Por que cientistas defendem livros didáticos em papel
Dá para abrir mão de livros físicos e estudar só nas telas? Como isso afeta o desempenho dos alunos em idade escolar – e a sua capacidade de leitura?
Essa discussão foi alimentada pelo anúncio, agora parcialmente revertido, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, de que alunos da rede pública nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio contariam apenas com livros didáticos digitais, e não mais em papel.
O Ministério Público Estadual abriu uma apuração do caso (mais detalhes abaixo na reportagem), e o governador Tarcísio de Freitas acabou afirmando que tanto livros didáticos impressos quanto digitais serão ofertados.
Diferentes acadêmicos e entidades debatem o quanto do material didático deve ou não migrar ao ambiente digital, mas evidências científicas sugerem que o papel ainda é o meio mais eficiente para ensinar a habilidade de leitura aprofundada e crítica – particularmente em países com tantas desigualdades como o Brasil.
Ao mesmo tempo, há pesquisadores que lamentam que questões igualmente importantes – como a qualidade dos livros – têm sido ofuscadas pela mera oposição entre papel e digital.
A leitura em papel
Alguns dados importantes nessa discussão vêm do Pisa, o principal exame internacional a comparar o aprendizado em vários países.
No ano passado, a entidade organizadora do exame, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), identificou que estudantes de 15 anos que tinham o hábito de lerem livros em papel fizeram em média 49 pontos a mais na prova de leitura do Pisa 2018, em comparação com os jovens que raramente ou nunca liam livros.
Esses 49 pontos equivalem a mais ou menos 10% da pontuação média total dos países na prova de leitura do Pisa.
Além disso, estudantes com o hábito de ler em papel também costumavam demonstrar mais prazer com a leitura do que aqueles que liam textos digitais.
“Os resultados do Pisa confirmam que o acesso a capital cultural, como livros, é um forte preditor do desempenho dos estudantes”, aponta a OCDE.
A leitura digital tem vantagens importantes, como poder rapidamente buscar fontes de informação e checar dados. Mas uma preocupação dos cientistas é de que, nas telas, nossa leitura seja mais superficial do que no papel – ou seja, de que “passamos os olhos”, em vez de ler de verdade.
“As pesquisas dos últimos dez anos mostram que, se você medir a compreensão – o quantas pessoas se lembram do que leem -, ela é quase sempre melhor no texto impresso, especialmente para textos longos”, diz à BBC News Brasil a pesquisadora Naomi S. Baron, professora emérita de Linguística da American University em Washington (EUA).
O texto impresso convida a uma leitura mais lenta e concentrada do que o texto em tela, que geralmente é ditado pelo ritmo das redes sociais e do multitasking, agrega Baron.
“Muito do que fazemos no mundo digital é veloz: olhar para um post no Facebook, uma foto no Instagram, os resultados de jogos de futebol, e daí seguir adiante. Com o texto impresso, presumindo que você não vai estar checando o seu telefone, você tende a focar mais.”
Leitura crítica e ‘impaciência cognitiva’
A experiência sensorial do texto impresso – de manusear e voltar ou avançar páginas manualmente – também parece favorecer a concentração, segundo Baron.
Nas suas pesquisas com jovens em idade escolar, diz ela, “eles nos dizem que, se estão lendo uma história de ficção, conseguem ser muito mais absorvidos pela leitura (em papel) e se identificar com personagens”.
Ponto semelhante já foi levantado pela neurocientista americana Maryanne Wolf, cujas pesquisas sugerem que a leitura superficial poderia prejudicar a capacidade humana de entender argumentos complexos, de fazer análises críticas e até de criar empatia por pontos de vista diferentes.
Em entrevista à BBC News Brasil em 2019, ela argumentou que nossa habilidade de ler e interpretar não é inata: depende de circuitos cerebrais que levaram milhares de anos para serem desenvolvidos até o ponto atual, em que conseguimos processar argumentos, sutilezas, ironias e emoções expressos na forma de texto.
“É isso o que me preocupa nos mais jovens: eles estão desenvolvendo uma impaciência cognitiva que não favorece (a leitura crítica)”, disse na época Wolf, que é pesquisadora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora de O Cérebro no Mundo Digital – Os desafios da leitura na nossa era.
“Deixamos de estar profundamente engajados no que estamos lendo, o que torna menos provável que sejamos transportados para um entendimento real dos sentimentos e pensamentos de outra pessoa.”
No âmbito da educação pública, um caso que tem sido observado por especialistas é o da Suécia, que a partir de 2015 investiu na digitalização de seus materiais didáticos a partir da pré-escola, mas agora avalia ter ido “longe demais”.
Em entrevista à imprensa local, a ministra de Educação, Lotta Edholm, se queixou do excesso de telas e de os livros estarem mais ausentes da vida das crianças desde a digitalização.
“Agora, estamos fazendo o oposto: lançando nosso maior investimento em livros didáticos. (…) Sabemos pelas pesquisas que há um entendimento mais profundo da leitura em livros em comparação com a leitura na tela”, declarou.
Qualidade dos livros
Mas há questões importantes que se perdem quando o debate meramente coloca os dois meios de leitura em campos opostos, em vez de identificar qual o melhor contexto para cada um, diz à BBC News Brasil a professora Natalia Kucirkova, que pesquisa o tema na Universidade de Stavanger, na Noruega.
“É uma pena que por tanto tempo se persista nessa dicotomia de ‘impresso versus digital’, porque, na verdade, as tecnologias já estão integradas nas experiências do dia a dia”, argumenta Kucirkova.
Ela defende que o foco seja direcionado à qualidade dos livros (impressos ou digitais) e como cada meio pode proporcionar uma experiência de aprendizado e de engajamento diferente.
Como exemplo, Kucirkova diz que tem experimentado com livros digitais sensoriais, que incorporem na leitura em tela a experiência tátil e olfativa que é tão valiosa na leitura em papel.
Ela também defende livros digitais que não sejam meras cópias em PDF de seus pares impressos, mas sim agreguem personagens que interajam ou sejam controlados pelo jovem leitor.
O desafio, aí, é garantir que essa experiência interativa engaje a criança, em vez de distraí-la da leitura, explica a pesquisadora. Mas, se esse obstáculo for superado, livros do tipo têm potencial de favorecer a leitura em contextos novos.
“Por exemplo, de avós que possam compartilhar pelo Zoom o mesmo livro digital com netos que estejam distantes. (…) Já existe também uma biblioteca de livros digitais criada para atender crianças ucranianas refugiadas, que foram separadas de seus livros físicos”, ela explica.
Além disso, Kucirkova diz que crianças que demonstram menos interesse pela leitura – os quais ela chama de “leitores relutantes” – também podem ter a chance de encontrar prazer nas histórias digitais.
Mas como esse debate se insere no Brasil, que ainda não equalizou o acesso nem à educação, nem à tecnologia?
Brasil e São Paulo
Em novembro de 2020, em plena pandemia de covid-19, o Unicef (braço da ONU para a infância) calculou que 5 milhões de crianças brasileiras estavam sem acesso à educação, que naquele momento havia migrado para o ambiente digital.
Foi um retrocesso ao mesmo índice que o Brasil tinha 20 anos antes, no início dos anos 2000.
“A pandemia nos mostrou que temos uma enorme desigualdade de acesso à internet de banda larga e a equipamentos. Então causa estranhamento uma política pública sem que haja condições para que ela possa ser implementada”, diz à BBC News Brasil Anna Helena Altenfelder, da organização educacional Cenpec, em referência ao projeto proposto pelo governo de São Paulo para 2024.
O governo paulista quer usar apenas material didático próprio – em vez de livros do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), do Ministério da Educação – e migrar todo esse material para o ambiente digital, para alunos a partir do 6° ano.
O Ministério Público estadual abriu um inquérito civil para investigar um “potencial prejuízo à continuidade do processo educacional” e “eventual desperdício de recursos públicos”, já que os livros do PNLD foram adquiridos pelo governo federal – e produzir material próprio poderia implicar, em tese, em gastos adicionais ao Estado.
A Secretaria de Educação paulista afirmou à Folha de S. Paulo que pretende usar material próprio para manter a “coerência pedagógica” com o currículo escolar estadual.
Depois da repercussão do caso, o governador Tarcísio de Freitas afirmou que houve falhas de comunicação da decisão e agregou: “nós vamos encadernar (os livros didáticos) e entregar impresso, encadernado” para os alunos que assim quiserem.
Mesmo assim, Altenfelder acha que persistem dúvidas sobre a eficácia do projeto na rede estadual paulista.
“Muitas salas de aula têm 40 alunos e televisões de 32 polegadas. Como os alunos vão enxergar (a exposição do material digital)? E o grande desafio é pensar na qualidade desse material, porque eles (São Paulo) estão abrindo mão de livros didáticos do PNLD, que são produzidos a partir de um edital, cuidadosamente elaborado em um programa federal que tem mais de 30 anos e que tem qualidade.”
Competências digitais
No mundo, um relatório da Unesco (braço da ONU para a educação e cultura) traçou um panorama da tecnologia nas escolas do mundo inteiro e aponta que o impacto desse uso no aprendizado ainda é dúbio.
E um dos motivos é justamente a dificuldade de acesso: apesar de 91% dos países terem usados plataformas de ensino digital durante o fechamento das escolas por causa da covid-19, essas plataformas só alcançaram 25% dos alunos globais.
“A atenção excessiva à tecnologia geralmente tem um alto custo. Recursos despendidos em tecnologia, em vez de em sala de aula, professores e livros didáticos para crianças em países de renda baixa a média-baixa, que não têm acesso a esses recursos, provavelmente colocarão o mundo em uma posição ainda mais distante de alcançar o objetivo mundial de educação (inclusiva, igualitária e de qualidade)”, aponta o relatório da Unesco.
Mesmo assim, o relatório destaca a importância da tecnologia em um mundo cada vez mais digital: “As crianças podem aprender (sem a tecnologia). No entanto, a educação delas dificilmente será tão relevante sem a tecnologia”.
Para Altenfelder, a chave é encontrar formas de combinar as experiências analógicas e digitais, a depender das habilidades que precisem ser ensinadas.
“Sem dúvida nenhuma é papel da escola desenvolver as competências digitais de que os alunos precisam. (…) O grande problema é ser exclusivamente digital e perdermos as habilidades de leitura do impresso, que possibilitam uma reflexão maior”, diz ela.
Para Naomi Baron, da American University, um ponto crucial é treinar as crianças a se concentrarem, reduzirem o ritmo e de fato submergirem na leitura. Feito isso, elas serão capaz de migrar do papel ao digital (e vice-versa) com menos prejuízos.
“Precisamos ensinar tanto crianças quanto adultos a baixar os olhos, acalmar a mente e a focar em uma quantidade de parágrafos que tenha coerência, (…) a voltar no texto, a reler – o que é parte de construir um aprendizado”, ela diz.
“Muitas pessoas me perguntam: ‘será que não lemos mais palavras digitalmente do que leríamos em papel?’ Eu respondo que provavelmente nós temos contato com mais palavras, mas será que estamos pausando o suficiente para entendê-las e recordar delas? Acho que estamos fazendo isso menos, porque o meio digital está sempre nos forçando a avançar, a sermos mais rápidos, a rolar a página.”