Um debate sobre a questão migratória na Suprema Corte dos Estados Unidos acabou trazendo à tona uma antiga ferida: os campos de concentração criados para deter pessoas de origem japonesa em território americano durante a Segunda Guerra Mundial.
Na terça-feira, a Corte deu uma importante vitória ao presidente Donald Trump ao validar sua política conhecida como “travel ban”, que restringe a entrada de migrantes de determinados países nos EUA.
Por 5 votos a 4, o tribunal autorizou Trump a aplicar seu veto a viajantes de cinco países de maioria muçulmana – Irã, Líbia, Somália, Síria e Iêmen – e da Coreia do Norte, decidindo que o Executivo tem autoridade para tomar decisões migratórias com base em segurança nacional.
Mas, durante o debate na mais alta instância do Judiciário americano, chamaram atenção as declarações da juíza de inclinação liberal Sonia Sotomayor, voto vencido ao defender o veto à política de “travel ban”.
“Os EUA são uma nação construída sobre a promessa de liberdade religiosa”, e a Corte fracassa em “defender esse princípio fundamental” ao permitir restrições à entrada de populações majoritariamente muçulmanas, disse Sotomayor durante a sessão.
A juíza comparou a decisão desta terça a outro momento histórico em que o tribunal deu autoridade máxima para que o Poder Executivo impusesse uma “política de animosidade perante um grupo desfavorecido”.
Ela se referia ao caso Korematsu x Estados Unidos.
Campos de concentração
Após o ataque japonês à base americana de Pearl Harbor, em dezembro de 1941, o então presidente democrata Franklin D. Roosevelt assinou uma ordem executiva autorizando o governo federal a prender e confinar “inimigos estrangeiros” que vivessem em áreas próximas a instalações militares.
Na prática, isso se traduziu na prisão, ao longo dos meses seguintes, de aproximadamente 120 mil nipo-americanos e imigrantes japoneses em dez campos de detenção no Oeste dos EUA, sob o argumento de que eles poderiam ser “simpatizantes do inimigo” e era preciso impedi-los de “espionar e sabotar” a administração americana.
“Assim como na Alemanha nazista, nós fomos colocados em campos de concentração”, disse à Reuters em 2017 a nipo-americana Joyce Nakamura Okazaki, que tinha sete anos quando sua família foi forçada a deixar sua casa, em Los Angeles, para morar em um campo no deserto californiano.
Okazaki destaca que nenhum detento foi torturado ou preso. Mas “ficávamos sob constante ameaça se chegássemos perto das cercas de arame farpado”, relatou.
Resistência e processo
Em 1942, um jovem nipo-americano de 23 anos chamado Fred Korematsu se recusou a ser levado a esses campos. A recusa o levou a ser preso e condenado por desobedecer uma ordem governamental. Seu recurso judicial acabou chegando à Suprema Corte, no chamado caso Korematsu x Estados Unidos.
Na ocasião, em 1944, a Suprema Corte americana acabou decidindo contra Korematsu, alegando que o governo tinha justificativas de segurança nacional para impor os encarceramentos em massa.
“Sob condições de guerra, (em que) nossas costas são ameaçadas por forças hostis, o poder de proteção deve ser proporcional ao perigo”, escreveu na decisão o juiz Hugo L. Black.
Segundo o Arquivo Nacional dos EUA, embora muitos prisioneiros tenham sido libertados desses campos após audiências em que comprovaram não representarem risco à segurança nacional, alguns permaneceram detidos até mesmo após o fim da guerra, por supostamente terem simpatia pelo Eixo (coalizão liderada por Alemanha, Itália e Japão no combate aos Aliados).
Com o passar do tempo, e com a evolução do debate sobre direitos civis nos EUA, a decisão da Suprema Corte contra Korematsu acabou sendo considerada por alguns juristas e acadêmicos americanos como uma das “piores da história” do tribunal.
Em 1982, uma comissão do Congresso americano avaliou a política de encarceramento como uma “grave injustiça” derivada de “preconceito racial, histeria de guerra e fracasso de liderança política”, segundo reportagem do New York Times.
Um tribunal distrital invalidou a condenação de Korematsu em 1984, mas a decisão da Suprema Corte permaneceu vigente – até a última terça-feira.
Caso derrubado, 74 anos depois
De volta ao julgamento do “travel ban” de Trump, a juíza Sotomayor afirmou que, assim como na época do caso Korematsu x Estados Unidos, “o governo americano evocou uma ameaça de segurança nacional para justificar uma política restritiva de grandes proporções (…) enraizada em perigosos estereótipos” contra muçulmanos.
“Ao aceitar cegamente a política (de veto a migrantes), a Corte usa a mesma lógica perigosa (usada) sob (o caso) Korematsu”, declarou Sotomayor.
Depois da fala da juíza, o presidente da Suprema Corte, John G. Roberts Jr., aproveitou a ocasião para indeferir, 74 anos depois, o julgamento contrário a Korematsu.
“A referência dá a oportunidade para esta Corte de expressar o que já é óbvio: (o caso) Korematsu foi devidido de forma gravemente errada e (a decisão) não condiz com a Constituição”, decidiu Roberts.
No entanto, o presidente da Corte – que votou em favor de Trump no “travel ban” – rejeitou a comparação entre o caso de 1944 e a discussão atual sobre migração.
“Qualquer que seja a vantagem retórica (que Sotomayor) pode ver nisso, Korematsu não tem nada a ver com este caso”, declarou o juiz.
Mas alguns ativistas e acadêmicos também têm traçado possíveis paralelos entre os dois momentos na história americana.
“No caso Korematsu, a Corte presumiu que as pessoas eram perigosas por terem ascendência japonesa. Hoje, é porque elas vêm de determinados países”, disse ao Washington Post o diretor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia em Berkeley, Erwin Chemerinsky.
A ironia é que Fred Korematsu tenha recebido seu desagravo justamente quando a Corte Suprema concretizou seu maior medo – o de rejeitar um grupo racial “porque ele se parece com o inimigo” -, disse, também ao Washington Post, Karen Korematsu, filha de Fred.