes da Dieta de Worms já haviam ocorrido outros momentos de grande tensão, como a disputa de Leipzig, em 1519, que reacendeu o processo contra Lutero por parte da igreja romana”, completa ela. “A expectativa era que ao se convocar Lutero [para Worms] se conseguisse encontrar uma mediação para o conflito e os tumultos que estavam ocorrendo em território alemão.”
Chamado então para prestar contas, Lutero chegou a Worms em 16 de abril. Sob risco de ser perseguido no trajeto ou mesmo na reunião, portava um salvo-conduto expedido pelo imperador.
No dia seguinte, às 16h, há exatos 500 anos, apresentou-se à assembleia, conduzido por dois oficiais do império. Antes, ele foi advertido que só deveria se manifestar em resposta aos questionamentos, nada além disso. O presidente da sessão perguntou se ele reconhecia a autoria dos livros a ele atribuídos e se renunciava às suas heresias. Foram lidos os nomes de 25 obras.
Lutero não respondeu. Preferiu pedir mais tempo. Queria pensar numa resposta mais precisa, talvez ciente de que estava protagonizando um momento histórico. Seu pedido foi aceito e ele recebeu a ordem para retornar à assembleia no dia seguinte, 18 de abril, no mesmo horário.
As respostas de Lutero
Sobre as obras, o monge agostiniano reconheceu a autoria de todas, embora as tenha dividido em três grupos distintos. Afirmou primeiro que aquelas que eram bem-recebidas até por seus adversários não tinham de ser rejeitadas. Sobre as que criticavam os abusos do cristianismo e do papado, ressaltou que rejeitá-las seria encorajar a continuidade de tais desvios. Por fim, disse que, sobre as que atacavam indivíduos, ele se desculparia pela eventual dureza de suas palavras, mas não rejeitaria a substância delas — condicionando que poderia renegá-las caso lhe mostrassem erros baseados nas Sagradas Escrituras.
Mas as frases que entrariam para a história foram as que ele disse para responder se renunciaria às heresias. “A não ser que eu esteja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara, sou limitado pelas Escrituras que citei e minha consciência é cativa à palavra de Deus. Não posso e não irei me retratar de nada, uma vez que não é nem seguro nem correto agir contra a consciência. Esta é minha posição.”
“Ele reconheceu que as publicações eram realmente dele e se negou a revogar seus escritos pois, segundo ele, sua teologia não era incoerente com o Evangelho”, explica Bencke. “Em função disso, Carlos 5° declarou Lutero inimigo da cristandade.”
“Lutero se manteve firme em sua postura de não se retratar e sua fala acabou se tornando uma das mais belas passagens da história do cristianismo”, define Souza.
“Sua resposta foi icônica. Ao dizer que não é bom alguém agir contra a própria consciência, sua declaração marcou época. Futuramente, um dos primeiros direitos individuais passa a ser o direito de crença, de consciência”, enfatiza o teólogo e historiador Sérgio Ribeiro Santos, coordenador do curso de História na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Diante disso, o veredicto foi que Martinho Lutero deveria ser tratado como herege. Enquanto se determinava qual seria o seu destino, o monge fugiu. Seu salvo-conduto, em tese, deveria protegê-lo na viagem de volta, mas àquela altura era muito provável que ele fosse preso e punido.
Foi salvo porque tinha um protetor: o príncipe eleito da Saxônia, Frederico 3° (1483-1525), mandou capturá-lo e passou a abrigá-lo como hóspede no castelo de Wartburg. A favor, contava o bom relacionamento que o príncipe tinha com o papa.
Nesse período Lutero teria realizado a tradução da bíblia para a língua alemã — um marco fundamental na ideia de que todos, e não só uma casta privilegiada, deveriam ter acesso aos textos religiosos.
Conforme atenta o historiador Santos, esse apoio de setores aristocráticos germânicos foi o que possibilitou que o destino de Lutero não tivesse sido a fogueira como seus antecessores.”Ideias de reforma já haviam sido antes debatidas, mas ainda não havia uma adesão inclusive política para dar força a esse movimento religioso”, afirma. “Lutero, quando fez isso, teve apoio de príncipes. E a cisão desses príncipes com Roma, por motivações políticas. Isso fortalece o movimento de reforma.”
Desdobramentos
A importância histórica desse evento ocorrido cinco séculos atrás está na reorganização do cristianismo ocidental a partir de Lutero — e, consequentemente, das transformações das próprias sociedades.
“Ele [Lutero] não foi a primeira pessoa que se levantou contra o poder papal e contra os poderes imperiais [do Sacro Império Romano Germânico]. Mas, sem dúvida nenhuma, as consequências [de seu movimento] ocorreram de forma nunca antes vistas para a cristandade ocidental, porque daí de fato começa um desenrolar político, econômico e religioso”, comenta Souza.
“Nasceu uma nova divisão para a cristandade ocidental, com a necessidade de se trabalharem questões sobre liberdade religiosa, já que Lutero defendia que não era bom – nem são – ir contra a consciência. Questões sobre a ideia de liberdade de expressão, de resistência ao Estado, tudo isso será desdobramento daquilo que aconteceu em Worms”, completa a historiadora. “Claro que não podemos dizer que há um lado do mocinho e um lado do vilão.”
Se o movimento possibilitou o nascimento de uma série de outras igrejas, quebrando uma espécie de monopólio ocidental da fé, antes da Igreja Católica, o próprio catolicismo também foi obrigado a se transformar.
Foi em resposta à reforma protestante que o papa Paulo 3° (1468-1549) convocou uma assembleia, o chamado Concílio de Trento. De dezembro de 1545 a dezembro de 1563 diversos ajustes foram propostos dentro da doutrina católica para garantir uma unidade da fé e, ao mesmo tempo, reforçar a necessidade de mais disciplina eclesiástica.
“As transformações foram uma via de mão-dupla”, define Souza.
Pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros afirma que foi depois de Worms que a Igreja Católica “levou a sério um projeto de reforma”, já que, “anos antes, a necessidade de mexer nas estruturas da instituição tinha sido negligenciada pelas autoridades católicas”.
A historiadora Souza explica que Lutero não pretendia fundar uma nova religião, nem abandonar o catolicismo. “Quando ele publicou suas 95 teses, eles chamava para um debate acadêmico, queria conversar com seus pares sobre uma prática que ele considerava abusiva: seu objetivo era combater [a venda de] indulgências”, diz ela.
“Quando ele fala em reforma, ele está se referindo ao curso de teologia de sua universidade, porque ele acreditava que reformando-se a teologia, seria reformado o clero, e reformando o clero, seria reformada a piedade do povo”, prossegue a historiadora. “Ou seja, ele olhava numa perspectiva de melhoramento. Não pensava, não passava de forma alguma pela sua cabeça, em momento algum, romper com a Igreja católica. Ele buscava o melhoramento da teologia e, portanto, da piedade cristã.”
Cristianismo não católico
Mesmo que ele não pretendesse fundar uma nova igreja, o movimento acabou desencadeando para isso. Mas essa cristalização, essa institucionalização, só começaria a ocorrer uma década mais tarde. “A ideia de uma igreja luterana surgiu mais ao fim da vida de Lutero. Mas ele próprio não aceitava a ideia de uma igreja com seu nome”, afirma Santos.
Mas mais do que dar origem a um segmento cristão com cerca de 80 milhões de praticantes atualmente no mundo, esse movimento permitiu a criação de todas as igrejas cristãs não católicas do mundo ocidental.
“Obviamente que o que Lutero fez deu liberdade para qualquer um fazer”, comenta Souza. “Se o sujeito questiona o papa, ele também dá liberdade para outros o questionarem. Nesse sentido, as igrejas de hoje são herdeiras de Lutero.”
Por outro lado, ela ressalta que as identidades são muito variadas, dentro do espectro das religiões cristãs. A partir do século 16, uma sucessão de movimentos religiosos passou a ocorrer em diversas partes do Ocidente, com a criação de diversas denominações, com suas próprias teologias e suas próprias maneiras de viver a religiosidade.
“Lutero teve papel importante no processo de estruturação do protestantismo”, frisa a pastora Bencke. “No entanto, não compreendo que todas as igrejas protestantes sejam herdeiras do movimento iniciado por ele. O protestantismo já nasceu plural.”
A historiadora Souza explica que, ao olhar para o cenário evangélico do Brasil de hoje, a divisão clássica consiste em encarar parte das igrejas como de raízes de migração e missionária, e parte como pentecostalistas.
No primeiro grupo estão o luteranismo — trazido ao Brasil por meio dos imigrantes alemães — e igrejas como a presbiteriana e a metodista — fundadas por missionários estrangeiros. Já as igrejas pentecostais podem ser classificadas em ondas. “Na primeira, a grande ênfase era o falar em línguas [manifestação bíblica do Espírito Santo]. Na segunda, as curas [milagrosas]. E a terceira onda vem com a teologia da prosperidade”, contextualiza a historiadora Souza.
“Não tem nada a ver com Lutero essa teologia da prosperidade. Ele combateria isso firmemente”, comenta ela. “No evangelicalismo do Brasil [contemporâneo], muitos acusam luteranos de serem liberais, não no sentido econômico ou da teologia, mas do sentido de serem ‘frouxos’, de não serem tão rígidos, em questões morais. [O luterano] trata essas questões de forma mais leve.”
Se 500 anos atrás foi um racha com a Igreja Católica que deu origem ao luteranismo, contudo, hoje há uma amistosidade entre as denominações. “Ao longo dos séculos, as trocas de farpas entre as duas confissões cristãs foram recíprocas”, conta Medeiros. “A reaproximação começou a acontecer quando ambas as partes optaram por um processo de purificação da memória, focando mais nos pontos que as unem do que naqueles que as separam.”
“Hoje em dia, evita-se a tendência de encontrar o culpado pela separação e prefere-se atribuir às duas partes a responsabilidade pelo ocorrido”, complementa a vaticanista. “A reaproximação oficial, sem contar todo o processo de diálogo que começou a acontecer entre alguns grupos ecumênicos europeus, começou em 1967, quando se criou uma comissão bilateral para discutir as controvérsias doutrinais e teológicas que impediam essa reaproximação.”
Vários encontros foram promovidos nas décadas seguintes até que, em 1993, as duas instituições redigiram uma declaração conjunta, ratificada seis anos mais tarde. “Foi um marco porque, além de ser um acordo oficial de comunhão, superou uma das questões que mais contribuíram com o cisma do passado. Para se ter uma ideia, afirmou-se, por meio do acordo, que não fazia mais sentido hoje as condenações recíprocas feitas no passado”, diz Medeiros. “Foi uma virada de página mesmo. O diálogo entre católicos e luteranos já é visto como um dos pontos que mais têm gerado resultado dentro do movimento ecumênico, para se ter uma ideia.”
Ela recorda a visita que o hoje papa emérito Bento 16 realizou à Alemanha em 2011, ainda durante seu pontificado. “Ele disse algo que sinaliza bem em que pé está esse diálogo. Ao comentar as intenções de Lutero no século 16, [Bento 16] acabou revolucionando o magistério papal em relação à questão ao afirmar que, por trás das inquietações do reformador alemão estava uma profunda experiência com a misericórdia de Deus”, pontua a vaticanista. “Não dá para imaginar um papa no século 18 ou 19 fazendo um elogio desses à pessoa que, durante anos, foi vista como pivô do cisma ocidental.”