Durante a conversa, a primeira mulher a comandar a corporação em 216 anos de existência detalhou o surgimento dessas organizações que apareceram após o fim da ‘era Ravengar’ (Raimundo Alves de Souza), figura emblemática que comandava o tráfico de drogas na Bahia nos anos 90.
“Eu vou falar porque ele já faleceu, mas quem já estava na polícia sabe sobre a ‘lenda’ de Ravengar no Morro do Águia. Ele morava no local e dominava o tráfico ali. Quando Ravengar sai daquele local, quando ele é preso, começa a haver uma briga, porque várias outras organizações começam a se estabelecer. Então, nos anos 2000, nós tínhamos as organizações que eram, como diziam, as organizações baianas, e que a gente podia nomear duas, no máximo três, talvez. Hoje, num mapeamento mais amplo, a última vez nós mapeamos 24 delas, só aqui na Bahia”, explicou.
Sem uma figura central no comando, essas facções criminosas começaram a se aliar com outras organizações maiores da região sudeste, como o Comando Vermelho (CV) – do Rio de Janeiro -, Primeiro Comando da Capital (PCC) – Paulista – e, mais recentemente, o Terceiro Comando Puro (TCP) – Rio de Janeiro.
“São facções baianas que se autodividem, rompem com lideranças e umas com as outras, e aí vão se agregando a organizações criminosas do sudeste, como forma de se estabelecer ali. Então, ela faz essa parceria para poder receber armas e drogas”, completou.
Apesar de Brito não nomear as organizações, a reportagem apurou que algumas delas são: Katiara, Ordem e Progresso (OP), A Tropa, Bonde do Ajeita, Raio A, Bonde do SAJ, Honda, Bonde do Neguinho, Tropa do KLV, MK, Raio B, e as mais conhecidas, Comando Vermelho e Bonde do Maluco. Além da atuação como forma de alianças ou influências: PCC e TCP.
A revelação aconteceu enquanto a delegada descrevia a mudança de perfil das lideranças criminosas, que, diferente do ‘tempo de Ravengar’, hoje, vivem bem longe de seus domínios, devido justamente a essas alianças interestaduais. Isso fez com que a Polícia Civil tivesse que se adaptar e expandir sua atuação.
“Hoje, o trabalho da polícia precisa ser mais transversal. A gente não consegue trabalhar só olhando a Bahia. É preciso olhar o Brasil como todo e as conexões que estão a partir daí. Outro dia, estava fazendo uma palestra: ‘fulano estava comandando a questão de organização criminosa, a gente pegou ele em Mato Grosso do Sul’. A pessoa está realmente a milhares de quilômetros de distância. Hoje, com a tecnologia, vídeos, etc., eles falam, acompanham de perto e sabem o que está acontecendo sem precisar estar fisicamente presente. Por isso, a gente precisa continuar investindo no que existe de mais moderno em termos de tecnologia, de softwares, não só de cruzamento de dados, de análises telemáticas. Isso é fundamental para o trabalho da polícia, porque isso nos dá uma possibilidade de identificar a movimentação do indivíduo, mesmo não estando aqui no nosso estado.
Além da forte revelação, a Delegada-Geral falou sobre outros temas, como combate ao crime organizado e feminicídio; detalhou relação entre mortes e atentados contra rifeiros com tráfico de drogas, impacto da Lei orgânica na Polícia Civil na Bahia e concurso público, entre outros assuntos; confira.
Prisões de influencers e operação ‘Falsas Promessas’
“Esse é uma operação complexa e, inclusive, essa é uma primeira fase. Porque durante um ano, nós investigamos como esse dinheiro chegava, analisando 50 cpfs num cruzamento de dados enorme que exigia muita dedicação dos nossos policiais, e também o uso da tecnologia, porque senão é quase impossível você fazer esse cruzamento de informações”.
“A partir do interrogatório [realizado durante a operação Falsas Promessas], que inclusive será substancial para gente saber se tem mais pessoas envolvidas nessa organização específica, alguns inquéritos correlatos também. Porque algumas das pessoas tinham sido vítimas de tentativa de homicídio, que nós vamos aprofundar também a razão, que naquele momento ainda não tinha sido esclarecido”.
Relação entre mortes e atentados contra rifeiros com o tráfico de drogas
“Você lembra de um casal que, na Linha Verde… O crime aconteceu logo depois de eles postarem que estavam fazendo aquela atividade. Então, essas prisões [da operação ‘falsas promessas’] e as investigações decorrentes dela também vão nos auxiliar no esclarecimento desses clientes, que podem estar de alguma forma relacionados”.
“No primeiro momento, quando nós começamos as investigações, os indicativos já diziam que tinham a ver com a questão do tráfico de drogas. Nós não conseguimos, naquele primeiro momento, porque, em princípio, as pessoas que foram mortas não eram usuárias ou não vendiam drogas, mas, exatamente, a partir dessa operação [Falsas Promessas], nós vamos poder fazer esse cruzamento de dados e aí, avaliar. Inclusive, a vida financeira das vítimas, para verificar se tinham algum tipo de correlação necessariamente com essa organização criminosa. Ou talvez nós sejamos surpreendidos em descobrir outros envolvimentos deles com outras organizações. Obviamente, estou falando de suposições”.
“Essa é uma teoria que nós, como policiais, temos que nos debruçar para verificar se alguma dessas mortes advém de algum tipo de envolvimento ou de não pagamento dessas supostas rifas, porque também detectamos que havia uma fraude na forma como era no sorteio e para quem era entregue. Então, existe também uma possibilidade de alguém se sentir, por exemplo, que perdeu algum dinheiro, que ele foi fraudado”.
Combate ao crime organizado: estrangular as facções financeiramente
“Essa foi uma primeira grande operação que nós estamos fazendo nesse sentido, mas a Polícia Civil tem especializado muitas equipes com relação à lavagem de dinheiro. Não só para apreender e pedir bloqueio, mas nós entendemos que precisamos estrangular financeiramente as organizações criminosas. Então, vocês têm acompanhado que nós temos feito várias operações importantes, aprendendo, inclusive, lideranças criminosas, mas para além da prisão desses indivíduos, nós também precisamos dificultar a vida deles, e hoje a gente sabe que o que mais facilita a essas organizações criminosas de repor armamento é exatamente a quantidade de recurso financeiro que eles têm. Então, essa é uma vertente que nós estamos focando, não só com as equipes aqui de Salvador. Nosso objetivo agora é interiorizar”.
Infiltração das facções no poder público é observada pela Polícia Civil
“Nós temos 417 municípios e diversas candidaturas a vereadores e outros cargos. É óbvio que a gente não pode acompanhar cada um desses candidatos, porque a quantidade é grande, mas quando nós temos algum indicativo ou alguma denúncia, começamos a fazer um processo, sim, de investigação, e nós temos uma tratativa ótima com o Tribunal Regional Eleitoral. Então, se detecta que tem alguma coisa, seja na prestação de contas, seja em algum informe de inteligência, que aquele indivíduo pode estar envolvido com um evento criminoso, nós começamos o processo de investigação. Mas é óbvio que a gente só pode agir quando a gente tem alguma coisa concreta. Se isso for confirmado, aí sim. A gente pode inclusive pedir a prisão ou encaminhar as informações, para ver se cabe algum tipo de impugnação à candidatura”.
“Mas a nossa preocupação com relação a isso, a possibilidade do Crime Organizado estar presente em nosso viés político, é muito delicada, porque ele decide as nossas vidas, as nossas leis, né? Por isso que é tão importante investimento que a Polícia Civil vem fazendo na questão da tecnologia, na inteligência policial, porque é ele que vai dar para a gente os indicativos de que aquele indivíduo que se apresenta como um ‘bom cidadão’, como um pretenso candidato a vereador, a prefeito, tenha algum tipo de conexão ou esteja sendo financiado por alguma organização criminosa. Mas também é óbvio que isso não é uma investigação simples. Ela é complexa. Demanda tempo. Já aconteceu uma situação aqui na Bahia, que houve a eleição de um deputado, e só depois de algum tempo uma operação da Polícia Federal conseguiu fazer provar que ele tinha conexões com o crime organizado”.
Concurso da Polícia Civil da Bahia com 1 mil vagas para 2025
“Ainda não há novidades [de quando deve sair o edital], mas fica no desejo da Delegada-Geral que seja no primeiro semestre, até porque o nosso concurso demora em média dois anos entre a realização de todas as etapas e a nomeação dos colegas. Mas não posso confirmar isso realmente, porque espero o aval do nosso Governador e da Secretaria de Administração. O pedido da delegada-geral é de que seja para o primeiro semestre”.
Delegada explica como a Lei Orgânica da Polícia Civil (aprovada em 2023) pode ser aplicada na Bahia e os impactos
“A Lei Organica traz várias modificações. Alguns estados possuem as próprias leis orgânicas. Em tese, vai seguir tudo que está lá para parametrização, mas a gente já observou, e vamos ter que fazer grupos de trabalho para se aprofundar. Tem questões muito sensíveis, como por exemplo: a possibilidade de você juntar os cargos de investigador e escrivão. Como vai fazer? Quais serão as atribuições desses servidores? Quem já era escrivão ou já foi investigador, se não quiser migrar? Ele não pode ser obrigado. Como é que vai fazer? Então, nós elencamos mais de 10 itens e pegamos um escopo do Estado de São Paulo, que já se debruçou sobre o tema”.
“Alguns pontos são mais simples de serem abordados, mas têm questões que precisam ser discutidas com a maior profundidade da questão, por exemplo, do Departamento de Polícia Técnica, que ainda não tem autonomia como polícia técnica. Eles pedem isso”.
“Tem um artigo que fala que os institutos criminalísticos serão gerenciados por alguém da Polícia Civil, mas a Polícia Técnica faz parte da Polícia Civil, então tem algumas peculiaridades que serão de ser discutidas. Importante frisar que todas essas mudanças terão ser apresentadas ao governador do estado e submetidas à Assembleia”.
Combate de crimes contra a mulher
“Infelizmente, os crimes contra as nossas mulheres não diminuíram por várias circunstâncias. A gente tem em todas as polícias civis, de modo geral, índices altíssimos de elucidação de crimes como, por exemplo, os feminicídios. Mas isso não nos traz nenhum conforto, porque o que nós queremos é que não aconteça. Nós já implementamos, desde que eu assumi, mais de 12 Neans, que são os Núcleos Especiais de Atendimento à Mulher, que são pequenas delegacias. Já entregamos algumas Deans novas, como a de Juazeiro. Estamos entregando a de Santo Antônio, estamos terminando de construir a de Feira de Santana e, neste concurso, nas duas etapas, nós priorizamos principalmente o Departamento de Proteção à Mulher. Entre Delegados e investigadores, foram mais de 60 servidores”.
“Mas também a gente precisa ser muito realista. Estávamos com déficit muito grande de servidores, em razão dos concursos. A gente teve um período que não teve concurso e, dos outros concursos, tivemos um ingresso muito menor do que a capacidade de vagas ofertadas”.
Vítimas se sentem acuadas
“Ela começa a acreditar que foi a responsável, porque isso advém de uma violência psicológica, porque ele agride ela: ‘É porque você não fez minha comida’, ‘É porque você saiu’, ‘É porque você usou essa roupa’, ‘Isso é porque eu já te disse que eu não queria que você se metesse nisso’. Então, qualquer coisa que ela faz ou deixa de fazer, o homem começa a atribuir a ela a responsabilidade e, antes dele partir para a agressão, ele agrediu ela moral e psicologicamente de várias outras formas, só que ela não se dá conta. Então, o que percebemos é que, nos casos de feminicídio, as mulheres não procuram a delegacia [antes de serem mortas] ou procuram e não têm vontade de representar, não querem que a ação continue, porque, no fundo, ela acredita que isso não vai acontecer. Ela acha que ele não vai matá-la. Acha que ele perdeu a cabeça, mas que ele é bom para as crianças. Porque ele foi bom para ela, ele não deixa faltar nada em casa. Como se isso fosse algum tipo de benefício e não uma obrigação do casal”.
“Então, ela não se apercebe desse perigo, e a campanha que a gente tem feito é ‘A mão que bate é a mesma mão que mata’. Para que ela esteja atenta, para que ela procure os órgãos de proteção, para que as pessoas denunciem”.
“Estou falando não só da agressão física – por que essa acaba ficando mais notória, como ela marca a pele. Às vezes, as pessoas dizem: ‘Você tem que denunciar’. Mas e aquele que não é visto, que acontece entre quatro paredes? Então, ela não fala para ninguém, e fica ali completamente submissa. Eu sempre digo que, se algum amigo, algum vizinho que perceber, fale e denuncie. É para fortalecer essa mulher, porque a gente precisa mudar hábitos”.
Reeducar o agressor
Na verdade, é um grupo de reflexão que também é fundamental nesse processo [de reeducação], no qual o homem precisa participar de alguns encontros, de algumas palestras. O objetivo deste grupo é repensar aquele ato, porque muitos homens que agridem acham que não fizeram nada, que ele perdeu a cabeça naquele momento, mas que ele não está fazendo nada. Ele não rouba, ele não mata, ele não é uma pessoa ruim e nós, infelizmente, já vimos acontecer também de homem terminar um relacionamento com aquela mulher que ele agrediu e conhecer outra mulher e começar outro relacionamento e agredir essa mulher também”.
“Ele precisa entender que o que ele fez foi errado. Ele precisa entender que ele não pode utilizar a violência contra a companheira, e isso só acontece através desse processo de conscientização e de reflexão”.
“Eu digo que a Lei Maria da Penha é ótima. Ela realmente é incisiva, ela dá limites, ela condena, mas ela funciona como um balizador e como inibidor de condutas. A gente só muda qualquer conduta quando nós trazemos para a consciência. E a gente começa a entender a necessidade de modificar essa conduta, porque senão vai ficar preso, porque ela [a conduta] não é socialmente aceita.