Os livros radicais que estão ‘reescrevendo’ o sexo

Clare Thorp

Mulher de meia-idade com sorriso no rosto enquanto lê livro sentada na poltrona
Nova onda de livros de ficção e não ficção de autoras mulheres explora o desejo feminino

Logo na primeira linha do romance de estreia da escritora americana Lillian Fishman, a narradora nos conta um segredo: “Eu tinha centenas de nudes no meu celular, mas nunca havia mandado para ninguém”.

Eve, a personagem narradora do livro Acts of Service (“Atos de Serviço”, em tradução livre – ainda não lançado no Brasil) é barista, tem pouco mais de 20 anos de idade e mora no Brooklyn, em Nova York. Ela tem uma namorada chamada Romi – “a pessoa mais nobre que já conheci” – e passa muito tempo analisando o que significa ser uma boa pessoa.

O leitor percebe rapidamente que Eve também tem desejos não realizados.

“Meu corpo estava clamando para que eu realizasse meu propósito de vida”, afirma ela. “Eu estava destinada ao sexo – provavelmente, com uma imensa quantidade de pessoas.”

Até que, uma noite, sentindo-se “excepcionalmente bela e isolada”, Eve posta suas fotos íntimas online. Em resposta, ela conhece uma mulher, Olivia, que apresenta Eve a Nathan, seu namorado – e patrão – rico, carismático e, muitas vezes, misógino.

Assim começa um jogo de poder e trama sexual entre os três personagens, explorada em intensos detalhes ao longo das 200 páginas seguintes.

Estudos vêm mostrando que as pessoas não estão fazendo muito sexo no momento. Aparentemente, estamos atravessando uma “recessão sexual”, especialmente entre os jovens. Diversas causas vêm sendo indicadas, desde a crise de moradia e a pandemia até um retorno à cultura de “ficar”, comum na década passada.

Mas existe um setor onde o sexo com certeza está em alta: a literatura e, particularmente, os livros escritos por mulheres.

Uma nova onda de livros de ficção e não ficção de autoras mulheres explora as complicadas ramificações do desejo feminino. Neles, o sexo não está implícito nem se resume a um breve encontro. Ele é direto e central.

Retrato de Lillian Fishman, que aparece sentada e com olhar sério em direção à câmera, em ambiente interno
O primeiro romance de Lillian Fishman, ‘Acts of Service’, explora abertamente o desejo feminino

Fishman é uma dessas autoras. Com 28 anos de idade, ela agora vê seu romance tornar-se uma das estreias mais comentadas do ano. O jornal britânico The Guardian classificou Acts of Service como uma “obra-prima do sexo”.

O livro leva o sexo a sério, questionando seu propósito e o que significa satisfazer os seus desejos – mesmo quando eles não são compatíveis com a forma em que você aprendeu a viver sua vida.

“Muito mais do que sobre o desejo sexual, é um livro sobre como nos conciliamos com as expectativas convencionais”, afirma Fishman. “A questão principal do livro é que a atração e a repulsa da heterossexualidade vêm do mesmo lugar. Eu quis encontrar uma abordagem para o problema em um romance que realmente o dramatizasse, oferecendo uma sensação visceral.”

Fishman pretendia escrever uma história homossexual, explorando o sentimento de desapontar a você e à sua comunidade ao buscar desejos heterossexuais em uma época em que a identidade e a expressão sexual sofrem pressões políticas.

“Sinto que, na geração antes da minha, mas também na minha geração, existe uma crença real na sexualidade humana e na importância de descobri-la e meio que apostar sua vida nela. E, quando isso acontece no mundo, a comunidade em torno dessa identidade é fundamental”, afirma Fishman.

Mas o livro traz também uma reflexão mais ampla – sobre o que significa descobrir que você gosta de algo que as pessoas esperam que você rejeite.

Para Fishman, “o sexo é o tema que eu usei [para explorar essa questão], mas o mesmo livro poderia ser escrito sobre o desejo de ser rico”.

Na relação descrita pelo livro, Eve se entrega ao prazer e fica aliviada em saber que não precisa ser uma “garota adorável”. Mas – ao se preocupar com o que as suas escolhas dizem sobre ela – ela luta para conciliar seus desejos na cama com os valores feministas e anticapitalistas que ela tenta adotar na sua vida.

“Passei muito tempo me convencendo a abandonar as coisas de que eu gostava, para que pudesse ser um tipo de pessoa diferente, uma pessoa melhor”, afirma Eve.

No livro, Eve segue seus desejos e não sua bússola moral – e precisa lidar com isso, principalmente quando Nathan é acusado de abuso no ambiente de trabalho. Para Eve, o sexo está “esperando apenas me encontrar para revelar a verdade”.

Embora sejam livros muito diferentes, muitas das cenas de sexo ardente de Acts of Service têm sido comparadas com Cinquenta Tons de Cinza. Fishman não se preocupa muito com isso.

“Eu queria que o livro fosse filosófico, mas também queria que ele arrebatasse as pessoas e que elas ficassem entusiasmadas para ler. Por isso, para mim é um sucesso ver as pessoas fazendo essas comparações.”

Tudo ou nada

Enquanto o livro de Fishman é sobre uma mulher que acredita que a finalidade do seu corpo é ter sexo, outro livro recente fala sobre a opção oposta: o celibato.

O livro de memórias da diretora de cinema Emma Forrest, Busy Being Free (“Ocupada sendo livre”, em tradução livre – ainda não lançado no Brasil), cobre os cinco anos decorridos após o fim do seu casamento, quando ela trocou o sexo pela solidão. O período coincide com o mandato presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos.

“Meu processo de divórcio estava começando mais ou menos na época em que Trump foi eleito presidente”, ela conta. “Eu havia acabado de completar 40 anos. O pior homem do mundo era agora o homem mais poderoso do mundo – e o homem mais poderoso do mundo também expressava com frequência seu horror visceral às mulheres de meia idade. Por isso, tomei a decisão consciente: ‘vou me abster completamente enquanto durar o seu mandato’.”

Emma Forrest em foto olhando para o lado
Período de celibato de Emma Forrest coincidiu com presidência de Donald Trump

No livro, ela explica sua decisão. “Na idade em que se considera que o valor sexual de uma mulher é decrescente, de forma que elas precisam se descabelar, física e emocionalmente, para continuar sendo escaladas para o time, eu parei de jogar.”

Forrest já publicou quatro romances e um livro de memórias anterior, Your Voice in My Head (“Sua voz na minha cabeça”, em tradução livre), além de dirigir um filme, Untogether (Sem Rumo, no Brasil). Ela passou a vida voltada às relações amorosas.

“Fui sexualmente ativa desde os 16 anos de idade. E era totalmente dedicada aos romances, para o bem ou para o mal, desde aquela idade. Eu sabia que isso seria algo novo”, ela conta.

Não deveria ser assim, mas parece algo inquietante ler sobre a solidão não apenas como uma escolha legítima, mas como uma ótima opção, já que a narrativa padrão para a mulher solteira, muitas vezes, é que algo está faltando para ela.

Forrest conta que, pouco tempo depois da sua separação, amigas com boas intenções tentaram animá-la, mas ela não estava interessada. No livro, outra amiga aparece preocupada com a possibilidade de que Forrest esteja perdendo uma parte de si própria ao decidir ficar sozinha. Sua mãe também se preocupa com a sua decisão.

Mas Forrest faz a solidão parecer tão sedutora quanto qualquer caso de amor. “O celibato não foi apenas suportável – ele foi épico, um lugar dentro de mim mesma onde uma mulher pode correr até tarde da noite com fones de ouvido sem precisar ter medo”, escreveu ela.

Não fazer sexo acabou causando “dependência”, segundo ela. “Quanto mais tempo eu ficava sem sexo, mais eu sentia que nunca precisaria fazer aquilo de novo. De muitas formas, foi a melhor época da minha vida.”

Para um livro sobre celibato, ele está repleto de energia sexual. “Esse clichê de que uma mulher chegando aos 40 anos de idade está atingindo seu auge sexual, acho que é verdade. Para mim, com certeza foi”, afirma ela.

“Então, eu tive essa onda de sensações sem nenhum lugar para colocá-la. Eu a guardei e ela simplesmente se transformou em outras coisas. Ficou mais fácil trabalhar, mais fácil tomar decisões e mais fácil definir o que realmente me interessa, nos homens, no amor e no sexo. E o que me interessava em mim mesma, quais eram os meus valores”, segundo Forrest.

A abstinência de Forrest, aliada ao lockdown da pandemia, também abriu espaço para que ela refletisse sobre seus relacionamentos e experiências sexuais do passado, desde as que ela procurou até as que ela nunca quis.

“Ser mulher é um equilíbrio entre o quanto queremos o sexo com alguém específico e o quanto nosso maior medo é o sexo com um estranho, contra a nossa vontade”, escreve ela.

Ela analisa como os homens eram “o smartphone no qual eu me perdia”, quantas das suas decisões – roupas, empregos, casas – foram ditadas por eles e quantas vezes ela confundiu ser desejada com sentir desejo.

“O cenário padrão para as mulheres, na maior parte do tempo e talvez até para sempre, é pensar que você deve reagir a alguém porque ele a quer, quase que por educação”, afirma ela. Mas o celibato oferece “um espaço para registrar os seus próprios desejos, sem absorver todas as vibrações do ambiente que pertencem a outras pessoas”.

Quando ela finalmente começa a sair e retomar a atividade sexual, mais para o final do livro, tudo é diferente. Forrest é capaz de expressar seu desejo de forma alta e clara e descobre o “poder de criar encontros sexuais exatamente da forma como eles eram nas minhas fantasias”.

Entre os lençóis

Na literatura contemporânea, as mulheres estão explorando seus desejos.

No comentado livro de estreia de Julia May Jonas, Vladimir, um professor universitário fica sexualmente obcecado por uma jovem escritora depois que o marido dela se envolve em um escândalo sexual.

Já Good Girl (“Boa menina”, em tradução livre), de Anna Fitzpatrick, descrito como “a secretária encontra a atrevida”, conta a história de uma mulher que luta para conciliar seus ideais feministas com sua tendência ao masoquismo.

Milk Teeth (“Dentes de leite”, em tradução livre), de Jessica Andrews, fala sobre uma jovem que tenta descobrir quem ela realmente é – no amor, no sexo e na vida, enquanto a coleção de contos Cat Brushing (“Penteando o gato”, em tradução livre), da autora Jane Campbell – estreante aos 80 anos de idade – mostra a vida sensual de 13 mulheres mais idosas.

Por fim, C. J. Hauser põe fim ao seu compromisso e percebe que passou anos vivendo uma vida que era esperada para ela e não a que ela realmente desejava, na sua coleção de ensaios autobiográficos The Crane Wife (“A esposa garça”, em tradução livre): “Até hoje, ouço as palavras com vergonha. Sedenta. Necessitada. As piores coisas que uma mulher pode ser.”

É um tema que fascina a escritora americana Deesha Philyaw, autora do livro The Secret Lives of Church Ladies (“A vida secreta das senhoras da igreja”, em tradução livre – sem edição no Brasil), uma coleção de contos sobre os desejos e apetites ocultos das mulheres negras do sul dos Estados Unidos.

“Eu não pretendia conscientemente escrever sobre sexo, mas acabei escrevendo sobre mulheres insatisfeitas”, conta Philyaw. Ela afirma que reconhece essa sensação, embora tenha feito “tudo certo e na ordem certa: eu me casei, com um homem, antes de ter filhos. E ainda era profundamente infeliz, profundamente insatisfeita. Eu tinha muito interesse na questão de satisfação e desejo, desconsiderando todas as obrigações. O que sobra? O que é possível?”

Deesha Philyaw sorrindo entre dois muros
Deesha Philyaw escreveu sobre as ligações entre a sexualidade e o cristianismo em ‘The Secret Lives of Church Ladies’

Criada na Flórida, Philyaw ficou fascinada pelas mulheres negras à sua volta.

“Eu fiquei muito curiosa sobre elas como seres sexuais, enquanto tentava entender e conciliar os ensinamentos da igreja, que combatiam tanto o prazer e reforçavam muito a vergonha, o medo e a culpa”, relembra ela.

E, na idade adulta, ela ainda pensava naquelas mulheres. Imaginar seus desejos secretos e suas vidas internas inspirou as histórias do seu livro, que ganhou o prêmio PEN/Faulkner de ficção de 2021 e está sendo adaptado para uma minissérie da HBO.

Para Philyaw, era importante posicionar o sexo no campo do prazer. “Eu queria desafiar a ideia de que o sexo e a sexualidade são sempre algo tenso, que precisamos atuar como seres sexuais em um ambiente de medo, vergonha ou culpa”, explica ela.

“E se as primeiras coisas que aprendêssemos sobre o nosso corpo fossem que ele é bom, que nos pertence e que devemos priorizar o nosso próprio prazer? E se fôssemos ensinadas a priorizar a nossa própria satisfação em vez de servir e agradar os outros?”, questiona Philyaw.

Seus personagens não são criados dessa forma, mas estão lutando para libertar-se e seguir os seus desejos. “Os resultados são complexos e conturbados”, afirma ela.

The Secret Lives of Church Ladies conta experiências muito diferentes de Acts of Service,Busy Being Free e de outros livros recentes que exploram a sexualidade feminina. Mas, embora todos esses livros detalhem experiências específicas, existe uma linha comum: mulheres tentando descobrir o que elas realmente querem, separando seus desejos verdadeiros do que é esperado delas.

Desejo proibido

Tudo isso chega em um momento em que o assunto se torna cada vez mais inquietante. Nos últimos anos, a eleição de Trump, o movimento #MeToo, o aumento da pornografia de vingança e a revogação do caso Roe x Wade contribuíram para uma sensação de ansiedade com relação ao sexo.

Diversos livros recentes de não ficção – incluindo Bad Sex (“Sexo ruim”, em tradução livre), de Nona Willis Aronowitz, Rethinking Sex: A Provocation (“Repensando o sexo: uma provocação”), de Christine Emba, e Want Me (“Deseje-me”), de Tracy Clark-Flory – examinam o que a liberação sexual realmente representa para mulheres que vivem em uma sociedade patriarcal e misógina.

Expressar e realizar o desejo parece muito mais complicado do que antes. E “o que dificulta ainda mais é que um lado sempre ficará para trás, não importa o que você faça”, afirma Lillian Fishman.

“De um lado, se você for minimamente feminista, você irá querer acreditar, expressar e manifestar um tipo real de liberdade sexual. E, ao mesmo tempo, existe também essa crença profunda no amor e na família, que estas são as realizações da vida que o sexo casual nunca irá satisfazer. É certamente uma armadilha em qualquer sentido. E acho que todas nós estamos cientes disso”, segundo ela.

Mas agora, como sempre, a palavra escrita continua sendo uma forma para as mulheres explorarem as complicações do livre desejo – como fizeram escritoras como Anaïs Nin, Erica Jong, Anne Rice, Catherine Millet, Mary Gaitskill e outras.

Fishman considera que o sexo na literatura é uma forma de comunicação – “uma extensão das conversas entre as personagens, que expressam algo que elas [as autoras] não podem expressar verbalmente ou que têm muito medo de fazê-lo”.

Para ela, a irlandesa Sally Rooney é a mestra desta arte. “Um romance pode fazer coisas tão gratificantes e acho que ela faz isso maravilhosamente.” Mas ela também acredita que as autoras contemporâneas, muitas vezes, são mais reservadas sobre o sexo do que as escritoras do século 20.

“Existem escritoras de meados do século passado que realmente me serviram de formação em termos de até onde você pode ir, escrevendo sobre sexo explícito, como Mary McCarthy – existem alguns trechos incríveis sobre sexo em [seu livro] O Grupo”, afirma Fishman.

Eve Babitz (1943-2021) é outra inspiração entre as escritoras – a própria narradora de Acts of Service recebeu o seu nome. E Emma Forrest é outra grande admiradora daquela escritora cult de Los Angeles, nos Estados Unidos, mais conhecida por seus escritos sobre a vida naquela cidade nos anos 1960 e 70.

“O que adoro em Eve Babitz é que ela enxerga o sexo como uma forma de arte – que sexo muito bom é arte. Existe um fervor quase religioso por ela”, afirma Forrest.

Para Deesha Philyaw, os melhores textos sobre sexo “apresentam mulheres que não se arrependem de abraçar os seus desejos e buscar prazer, mesmo à custa de outras pessoas. O livro de Toni Morrison, Sula, sempre será o padrão-ouro para mim neste sentido.”

Para saber por que o sexo continua impressionando os leitores, ela indica o escritor Garth Greenwell, que editou uma coleção de contos eróticos em 2021, chamada Kink, e é reconhecido como um dos melhores escritores contemporâneos sobre sexo. Greenwell escreveu no jornal The Guardian: “o sexo é uma espécie de cadinho da condição humana, de forma que a questão não é tanto por que alguém iria escrever sobre sexo, mas sim por que alguém escreveria sobre qualquer outra coisa”.

E, se o sexo é uma forma de explorar as grandes questões da humanidade e questionar nossa cultura, ele pode ser também bastante divertido para os escritores. “Quanto mais livres, subversivos e sem remorsos eram [meus personagens], mais eu me divertia escrevendo sobre eles”, afirma Philyaw.

Então podemos esperar que a literatura mantenha sua libido? Philyaw certamente espera que sim. Para ela, “existe muito mais para explorar”.

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