ROKESHIA RENNÉ ASHLEI, no The Conversation
TRADUÇÃO: MAURÍCIO BÚRIGO
Em BLACK EFFECT, uma faixa do álbum colaborativo de Beyoncé e Jay-Z EVERYTHING IS LOVE, de 2018, Beyoncé descreve a forma feminina negra por excelência:
Stunt with your curls, your lips, Sarah Baartman hips
Gotta hop into my jeans like I hop into my whip, yeah
[Arrase com seus cachos, seus lábios, quadris da Sarah Baartman
Tenho de me enfiar nos jeans como me enfio no meu carrão]
A celebração da forma física de Sarah Baartman marca uma reviravolta em sua imagem histórica.
Saartjie “Sarah” Baartman foi uma mulher africana que, no princípio do século 19 se tornou uma espécie de atração internacional de objetificação. Desfilavam com ela por toda a Europa, onde espectadores faziam chacota do seu bumbum avantajado.
Hoje, o corpo de Baartman pode ser vantajoso nas redes sociais, onde mulheres negras têm a oportunidade de produzir conteúdo que seja social e culturalmente relevante para si mesma e seu público –e onde as usuárias conseguem fazer dinheiro com suas postagens
Com celebridades como Beyoncé reconhecendo as contribuições de Baartman ao corpo feminino negro ideal –com os traseiros curvilíneos de mulheres negras louvados na TV e celebrados nas mídias sociais–, eu quis entender como este ideal é visto pelas próprias pessoas sobre as quais ele mais diretamente tem efeito: as mulheres negras.
Entrevistei então 30 mulheres negras de várias cidades na África do Sul e no meio-atlântico dos EUA e lhes perguntei sobre Baartman. Sua imagem representaria um passado aviltante ou uma imagem de resiliência? Elas se orgulhavam de ter uma bunda semelhante ou se envergonhavam disso?
Baartman, uma mulher khoisan da África do Sul, deixou sua terra natal no princípio dos anos 1800 para a Europa; não está claro se foi por vontade própria ou se foi forçada a fazê-lo. Empresários de circo exibiam-na por toda a Europa, onde, num embaraçoso e desumano espetáculo, ela era forçada a cantar e dançar diante de multidões de espectadores brancos.
Frequentemente nua nestas exibições, Baartman era às vezes suspensa numa jaula no palco enquanto era cutucada, espetada e apalpada. Seu corpo era caracterizado como grotesco, lascivo e obsceno por causa da bunda protuberante, devido a uma condição chamada esteatopigia, que ocorre naturalmente em pessoas das partes áridas do Sul da África. Ela também tinha os pequenos lábios da vulva hipertrofiados, um traço físico referido de maneira depreciativa como “Hottentot apron” (“avental” hotentote).
Ambos os traços se tornaram simbólicos de diferença racial, e muitas outras mulheres dessa parte da África foram traficadas à Europa para entretenimento do branco. Já que divergiam tão drasticamente das ideias dominantes de beleza feminina branca, as feições de Baartman foram exotizadas. Seu corpo voluptuoso e curvilíneo –zombado e humilhado no Ocidente– era também descrito em anúncios como o “mais exato e perfeito espécime da sua raça”.
Claro que os corpos das mulheres negras variam; nenhum tipo monolítico –nem ideal– existe. No entanto, há um forte legado do ideal curvilíneo, muito mais que em outras raças. Ele persiste até o dia de hoje.
Nas minhas entrevistas, as mulheres negras revelaram como se sentiam a respeito da história de Baartman, como a comparavam à imagem do seu próprio corpo e o que o seu legado representa. Uma participante norte-americana, Ashley, parecia reconhecer o quão arraigado tinha se tornado o ideal de Baartman.
“[Baartman] foi usada para disseminar estereótipos,” disse. “Ela estabeleceu a tendência de as mulheres negras terem estas formas e… agora esses estereótipos estão sobrevivendo na cultura pop.”
As mulheres negras estão tomando o controle da sua objetificação e ao mesmo tempo protestando contra os ideais da beleza branca convencional, apropriando-se da zombaria em torno de Baartman e ressignificando-a como fonte de orgulho e empoderamento
Mieke, uma mulher sul-africana, exprimiu que se sentia orgulhosa das suas proporções e da maneira como estão associadas a Baartman, dizendo: “Tenho orgulho do meu corpo por causa da semelhança que percebo com o dela.”
Hoje, o corpo de Baartman pode ser vantajoso, em especial nas redes sociais, onde mulheres negras têm a oportunidade de produzir conteúdo que seja social e culturalmente relevante para si mesma e seu público –e onde as usuárias conseguem fazer dinheiro a partir de suas postagens.
Em várias plataformas, mulheres utilizam sua aparência para obter anúncios pagos ou receber presentes, serviços ou mercadoria de graça de diversas empresas de beleza e vestuário. É também mais provável que conquistem mais seguidores –e talvez atraiam mais pretendentes ricos, a depender de suas ambições– quando se aproximam do ideal contemporâneo de Baartman.
Quer dizer, as mulheres negras estão tomando o controle da sua objetificação e comoditização para ganhar dinheiro. E ao mesmo tempo estão protestando contra os ideais da beleza branca convencional, apropriando-se da exploração e da zombaria em torno de Baartman e ressignificando-a como uma fonte de orgulho e empoderamento em lugares como #BlackTwitter, Instagram e OnlyFans.
Por outro lado, não se pode negar que a imagem de Baartman está enraizada num legado intrínseco à escravidão, à submissão involuntária e ao colonialismo. O olhar estupefato do branco que fetichizava o corpo de Baartman como exótico e abertamente sexual era o mesmo que propagava o estereótipo de que as mulheres negras eram promíscuas, lascivas e hipersexualizadas.
Enquanto Baartman não podia ficar com o dinheiro que as pessoas pagavam para comê-la com os olhos, as mulheres negras de hoje podem lutar por seu tipo de corpo e fazer dinheiro a partir dele. Outrora sujeito à zombaria de um insidioso olhar de espanto branco, o físico de Baartman agora é lucrativo –desde que estas mulheres se sintam à vontade em serem objetificadas.
Mas vender este tipo de corpo é sempre uma forma de empoderamento? Alguém que já não fosse explorada o faria? Isto talvez explique porque as mulheres negras hoje estão em conflito quando pensam sobre Baartman.
Lesedi, da África do Sul, ressaltou esta tensão. “Acho que você encontra, sim, garotas como eu que não têm orgulho do que veem quando se olham no espelho e que sentem só vontade de… ‘Eu preciso diminuir isso’”, disse ela. Porém, acrescentou: “Você encontra outras garotas que ficam simplesmente tão felizes com isso que rebolam… Eu acho que Sarah Baartman tem, sem dúvida, uma influência, mas tanto pode ser positivo como negativo você se sentir orgulhosa de ter uma bunda.”
Rokeshia Renné Ashley é professora Assistente de Comunicação da Florida International University