‘Pessoas com transtornos mentais têm 10 a 20 anos a menos de vida’

Raquel Ribeiro, coordenadora de Psicologia e das atividades terapêuticas do Grupo Bom Viver

Por Ana Cristina Pereira

Psicóloga faz alerta para assunto
Psicóloga faz alerta para assunto – 
A energia de renovação do início do ano serve como impulso para a campanha Janeiro Branco, que este ano traz como tema o questionamento “O que fazer pela saúde mental agora e sempre?”. A pergunta traduz a urgência revelada pelos números, que apontam o Brasil como o país onde vivem mais pessoas ansiosas do mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).

A campanha, que está completando onze edições e desde o ano passado está amparada na Lei Federal Janeiro Branco, em vigor desde abril, quer justamente chamar atenção para a promoção da saúde mental, logo no começo do ano. “O Janeiro Branco reforça a importância de uma visão econômica e social que precisa ser pensada de forma coletiva, nas diversas instâncias”, afirma a psicóloga Raquel Ribeiro, coordenadora de Psicologia e das atividades terapêuticas do Grupo Bom Viver.

Com especialização em psicologia clínica e hospitalar, Raquel chama atenção para este esforço coletivo em torno do assunto, ao qual tem de se juntar trabalho, escola, família e sociedade como um todo. Nesta entrevista ao Grupo A TARDE, ela fala da importância da iniciativa e de como estar atento aos sinais, prestando mais atenção em nós mesmos ou em quem está do nosso lado, com um olhar mais acolhedor: “Muitas pessoas tidas como difíceis, chatas, que isolamos, excluímos ou não nos identificamos podem, na verdade, estar em sofrimento”, afirma Raquel, que é co-fundadora do Workshop de Psicologia Hospitalar e Co-organizadora do livro Psicologia Hospitalar e da Saúde: Teoria e Prática à Luz da Gestalt-Terapia.

Qual o simbolismo da escolha do mês de janeiro para ser o marco da mobilização em torno da saúde mental?

A escolha de janeiro tem relação com o início de um novo ciclo e a cor branca com o poder recomeçar, reescrever essa história. A campanha busca mobilizar a sociedade em torno da conscientização sobre a saúde mental e emocional, abordando a promoção de hábitos e ambientes saudáveis, além da prevenção de doenças psiquiátricas, com enfoque especial à prevenção da dependência química e do suicídio. Em 2013, a Organização Mundial de Saúde lançou um plano de ação abrangente em saúde mental, colocando em pauta, até 2030, uma grande meta mundial para promoção e prevenção, diante da importância e relevância do tema. Então, o Janeiro Branco reforça a importância de uma visão econômica e social que precisa ser pensada de forma coletiva, nas diversas instâncias. Todos os setores (escola, saúde, cultura, trabalho, economia) precisam participar de forma engajada, rever as estruturas, as relações de poder, a desigualdade social e as violências, pois a forma como as relações sociais ocorrem são produtoras de adoecimento e/ou promotoras de saúde. Saúde mental é coleiva, precisamos de investimento em políticas públicas e suplementar mais amplas com urgência e profundidade.

O tema da campanha em 2025 traz o questionamento “O que fazer pela saúde mental agora e sempre?”. Como podemos cuidar da saúde mental na rotina cada vez mais cheia de atribuições e pressões?

Eu diria não só diante das nossas atribuições e pressões, mas também diante das condições sociais, ambientais, individuais, coletivas e econômicas que nos atravessam. Diante de um sistema econômico que aumenta as desigualdades, a gente tem um cenário desfavorável para nossa saúde mental e eu diria que um prognóstico comunitário muito ruim do que está por vir. Precisamos pensar de forma coletiva, começando pelo ponto de vista estatal, governamental, criando políticas públicas de prevenção e promoção da saúde, de acesso a esse sistema, de redução de violências e diminuição da desigualdade social, com amparo e melhores condições sociais. Do ponto de vista individual, é delicado implicar as pessoas em processos quando elas não têm condições de acesso aos direitos ou estão sem condições clínicas, biopsicossocioespirituais para seguir as orientações por si. Mudança de hábitos não são fáceis, dificilmente alguém com depressão resistente, por exemplo, terá facilidade de fazer exercícios ou desejo de se alimentar bem e fazer escolhas de uma rotina funcional e sustentada. Existe o risco de entrar em uma positividade tóxica – bem instagramável.

O começo do ano é marcado por balanços, planos e criação de metas. Essas iniciativas são positivas ou acabam gerando ainda mais estresse e ansiedade?

Esses balanços, planos e metas podem acontecer dentro de uma realidade factível. A ansiedade pode existir em um ponto saudável, que nos impulsiona a desejar construir, mas não naquele nível que nos paralisa, nos deixa com medo. É importante desejar e entender que os planos são muito diferentes da realidade, não são realizados exatamente como a gente idealizou. Os planos são um norte e a partir desse norte a gente vai viver o que é o mundo real e realizar o que for possível diante das condições que a gente tem. É fundamental encarar essas metas como desejos, como direções, e não necessariamente como algo que precisa e que será realizado 100%. É natural ter objetivos na vida, é necessário, porém as frustrações irão acontecer e fazem parte do caminho. A gente pode construir novas possibilidades até melhores que o plano inicial.

O Brasil é o país com a maior prevalência de depressão na América Latina, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). A depressão é o mal da sociedade contemporânea?

A depressão é, sim, um grande mal, mas diante de uma tecnologia imediatista e de um futuro muito desejado, a ansiedade tem falado mais alto. A ansiedade fala muito sobre o futuro, sobre medo, desejo de controle, de segurança, de lidar com diversas incertezas e expectativas imediatas que o mundo atual tecnológico nos traz, nos faz desconectar da temporalidade da natureza, da subjetividade, do presente, da presença, do tempo real e corporal. A depressão fala muito da perda de energia de um corpo que está colapsado diante do mundo, onde não existe mais força para seguir, fala de uma desconexão com os desejos e expectativas, de uma falta de prazer e de objetivos. No mundo atual, a gente tem mais idealizações e desejos, então eu diria que enquanto os sintomas ansiosos falam de uma pressa e um controle de conquistar logo esse padrão idealizado, na depressão a pessoa se vê impedida, em desesperança, desistente de conquistar “tudo isso que a ansiedade idealizou”

Quais são os sintomas mais visíveis da depressão? E como amigos e familiares podem ajudar?

Os sintomas mais visíveis da depressão incluem o isolamento, alteração de humor, do apetite, da libido, do desejo pela vida, irritabilidade, desconexão com o mundo. Perda de interesse de viver a vida, deixar de ter prazer em coisas que antes eram interessantes, como estar com amigos ou realizar um hobby. O mundo vai deixando de ser atraente e a pessoa entra em uma introspecção, em uma melancolia, uma falta de conexão e prazer com a vida. Às vezes uma apatia grande pode vir junto com sintomas de ideação suicida: desejo de não existir, de abandonar a vida, perdas de sentido e motivação, desespero, desesperança, desamparo. A família, os amigos, colegas, no trabalho, na escola, na vizinhança, todos podem ajudar ficando atentos a esses sintomas, acolhendo a pessoa em sofrimento sem julgamento e buscando ajuda profissional quando necessário.

As mulheres, com suas múltiplas tarefas, muitas vezes de cuidadoras, têm sido grandes vítimas da ansiedade, estresse e depressão. Quando elas devem ligar o botão de alerta?

É muito importante as mulheres observarem, nessas multitarefas, como elas estão. A sobrecarga de trabalho doméstico, trabalho de cuidado, de gerir lares e trabalho fora de casa, por exemplo, gera um desgaste físico e emocional de grande carga mental, até porque muitas vezes não são trocas justas e podem inclusive existir outras pessoas que não estão dividindo no mesmo sistema familiar. Observar esses sintomas de desgaste, irritabilidade, inclusive com comportamentos que podem envolver conflitos e violências, mostram a gravidade da situação. Então, é muito importante se ver diante dessa condição de opressão, onde muitas vezes não há opção diante de uma sobrecarga e difícil apoio social, familiar. Essas reflexões abrem espaço para questionar e reposicionar o lugar da mulher no mundo, podendo ter trocas justas, de forma mais saudável e prevenindo esse lugar de desgaste.

Ainda há muitos estigmas em torno da saúde mental? Aproveitando o gancho do Janeiro Branco, o que a senhora diria para as pessoas que não estão confortáveis para se abrir com familiares ou no ambiente de trabalho?

Quando as pessoas não estão confortáveis para se abrir com familiares ou no ambiente de trabalho, certamente isso já diz algo sobre como são essas relações. E tudo bem se ficar mais à vontade com os amigos, importante se sentir acolhido e validado. Os amigos entram nessa rede ampliada, nesse conceito ampliado de família, e pode ser um caminho. Outra coisa é pedir ajuda profissional, agendar uma consulta diretamente com um profissional de psicologia, psiquiatria, ir em um CAPS, CRAS ou CREAS falar sobre a situação que está vivendo e buscar ajuda. A família vai precisar participar, principalmente nos casos graves, até porque o sintoma de uma pessoa não é só dela, é de uma família, da comunidade, da sociedade.

Como mudar este cenário atual?

Se o sofrimento mental está aumentando no mundo, isso é um sinal de que não estamos no caminho coletivamente saudável e que a forma que estamos vivendo não está sendo de promoção da saúde. Precisamos rever a forma de funcionamento, de forma coletiva e, enquanto isso, remediar com tratamentos, com amparo, fazendo promoção, prevenção e questionando os modelos de saúde em que a comunidade possa ser mais acolhedora, empática, valorizando mais a essência, a presença, a arte, as pessoas, a natureza, a conexão e o tempo de qualidade. Desejo que a gente consiga encontrar formas de viver que sejam mais sustentáveis economicamente, socialmente e que a saúde não seja um preço a ser pago. Essa conta não fecha. As pessoas com transtornos mentais têm 10 a 20 anos a menos de vida, precisamos cuidar melhor das pessoas, das nossas relações no mundo.

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