Por que as duas Coreias seguem tecnicamente em guerra, 70 anos após acordo de cessar-fogo
A Península Coreana está imersa há mais de 70 anos em um conflito que desafia o passar do tempo e a evolução das relações internacionais.
O que começou como uma divisão temporal no contexto da Guerra Fria acabou se perpetuando em um estado de guerra, com frequentes escaladas de tensão.
A Coreia do Norte, comunista, e a Coreia do Sul, capitalista, foram uma única nação por séculos, com a mesma história, cultura, etnia e idioma. Mas, hoje, elas são separadas por uma das fronteiras mais impenetráveis do mundo: a zona desmilitarizada do paralelo 38.
Soldados dos dois lados patrulham aquela faixa desde o cessar-fogo da Guerra da Coreia, em 1953, que estabeleceu o mapa atual da península.
Em 27 de julho de 2023, comemora-se o 70º aniversário do cessar-fogo. Mas ele foi idealizado como um acordo provisório, até que fosse assinado o tratado de paz definitivo.
Por que o tratado de paz nunca foi assinado? E como as duas Coreias viveram até hoje em um estado de guerra técnico permanente?
A Guerra da Coreia
Desde o início do século 20 e ao longo da Segunda Guerra Mundial, a Coreia permaneceu sob o domínio colonial do Japão.
Após a derrota japonesa em 1945, a União Soviética ocupou a metade da península coreana, ao norte do paralelo 38, enquanto os Estados Unidos ficaram com a metade sul.
A ideia era que o povo coreano decidisse seu próprio futuro nos anos seguintes, mas nunca se chegou a um acordo para designar o sistema político e um governo unificado para toda a península.
Pelo contrário, as diferenças políticas e ideológicas aprofundaram-se entre o Norte – que criou reformas comunistas em grande escala – e o Sul – que conservou o sistema capitalista, com um governo aliado aos Estados Unidos. O resultado foi a criação de dois Estados independentes.
Assim, em Pyongyang, o líder norte-coreano Kim Il-Sung (1912-1994) – avô do líder atual, Kim Jong-un – assumiu o poder absoluto da República Popular Democrática da Coreia (o nome oficial da Coreia do Norte). E, em Seul, Syngman Rhee (1875-1965) tornou-se o primeiro presidente da República da Coreia, a Coreia do Sul.
No dia 25 de junho de 1950, a Coreia do Norte invadiu o sul com apoio político e logístico da União Soviética e da China. A intenção era reunificar o país, estabelecendo um único regime comunista em toda a península.
Nos primeiros meses, a Coreia do Norte chegou muito perto de conseguir o seu intento. Em setembro de 1950, ela havia conquistado quase toda a península, exceto pela cidade portuária de Busan, no sudeste do país, e seus arredores.
A Coreia do Sul, com o apoio dos Estados Unidos, seus aliados e amparada pela ONU, resistiu à invasão e lançou um contra-ataque em massa.
A República da Coreia conseguiu então ocupar quase toda a península, relegando a Coreia do Norte a duas regiões na fronteira norte com a China.
Mas a entrada da China no conflito foi decisiva. Estimativas indicam que os chineses, liderados por Mao Tsé-Tung, enviaram 1 a 3 milhões de soldados para a Coreia, equilibrando o conflito e deslocando a linha de frente de volta para o sul.
Com isso, a fronteira foi se estabilizando aos poucos em volta do paralelo 38 na primeira metade de 1951.
Em julho daquele ano, a guerra chegou a um impasse que obrigou as partes a iniciar conversas de paz, na cidade fronteiriça de Kaesong, na Coreia do Norte. Mas o cessar-fogo ainda estava distante, pois os dois lados mantinham diferenças inegociáveis.
De um lado, a China e a União Soviética insistiam em traçar a fronteira no paralelo 38.
Já os Estados Unidos e seus aliados propunham sua fixação na linha de frente do conflito – que, naquele momento, estava a dezenas de quilômetros mais ao norte.
Por outro lado, os comunistas exigiam a repatriação obrigatória de todos os prisioneiros de guerra, enquanto seus rivais propunham que cada prisioneiro escolhesse voluntariamente se preferia instalar-se na Coreia do Norte ou do Sul.
Estas e outras questões, aliadas à desconfiança mútua e acusações de maus tratos de prisioneiros das duas partes, suspenderam as negociações entre agosto de 1951 e abril de 1952.
Os diálogos recomeçariam em um novo local: a aldeia de Panmunjom, que, até hoje, segue sendo a principal sede de negociações na zona desmilitarizada.
Com a guerra suspensa em 1953, a posse do novo presidente americano, Dwight D. Eisenhower em janeiro daquele ano e a morte do líder soviético Josef Stalin em março, a busca de uma solução foi acelerada. E, em 27 de julho de 1953, foi assinado o cessar-fogo em Panmunjom.
O armistício
O histórico cessar-fogo suspendeu a Guerra da Coreia com um “empate técnico” entre o Norte e o Sul e um total estimado de 4 a 6 milhões de mortos, entre civis e militares.
A Coreia do Norte e a China, de um lado, e os Estados Unidos, representando o Comando das Nações Unidas, assinaram o documento.
A Coreia do Sul foi a grande ausente, já que o presidente Rhee se opunha às conversações de paz, defendendo a vitória total do Sul – o que, na época, era inconcebível.
Além de suspender as hostilidades, o acordo de Panmunjom estabeleceu uma zona desmilitarizada ao longo do paralelo 38, que serviria de proteção contra possíveis enfrentamentos entre as duas Coreias.
O armistício também determinou a retirada de todas as forças, suprimentos e equipamentos militares da zona desmilitarizada e suas áreas fronteiriças, proibindo a introdução de novos armamentos e soldados na península. Uma comissão internacional neutra foi designada para garantir o cumprimento do acordo.
Mas o armistício de 1953 foi criado como solução temporária até que as partes chegassem a um acordo de paz formal, o que não aconteceu. Por isso, vários problemas ficaram sem solução.
Por que não houve acordo de paz?
Em primeiro lugar, o cessar-fogo não reconheceu as duas Coreias como Estados soberanos separados. Por isso, os dois lados continuam reivindicando até hoje, nas suas Constituições, todo o território da península como sua jurisdição.
O acordo também não abordou as disputas territoriais, o que gerou choques e tensões, especialmente nas problemáticas águas de fronteira no Mar Amarelo. E o armistício também não incluiu as disposições necessárias para a elaboração do tratado de paz definitivo no futuro.
Por isso, foi preciso prorrogar o cessar-fogo nos primeiros anos, que foram marcados pelo apogeu da Guerra Fria. Os dois lados se consideravam inimigos irreconciliáveis, sem nenhuma intenção de procurar formas de promoção da paz.
Todos esses motivos fizeram com que as intensas diferenças políticas e ideológicas e a desconfiança mútua entre as duas Coreias impedissem, ao longo do tempo, a substituição do acordo de cessar-fogo por um tratado de paz definitivo.
Outro fator importante foi o fato de que as duas principais potências estrangeiras envolvidas no conflito – os Estados Unidos e a China – nunca demonstraram disposição para promover um tratado de paz entre as Coreias, por motivos estratégicos e de segurança.
Atualmente, os Estados Unidos mantêm mais de 28 mil soldados na Coreia do Sul. Este contingente é fundamental para dissuadir a Coreia do Norte e, acima de tudo, para garantir a presença militar americana na Ásia oriental, frente a potências rivais como a China e a Rússia.
Se for assinado, o tratado de paz definitivo poderá causar a retirada ou a redução das tropas americanas, o que faria com que os Estados Unidos perdessem poder na região.
Por outro lado, a China sempre observou com receio qualquer mudança da situação atual da península.
Como a Coreia do Sul tem o dobro da população e sua economia é 50 vezes maior que a da Coreia do Norte, o acordo de paz poderia ser o primeiro passo para a reunificação do país sob o comando de Seul, ampliando o território de um importante aliado militar dos Estados Unidos até a fronteira com a China.
Por fim, o armistício permanece vigente pelo simples fato de que, de certa forma, ele funcionou. Apesar da profunda inimizade declarada pelas duas Coreias por décadas, a península não mergulhou na guerra novamente.
Mas já foram verificados, ao longo dos 70 anos de cessar-fogo, incidentes de maior ou menor gravidade, que chamaram a atenção para a fragilidade do estado técnico de guerra entre as Coreias do Norte e do Sul.
Tensões, assassinatos e bombardeio
A primeira violação grave do acordo de 1953 ocorreu cinco anos após a sua assinatura.
Os Estados Unidos instalaram armas nucleares na Coreia do Sul como recurso estratégico contra a União Soviética, que faz fronteira com a Coreia do Norte, no nordeste da península.
Na época, Pyongyang denunciou veementemente a violação do armistício. Mas, paradoxalmente, a Coreia do Norte possui hoje seu próprio arsenal de armas nucleares, enquanto as armas atômicas do Sul foram retiradas do país em 1991, pelo então presidente americano George H. W. Bush.
Já na zona desmilitarizada, os primeiros incidentes significativos ocorreram na década de 1970. Em agosto de 1976, soldados norte-coreanos assassinaram dois oficiais do exército americano que tentavam podar uma árvore junto à linha de fronteira da região.
O incidente elevou a tensão entre os dois países, mas não teve maiores consequências.
Logo em seguida, foram encontrados diversos túneis subterrâneos norte-coreanos na fronteira, possivelmente para uma invasão do sul. Esta descoberta fez subir as tensões e levou à península à beira de uma nova guerra.
Na década de 1990 e no início dos anos 2000, ocorreram três enfrentamentos navais em águas limítrofes, com mortos de ambos os lados. Mas o ano mais tenso foi 2010, quando surgiram os incidentes mais graves.
Em março de 2010, uma explosão afundou a corveta Cheonan, da marinha sul-coreana, causando a morte de 46 marinheiros. Seul atribuiu o incidente ao ataque de um torpedo da Coreia do Norte, que negou sua participação no incidente.
Seis meses depois, em 23 de novembro de 2010, a Coreia do Norte bombardeou a ilha sul-coreana de Yeonpyeong, nas águas disputadas do Mar Amarelo. Quatro pessoas morreram naquele que foi o primeiro ataque de artilharia sobre território inimigo desde o cessar-fogo.
Seul respondeu com artilharia em direção ao Norte. Pela primeira vez em décadas, surgia a possibilidade da retomada efetiva do conflito, que felizmente se restringiu a estes incidentes isolados.
Por outro lado, Pyongyang realizou seis testes nucleares entre 2006 e 2017, reafirmando seu país como potência atômica. Em consequência, a Coreia do Norte sofreu fortes sanções internacionais, afastando ainda mais a possibilidade de iniciar negociações para um tratado de paz na península.
As tentativas de estabelecer a paz
Entre todos os países envolvidos, a Coreia do Norte é a que demonstrou mais interesse em assinar a paz definitiva ao longo dos últimos 70 anos.
O governo norte-coreano já propôs aos Estados Unidos, em várias ocasiões, a negociação de um acordo de paz. A resposta americana, na maioria dos casos, foi negativa ou inexistente.
É preciso ter em mente que a Coreia do Sul não assinou o cessar-fogo de 1953. Por isso, ela não tem autoridade para decidir, junto com Pyongyang e Washington, a substituição do acordo provisório por um tratado de paz definitivo.
Depois de frágeis tentativas de negociações nas décadas de 1990 e 2000, a chegada do presidente americano Donald Trump à Casa Branca em 2017 abriu inesperadamente uma porta que parecia estar fechada.
Em uma primeira cúpula em Singapura, em 2018, Trump e Kim Jong-un fizeram claros avanços para a normalização das relações bilaterais, o que fez com que o tratado de paz se tornasse uma possibilidade real.
Mas o segundo encontro no ano seguinte em Hanói, no Vietnã, foi encerrado abruptamente sem que se chegasse a um acordo, eliminando as esperanças de pôr um fim ao estado de guerra entre as duas Coreias.
O armistício de 1953, concebido como uma solução provisória, consolidou-se como a garantia do status quo da península nas últimas sete décadas.
Esta situação anormal é considerada o mais claro exemplo ainda existente do legado geopolítico deixado pela Guerra Fria.
Um tratado de paz formal poderia colocar fim à guerra em termos legais, mas o caminho para a verdadeira normalização das relações entre as Coreias do Norte e do Sul, separadas por uma imensa distância política ideológica e econômica, é um desafio de proporções muito maiores.