Por que a capital da Tunísia pode ser a ‘nova Roma’
O tempo de espera para entrar no Coliseu, em Roma, era de aproximadamente três horas e meia. A fila era tão longa que, inicialmente, eu achei que era para visitar o Monte Palatino, já que eu não conseguia nem sequer ver o Coliseu quando entrei no fim dela.
Era meados de maio, fazia frio e chovia muito, mas dezenas de turistas encharcados estavam amontoados ao meu lado em capas de chuva coloridas esperando sua vez de pagar 12 euros (cerca de R$ 68) para serem guiados pela arena como animais selvagens antes se serem caçados por gladiadores.
Foi quando me ocorreu o seguinte: durante o tempo de espera naquela fila, eu poderia ir de metrô até o aeroporto de Roma, pegar um voo de 80 minutos para Túnis, capital da Tunísia, e me deslocar 15 km de táxi até Cartago, onde eu poderia contemplar sozinho relíquias igualmente impressionantes da engenharia e arquitetura romanas por apenas 12 dinares tunisianos (aproximadamente R$ 21).
No fim daquela semana, decidi fazer o teste.
A Tunísia teve sua imagem abalada na última década depois que a revolução que derrubou o presidente Zine al-Abidine Ben Ali, em 2011, gerou um período de turbulência no país, dando início à Primavera Árabe.
O que outrora fora um refúgio para turistas, artistas e intelectuais europeus (Paul Klee, Michel Foucault e Simone de Beauvoir passaram longas temporadas lá) de repente parecia um lugar violento e intocável.
Aqueles que se aventuravam a ir até lá muitas vezes o faziam dentro da (pseudo) segurança oferecida pelos pacotes turísticos com “tudo incluído”, ficando confinados em refúgios à beira-mar, como no resort e spa Mövenpick, em Sousse.
A imagem da Tunísia foi ainda mais arranhada após uma série de ataques extremistas em 2015, no auge da campanha internacional do grupo autodenominado Estado Islâmico, que abalou o país e provocou uma ampla reformulação das medidas antiterroristas.
O Reino Unido ainda sugere que os turistas tenham cautela na região, mas observa que “o governo da Tunísia aprimorou as medidas de proteção à segurança nas principais cidades e resorts turísticos”.
Apesar disso, quando passar o pior da pandemia do coronavírus, pode ser o momento perfeito para visitar Túnis — e por conta própria. O país emergiu da Primavera Árabe com uma democracia funcional, em busca de estabilização econômica e sede de turismo.
Atualmente, é a única nação árabe em que há liberdade de expressão, e sua capital reverbera com jovens expressando novas ideias por meio de shows, debates políticos, mostras de arte e festivais de cinema, o que há uma década seria inimaginável.
Há ainda antigas ruínas romanas e púnicas para explorar, praias para apreciar e artesanatos e obras de arte incríveis para barganhar — e tudo isso sem aglomerações.
O mais interessante é que Túnis está fervilhando com a energia criativa da nova geração, que aproveita ao máximo seu entusiasmo e liberdade de expressão para preservar a herança cultural do país de maneiras novas e surpreendentes.
Uma das pessoas que lideram esse movimento é Leila Ben Gacem, empreendedora social empenhada em conservar a arte e o artesanato local, que corriam o risco de desaparecer.
“Quando as pessoas viajam, querem uma história, querem fazer parte de alguma coisa”, diz Ben Gacem, enquanto comemos um prato de cordeiro assado com berinjela na Dar Ben Gacem Kahia, uma das duas residências medievais na vibrante medina de Túnis que ela cuidadosamente reformou e transformou em pousadas na última década.
Ben Gacem sabe reconhecer uma boa história. Após trabalhar como engenheira na Europa e no norte da África, ela ficou cética em relação a investimentos e empreendimentos estrangeiros — e voltou à Tunísia em 2013 para tentar incentivar o crescimento econômico do país preservando seu patrimônio cultural, em vez de substituí-lo.
Ela passou meses procurando e ouvindo histórias de centenas de artesãos — sapateiros, perfumistas, marceneiros, encadernadores, chapeleiros, tecelões — na medina de Túnis, declarada Patrimônio Mundial pela Unesco. E, na sequência, fundou uma organização comunitária, a Blue Fish, para ajudá-los a manter seus negócios funcionando e seus artesanatos vivos.
Uma maneira de fazer isso era levando os compradores até eles.
“Nosso mercado local é pequeno demais para preservar nossa arte e artesanato”, explica.
Mas, ao restaurar casas históricas e transformar em pousadas, ela atraiu milhares de turistas do mundo todo para as oficinas e vitrines de artesãos da medina.
“No início, os artesãos não entendiam por que as pessoas queriam ver suas oficinas ou observá-los fazendo chapéus ou chinelos”, diz ela.
Mas agora se tornou uma relação simbiótica. Os hóspedes recebem um mapa personalizado com a localização de dezenas de oficinas e lojas repletas de artigos de couro feitos à mão, tapetes, perfumes e outros tesouros escondidos em meio ao labirinto dos souks (mercados de rua).
Como resultado, eles sustentam as microempresas que mantêm viva a herança cultural tunisiana.
Ben Gacem também colocou em ação um pequeno exército de artesãos para restaurar as pousadas. Foram necessários sete anos para os escultores de gesso, ceramistas, carpinteiros e pedreiros devolverem à primeira hospedaria sua antiga glória.
Assim como o resto da encantadora medina, todos os elementos das construções têm uma história, das amplas placas de mármore no chão do pátio (“Tivemos que removê-las e etiquetá-las, uma a uma, para colocar o encanamento”) às colunas diferentes uma das outras, provavelmente reaproveitadas das ruínas romanas pelos árabes que fundaram a medina no século 7.
Ben Gacem acredita que a herança cultural de Túnis não deve ser apenas preservada, como também precisa ser passada adiante. As pousadas se tornaram polos de cultura, organizando jantares, palestras e shows abertos ao público e repletos de moradores do bairro.
Ela também incentiva jovens artesãos a fazer estágios e treina adolescentes locais para a indústria hoteleira, para que o legado cultural da medina permaneça nas mãos da população local.
Enquanto Ben Gacem trabalha para preservar a cultura dentro da medina, do lado de fora de seus muros, uma legião de jovens tunisianos está redefinindo essa herança cultural por meio da arte, música e design.
Entre os destaques está Anissa Meddeb, que mistura tecidos tunisinos e influências asiáticas para criar modelos de roupa contemporâneos para sua marca, Anissa Aida.
Nascida e criada em Paris por pais tunisianos, Meddeb estudou moda em Nova York antes de decidir se mudar para Túnis e lançar sua própria linha de roupas.
Quando ela começou a empreitada em 2016, teve dificuldade de encontrar tecidos de qualidade em meio ao mar de poliéster. Ela vasculhou então as pequenas cidades da Tunísia em busca dos melhores tecelões de seda, linho e algodão.
“Eu queria voltar às raízes dos artesãos”, conta Meddeb.
Levou meses até encontrar os fornecedores certos, mas agora ela encomenda tecidos de todo o país para sua marca de roupas, que é vendida em butiques locais como a Musk & Amber, assim como em lojas de toda a Europa.
Quando perguntei a Meddeb por que uma estilista em ascensão se mudaria de Paris ou Nova York, mecas da moda, para Túnis, ela respondeu sem pestanejar:
“Existe uma energia em Túnis agora, principalmente entre artistas mais jovens. As pessoas têm algo a dizer.”
Para os turistas que buscam aproveitar essa energia, e o belo design que a acompanha, a dica é desbravar os bairros ao norte do centro de Túnis.
Mais perto do centro da cidade, em Mutuelleville, faça uma parada na L’artisanerie para garimpar vasos de planta tecidos à mão e espelhos decorados. Em seguida, visite a Mooja e a Elyssa Artisanat para experimentar as últimas tendências da moda tunisiana.
No badalado bairro de La Marsa, você encontrará cerâmica contemporânea no Noa Atelier; uma seleção de foutas (toalha tradicional) tecidas à mão no Hager Fouta; e streetwear com frases ousadas em caligrafia árabe na Lyoum.
Termine seu tour no bairro à beira-mar de Sidi Bou Said, onde, escondida entre as encantadoras casas azuis e brancas, você encontrará a Rock the Kasbah, uma excêntrica loja de artigos para casa, construída em um casarão tradicional.
Mas designs incríveis não são a única coisa que você vai descobrir entre as casas luxuosas e vilas charmosas ao longo da costa norte. É também onde você vai encontrar aquelas ruínas romanas pelas quais eu dei uma escapada da Cidade Eterna para desbravar.
Muito antes de Túnis, havia Cartago, a antiga cidade portuária fenícia que foi arqui-inimiga de Roma por séculos. No poema épico Eneida, o poeta romano Virgílio conta como a rainha Dido, fundadora de Cartago, fugiu de Tire (no atual Líbano) e desembarcou no norte da África.
Quando ela pediu um pedaço de terra do líder da tribo local, ele jogou uma pele de boi no chão, dizendo que ela poderia ter a terra coberta pela pele. Num hábil movimento semântico e cirúrgico, ela cortou a pele em tiras bem finas e circundou uma colina inteira logo acima do porto.
Esta é a Colina de Birsa, o melhor lugar para começar o dia explorando as ruínas púnicas e romanas de Cartago.
À primeira vista, a Colina de Birsa, repleta de vivendas e mansões, parece mais Beverly Hills do que um Patrimônio Mundial da Unesco. Mas, diferentemente de Beverly Hills, se você quiser colocar uma piscina no quintal de casa em Birsa, é melhor chamar um arqueólogo primeiro.
Durante séculos, uma civilização após a outra construiu casas nesta locação privilegiada, e ao escavar alguns metros abaixo da terra pode surgir uma cerâmica africana ou os resquícios de um mosaico romano.
Enquanto o topo da colina oferece uma vista deslumbrante sobre o Mar Mediterrâneo e algumas ruínas da era púnica e romana, sua principal atração é o Museu de Cartago — um dos museus arqueológicos mais importantes do país.
Aos pés da colina, você pode visitar os oito principais sítios arqueológicos da região, que podem ser percorridos a pé ou de táxi. O meu favorito é o santuário de Tophet (ou Púnico). Pode ser pequeno, mas sua história macabra confere a ele um papel descomunal.
Aqui, os antigos fenícios ofereciam sacrifícios de crianças à deusa Tanit e celebravam cada um deles erguendo uma pedra gravada com seu símbolo (um círculo em cima de um triângulo, com os braços abertos). Dezenas dessas pedras estão agrupadas hoje em meio a uma gruta de palmeiras, em um cenário plácido, mas sinistro.
Pouco mais acima, as Termas de Antonino se revelam imponentes. As ruínas de arcos e colunas de mármore faziam parte do espaço destinado a banhos públicos erguido durante a era romana, um dos mais grandiosos já construídos.
Para aqueles com uma ânsia ainda maior por história antiga (e um carro alugado à disposição), vale a pena fazer um bate-volta até Dougga. A apenas duas horas de carro a sudoeste da capital, Dougga é a cidade romana mais bem preservada do norte da África.
O vasto complexo da Unesco, com seu imponente fórum e templo romano, se destaca em uma colina com vista para vastas planícies repletas de flores silvestres na primavera.
Você pode passar horas vagando por suas ruas bem preservadas, imaginando como deve ter sido viver naquela cidade romana — e fazer tudo isso com tranquilidade, algo raro de se conseguir na Europa. Nas duas vezes que visitei, em abril e junho, tive o lugar todo só para mim.
Túnis pode não bater Roma em todas as categorias — a comida, à base de ovo, atum em conserva e harissa (tipo de molho), geralmente deixa a desejar — mas nem precisa. Enquanto a capital da Tunísia projeta seu passado no futuro, está criando seu próprio legado como capital da cultura, história e liberdade.