Pacientes oncológicos do SUS vivem menos do que os tratados na rede privada

Por Luana Lisboa | Folhapress

Foto: Divulgação / FGM

Pacientes com câncer tratados no SUS (Sistema Único de Saúde) vivem menos do que aqueles que cuidam da doença na rede privada. É o que aponta estudo apresentado na conferência anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, maior da área no mundo.
O trabalho analisou a sobrevida de 132 mil pacientes que receberam o diagnóstico dos 17 tipos mais comuns de tumor em 19 hospitais do Rio Grande do Sul. Para 13 variedades, o índice do sistema público foi menor.
A maior disparidade registrada foi na doença na tireoide, com uma taxa 326% menor entre aqueles que se trataram no SUS. A base de comparação é uma sobrevida global de cinco anos, padrão comum na medicina para quantificar o tempo de vida de pacientes mortos por qualquer causa.
Nos cânceres de bexiga, ovário, útero e leucemia não houve diferença estatística entre os dois grupos. Foram incluídos os indivíduos com diagnóstico confirmado entre 2005 e 2017.
Alguns fatores são apontados por Fernando Maluf, oncologista do Hospital Albert Einstein e coautor da pesquisa, como causas da disparidade: déficit no programa de rastreamento da doença e a longa janela entre a suspeita, o diagnóstico e o início do tratamento, o que permite que o câncer se alastre pelo corpo.
“O Brasil não tem programa para câncer de pulmão, intestino e próstata. Os [tumores] que têm [rastreamento] têm grau de adesão baixo, ou porque faltam aparelhos ou porque as pessoas não têm informação sobre eles”, afirma Maluf.
O rastreamento permite identificar a doença antes dos sintomas. Conforme lei de 2008, o SUS deve assegurar às mulheres assistência na prevenção, detecção e no tratamento apenas dos cânceres do colo uterino, de mama e colorretal.
Já o início do tratamento deve começar em até dois meses após o diagnóstico, de acordo com a Lei dos 60 Dias. No entanto, segundo o Ministério da Saúde, dados do painel de oncologia apontam que, no ano passado, 59% dos pacientes atendidos na rede pública não deram início ao tratamento dentro do período previsto.
A pasta informou que a expectativa é que de melhora no índice com 82 obras do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que devem ampliar os serviços de radioterapia. O projeto inclui 34 projetos parados em 16 estados. As outras 48 novas instalações ainda serão selecionadas por editais.
Outra pesquisa, feita no A.C.Camargo Cancer Center, referência no tratamento da doença em São Paulo, constatou que pacientes de câncer de próstata metastático do SUS têm risco de morte 66% maior do que aqueles do sistema suplementar.
Os pesquisadores relacionam menor sobrevida ao acesso desigual a linhas de tratamento. Dos 213 analisados entre 2014 e 2018, aqueles que buscaram o sistema público tiveram à disposição 2,59 linhas de tratamento, em média, e os da rede privada, a 3,04.
As linhas consistem no uso de diferentes abordagens contra a doença, abordagem importante pois células cancerosas costumam criar resistência após meses.
Os pesquisadores consideram ainda que o tempo de incorporação de drogas no SUS pode afetar o acesso. O processo é conduzido pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) e inclui o período de avaliação do novo medicamento e o tempo de disponibilização. Cada uma das fases dura 180 dias.
Mas, no caso do tratamento oncológico, mesmo após a incorporação, o Ministério da Saúde não costuma fazer a compra direta. Em vez disso, repassa valores por meio da Apac (Autorização de Procedimentos Ambulatoriais) aos hospitais, que compram as drogas.
As instituições privadas, por terem maior capacidade de financiamento, fazem a incorporação de forma mais rápida, diz Adriano Massuda, pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da FGV (Fundação Getulio Vargas).
A situação representa uma questão ética para os profissionais de saúde, que se veem obrigados a fornecer cuidados distintos aos pacientes com a mesma doença tratados na mesma instituição.
A pesquisa apresentada no congresso americano concluiu ainda que 81,5% daqueles tratados no sistema público recebiam diagnóstico no estágio 4 do câncer, o mais avançado, ante 51% na rede privada, o que também contribui para resultados desiguais na sobrevida.
Segundo dados do Radar do Câncer, do portal Oncoguia, entre 2019 e 2021, 63% dos pacientes oncológicos no Brasil iniciaram tratamento quando a doença já estava disseminada em outros órgãos, o chamado estadiamento avançado.
Foi o caso de Maria Paula Soares, 20, que começou a trata linfoma não Hodgkin pelo SUS no estágio 4 em 2020. A doença tem 47,3% dos tratamentos iniciados em estadiamento avançado.
Antes do diagnóstico, Maria, que mora em São Paulo, foi a vários médicos do sistema público e da rede privada, que a diagnosticaram erroneamente com sarna e virose.
Internada no Hospital Infantil Menino Jesus, no bairro da Bela Vista, com febre, coceira e dores, ela enfrentou ainda outras dificuldades. “Precisei fazer uma tomografia, mas a máquina estava quebrada. Consertaram depois de cinco dias.”
Após o exame e uma biópsia, ela precisaria ser encaminhada a outro hospital, para iniciar o tratamento, mas um impasse burocrático atrasou o processo. “Eu faria 18 anos no mês seguinte, então a ala infantil não me aceitava e a ala adulta também não.”
A situação só foi resolvida uma semana depois, quando o cirurgião conseguiu uma vaga para ela no Hospital Infantil Darcy Vargas, no Morumbi. Após sessões de quimioterapia, os exames mostraram remissão total do câncer.
Já Ana Carolina Gil, 32, moradora de São Paulo, trata do linfoma não Hodgkins pela rede privada. Ela descobriu o câncer também em estágio 4, no último dia 14 de agosto. Mas, diferentemente de Maria, o início do tratamento foi mais rápido. Menos de um mês depois, em 6 de setembro, ela começou o primeiro ciclo de quimioterapia.
 

SOBREVIDA GLOBAL DE PACIENTES DO SUS EM COMPARAÇÃO AOS DA REDE PRIVADA
Câncer de tireoide: 326% menor
Câncer de boca: 66% menor
Câncer de estômago: 60% menor
Câncer de laringe: 53% menor
Câncer linfoide: 48% menor
Câncer colorretal: 43% menor
Câncer de esôfago: 41% menor
Câncer de mama: 40% menor
Melanoma: 37% menor
Câncer de próstata: 42% menor
Câncer de pulmão: 26% menor
Câncer de cérebro: 20% menor
Câncer da cervical: 24% menor
 

Esta reportagem foi produzida durante o 8º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha, que conta com o apoio do Instituto Serrapilheira, do Laboratório Roche e da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein

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