Os sentidos do cangaço

Lampião e Maria Bonita foram mortos há 80 anos, entenda por que a memória do cangaço continua tão viva.

Meu rifle atire cantando
Num compasso assustador
Faz gosto brigar comigo
Porque sou bom cantador
Enquanto o rifle trabalha
Minha voz longe se espalha
Zombando do próprio horror

Tive também meus amores
Cultivei minha paixão
Amei uma flor mimosa
Filha do meu sertão
Sonhei de gozar a vida
Junto a uma prenda querida
A quem dei meu coração

Versos atribuidos ao próprio Lampião

Lampião e Maria Bonita morreram há 80 anos, por que sua memória continua tão viva?

Há exatos 80 anos, morria Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, e Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita. Seu bando de temidos cangaceiros estava na fazenda Angicos, considerada por Lampião como um de seus esconderijos mais seguros, quando durante uma noite chuvosa, em 27 julho de 1938, a Volante, polícia especializada em combater o cangaço, aproximou-se furtivamente do local.

Foi apenas na manhã seguinte que um dos cangaceiros notou algo fora do comum e soou o alarme. Era tarde demais! Por vinte minutos, a força militar do Estado disparou suas metralhadoras portáteis e Lampião foi um dos primeiros a cair.

Desorientados pela súbita morte de seu capitão, os cangaceiros ofereceram pouca resistência. Maria Bonita, Quinta-Feira e Mergulhão foram degolados ainda vivos. Dos 34 cangaceiros do bando, 11 morreram no ataque.

Lampião não era uma alma pura, mas não era uma alma pequena e vulgar, era uma alma grande.

Ariano Suassuna

Lampião e Maria Bonita foram as personagens mais famosas do fenômeno do Cangaço, ambos eram tidos como figuras heróicas e símbolos de resistência à violência do Estado e dos grandes fazendeiros. No entanto, na visão de alguns, são caracterizados como assassinos sanguinários.

Não há como negar, porém, que os cangaceiros não foram bandidos comuns. Enquanto a miséria descoloria o Sertão, eles andavam orgulhosos, adornados com cores vibrantes e símbolos de proteção.

Lustrosos, cheios de brilhos de ouro e prata, lenço de seda no pescoço, bornal adornado com flores bordadas, bandoleira cuidadosamente coberta com moedas e metais preciosos, esses homens e mulheres exibiam em suas roupas de couro uma infinidade de tecidos coloridos. Na secura da vida nordestina, o Cangaceiro era uma figura grandiosa, exótica, quase alienígena.

Cangaceiro não vive só de briga. Lampião sabia tocar uma gaita de oito baixos. E seus homens gostavam de dançar. Havia preferências pelos enfeites de ouro, muitos levavam moedas esterlinas no chapéu. Ah, era bonito. E o perfume, então? Todos usavam. E não economizavam

Depoimento do Cangaceiro Balão

A adesão ao Cangaço tinha um preço alto. Era preciso saber que se viveria, a partir daquele momento, uma vida de guerra e morte eminente. A recompensa para essa vida era recuperar o orgulho próprio. Ser cangaceiro, muitas vezes, representava um ato de rebeldia contra a opressão do Coronelismo.

Por isso, a tropa caminhava sempre perfumada, cantando canções do sertão, orgulhosos de sua cultura sertaneja, e ostentando a riqueza que tomavam dos opressores.

Desta forma, um olhar sobre o universo cultural, que tem origem no povo sertanejo, mas atinge proporções grandiosas sob o fenômeno do Cangaço, nos mostra uma condição mais profunda do povo brasileiro; revela uma cultura rica, colorida, espetaculosa que é abafada pelo contínuo cinza da exploração.

Não é possível reduzir o Cangaço a um simples fenômeno de banditismo social, Cangaço foi expressão, cultura, descoberta, violência, aprendizado e uma lição sobre um povo rico e valoroso.

Eu estava junto de Corisco quando chegou a notícia da morte de Lampião. Ele parou, cobriu os olhos e disse: acabou-se o divertimento do mundo!

Depoimento de Pancada

Relembrando os 80 anos da morte de Lampião e Maria Bonita, o especial Sentidos do Cangaço busca iluminar um pouco da cultura da Cangaço e, por consequência, do povo brasileiro.

A visão das cores

A razão que o levou a fazer-se bandoleiro foi achar bonito o traje dos facínoras que encontrava, notar o temor e respeito que infundiam, e querer ser na vida alguma coisa.

Depoimento do cangaceiro Cobra Verde, 1938

Passando pelo Raso da Catarina, região de caatinga no centro-oeste baiano, em 1930, Dadá, cangaceira e companheira de Corisco, precisou repousar devido à sua gravidez. Para passar o tempo, bordou uma textura floral em um bornal de seu marido.

Lampião, ao ver o bornal enfeitado, ficou encantado e pediu que ela também enfeitasse seu conjunto de quatro bornais. Dadá, neste momento, inaugurou, com o incentivo do Capitão Lampião, uma nova tradição estética.

Os dez últimos anos do Cangaço, que contaram com a presença das mulheres, constituem o período mais rico esteticamente para os cangaceiros.

Nessa época, o traje de guerra desses homens e mulheres foi ganhando novas cores. Exímio costureiro, Capitão Lampião passou a bordar bornais em sua máquina para presentear seus homens mais valorosos. Assim, o bordado, comum na cultura popular sertaneja, se tornou uma medalha de valor e orgulho concedida a um soldado.

O toque do couro

Vinham tão ornamentados e atreviados de cores berrantes que mais pareciam fantasiados para um carnaval. Todos armados de mosquetão, ostentando trajes originais bizarramente adornados, entram cantando suas canções de guerra, como se tivessem em plena diabólica folia carnavalesca.

Jornalista amador ao presenciar a entrada do grupo na cidade de Tucano, Bahia, 1928

O traje do cangaceiro era imponente. Com toda sorte de adaptações necessárias para enfrentar a caatinga, só poderia ser comparado em força e engenhosidade aos trajes dos cavaleiros medievais ou dos guerreiros samurais.

Na cabeça vinha o chapéu de couro, ícone da cultura sertaneja. A aba, quebrada para evitar que o vento o derrubasse em cavalgadas, também servia para não impedir a visão acima da testa. Com toda uma salva de saberes e engenhosidades necessárias, tornava-se, desta forma, mais difícil para os cangaceiros caírem em emboscadas.

Nas laterais do chapéu, se prendia uma pequena chuva de fitas de couro que serviam para toda sorte de emergências, como uma alpargata arruinada, um ferimento aberto. Sobre a testa e pela lateral do rosto, pendiam cintas que serviam para a fixação da peça sobre a cabeça. Nelas eram fixadas moedas de prata e ouro, libras e pequenas medalhas com dizeres como “Deus te guie”. O uso do chapéu de cangaceiro não era apenas funcional, era uma peça também simbólica.

Em volta do pescoço, era preso um lenço de seda chamado jabiraca. A cor preferida pelos homens era o vermelho, mas existiam outras. Era, também, uma peça bonita e cheia de funcionalidades. Com ele, se podia filtrar água barrenta ou espremida de raízes e tubérculos como o xique-xique, servia também para secar o suor do rosto e aplicar torniquetes. A peça não era fixada através de nós, suas pontas desciam por uma coleção de anéis de ouro, que davam uma pista sobre a patente do cangaceiro.

Todo conjunto era composto por uma complexidade de correias. Por baixo, vestia-se a túnica, feita de brim ou tecido grosso. Sobre os ombros, em “x”, eram colocadas as cobertas, “a de deitar e a de se cobrir”. Sobre as cobertas vinham os bornais, também dispostos em “x” e fixados com uma tira na altura da cintura.

Por cima de tudo isso, estrategicamente posicionadas, vinham as cartucheiras de munição. O peso das roupas, equipamentos, munição, mantimentos e todo tipo de miudezas passava de trinta quilos – quase dez a mais do que o recomendado pelo Exército para soldados dessas regiões.

O primeiro grande feito de Lampião como líder de um grupo foi o assalto a casa da Baronesa de Água Branca, em 1922, em Alagoas.

Em uma ação espetacular, os bandoleiros invadiram a cidade, renderam as tropas do exército e assaltaram as casas mais ricas. Por último, entraram na casa da Baronesa, de onde tiraram uma grande soma de dinheiro, joias, incluindo um crucifixo de ouro que mais tarde seria usado por Maria Bonita, e toda uma miríade de objetos que apenas a elite tinha acesso.

A partir disso, Lampião tomou gosto por hábitos da elite, incluindo o uso de perfumes franceses.

A voz do sertanejo

O bando cantava as toadas do xaxado em primeira, segunda e terceira voz.

Depoimento de Dona Maura Lima de Araújo, presente durante visita do bando de Lampião à fazenda da Pedra

Enquanto a voz oficial condenava o Cangaço, a cultura popular sertaneja ilustrava seus feitos. As lendas dos capitães eram contadas em versos de feira e na literatura do cordel.

As aventuras dos cangaceiros eram logo cantados em repentes nas feiras das cidades mais próximas. Cada artista que escrevia parecia torcer para o seu bando preferido.

No grupo de Lampião, Zé Baiano, Moura e, depois, Jitirana dividiam as composições. Frederico Mello, em seu livro, conta inclusive, que o próprio Lampião cantava, apesar de Dadá dizer que sua voz era esfarrapada.

O paladar do Sertão

Convencemo-nos, à força de observações repetidas, que tais coisas se usam porque as usa Lampião e seus sequazes que, mesmo bandidos, são, ao espírito rude do sertanejo, paradigmas de bravura e intrepidez.

Relatório da Comissão Acadêmica Coronel Lucena ao interventor federal de Pernambuco, 17 de agosto de 1938

Na dureza da caatinga alimentar-se exigia sabedoria. Dispondo apenas dos produtos encontrados nos mercados do nordeste, e eventualmente alguma caça, a tropa precisava preparar-se para travessias que podiam durar semanas. A base da alimentação era carne, salgada para maior durabilidade, a farinha e a rapadura.

Em dias de fartura ainda se consumia leite, café e requeijão. No aperto, porém, até mesmo o xique-xique, espécie de cacto da caatinga, virava a refeição da vez.

A carne, geralmente de bode, era consumida sempre assada em fogueiras, uma vez que cozinhá-la exigia mais tempo de fogo aceso, e a fumaça poderia denunciar a posição do bando.

Fonte: Brasil de Fato

 

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