Como o jornal O Globo revelou em março deste ano, a Abin utilizou durante o governo de Jair Bolsonaro um sistema secreto com capacidade de monitorar, sem autorização judicial, os passos de até 10 mil pessoas por ano. Para isso, bastava digitar o número de um contato telefônico no programa e acompanhar num mapa a localização registrada a partir da conexão de rede do aparelho. A ferramenta, chamada “First Mile”, foi produzida pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint) e era operada, sem qualquer controle formal de acesso, pela equipe de operações da agência de inteligência.
Ao analisar os cerca de 1.800 acessos feitos pela Abin na ferramenta — um número que a PF considera ser apenas um extrato das consultas de fato realizadas no programa —, investigadores descobriram um contato relacionado ao ex-deputado Jean Wyllys foi monitorado.
No início de 2019, o ex-parlamentar optou por não assumir o novo mandato como deputado federal para o qual tinha sido eleito. Decidiu morar no exterior, segundo ele, após receber uma série de ameaças no Brasil. Jean Wyllys fez oposição pública ao clã Bolsonaro e colecionou embates judicias com os filhos do ex-presidente.
A PF também apura as circunstâncias de um suposto monitoramento feito em um celular de um servidor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O integrante da Corte atuava na área de tecnologia, que, entre outras coisas, é responsável por zelar pelo funcionamento das urnas eletrônicas no país.
Durante o seu mandato, Bolsonaro atacou, de forma sistemática, o sistema eleitoral. O ex-presidente criticou, sem provas, as urnas eletrônicas e tentou manobrar no Congresso para votar uma proposta para o TSE adotar o voto impresso nas eleições. A investida foi rejeitada.
Eleições municipais
Outro ponto que chamou a atenção da PF foi um pico de acessos feitos no programa espião durante as eleições municipais de 2020. Investigadores traçaram um gráfico que mostram o crescimento expressivo de monitoramentos realizados no First Mile durante o período que foram escolhidos prefeitos e vereadores por todo o país.
A lista de monitorados pela Abin incluiria também lideranças de grupos de caminhoneiros e dirigentes de entidades do setor. Após a greve do segmento que paralisou o país em 2018, a agência de inteligência passou a intensificar a coleta de informações sobre ameaças de novos protestos.
Em 2018, quando era pré-candidato à presidência, Bolsonaro parabenizou a categoria pela “luta justa contra mazelas que atingem a população”. Em setembro de 2021, quando ele já era o chefe do Executivo, um grupo de caminhoneiros ocupou a Esplanada dos ministérios em apoio ao governo federal e contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
Além desses alvos, a Abin também monitorou jornalistas, advogados e adversários do governo Jair Bolsonaro, segundo revelou a colunista Malu Gaspar. Em nota divulgada nessa sexta-feira, a agência disse que instaurou procedimento para apurar o caso e que todas as solicitações da PF e do STF foram atendidas integralmente
“Cercamento”
Durante as apurações, a PF descobriu que a Abin adotava a tática de “cercamento”. Na prática, o sistema permitia traçar um mapa em uma determinada região e acompanhar se um determinado alvo transitava na área destacada.
Segundo dados levantados pelos investigadores, esse método foi utilizado em endereço próximo ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Não está claro ainda qual era o motivo dessa vigilância. Mas a PF suspeita que advogados e juízes podem ter sido monitorados.
Outras regiões acompanhadas pela Abin por meio do programa espião chamaram a atenção da PF. Investigadores descobriram que foram monitorados alvos em casas localizadas em uma região nobre de Brasília. Como não há um registro formal de todas as operações, o inquérito apuro qual a circunstância dessas vigilâncias e se tem alguma relação com embaixadas localizadas na região.
No Rio Janeiro, a PF descobriu que a Abin acompanhou, por meio da conexão de rede do celular, os passos de algumas pessoas em bairros da zona sul. A justificativa para a utilização da ferramenta na capital carioca era para auxiliar no combate ao tráfico. No entanto, segundo investigadores, não há indícios de que o First Mile tenha sido aplicado em regiões dominadas por organizações criminosas.
Próximos passos da investigação
Quando a Polícia Federal chegou à sede da empresa representante do First Mile no Brasil, peritos bloquearam o sistema e a nuvem de dados para coletar dados. Ao analisar o material encontrado, descobriram outros clientes que podem ter comprado ferramentas de inteligências. Dentre eles, está o Exército.
Investigadores querem entender em quais operações da caserna o sistema foi utilizado e se a Justiça Militar autorizou o uso da tecnologia que identifica o passo a passo de um alvo sob vigilância.
Outra linha de investigação da PF, considerada crucial, é como a empresa que forneceu o First Mile no Brasil se utilizou de uma brecha na rede de telefonia para dar acesso aos dados privados da movimentação de pessoas. Essa brecha é apontada por investigadores como uma vulnerabilidade que a a Abin deveria ter alertado.
Uma investigação aberta pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), após reportagem do GLOBO revelar o uso do First Mile no Brasil, concluiu que a Abin utilizou um sistema de monitoramento da localização de celulares no país sem o conhecimento das operadoras de telefonia.
O rastreamento era possível porque os celulares precisam informar as torres das operadoras sobre a sua localização para, por exemplo, realizar ligações. Em outras palavras, para conectar dois aparelhos, o sistema de telecomunicação precisa saber onde eles estão.
De acordo com a Anatel, a Lei Geral de Telecomunicações e demais normas da telefonia em vigor preveem que as operadoras de telefonia devem utilizar recursos tecnológicos necessários para assegurar a inviolabilidade do sigilo das comunicações.
A empresa responsável pelo First Mile no Brasil é também fornecedora do programa Vigia, utilizado para executar interceptações telefônicas e rastreamento de localização de investigados em inquéritos com autorização judicial. A PF apura se a empresa utilizou a sua experiência no segmento para explorar a rede de telefonia brasileira.
Na sexta-feira, a PF deflagrou uma operação para cumprir 25 mandados de busca e apreensão e prender dois ex-agentes da Abin no âmbito da operação Última Milha. Outros 20 suspeitos de operar o mecanismo de forma irregular também são investigados e foram intimados a prestar depoimentos. Ao todo, cinco integrantes da agência foram afastados por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Dentre eles, está o número 3 do órgão que foi flagrado com US$ 171 mil dólares em dinheiro vivo em casa.