Por que envolvimento de policiais em mortes e megachacinas cresce no RJ
Por: Wilson Tosta
Uma “irresponsabilidade”. Assim o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticou a morte de um adolescente de 13 anos durante uma operação da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PM-RJ) na comunidade da Cidade de Deus.
Thiago Menezes Flausino foi baleado na madrugada de segunda-feira (7/8). Sua família afirma que ele foi executado quando os policiais chegaram na comunidade atirando, a PM-RJ afirmou que ele atirou contra os agentes.
O caso está sendo investigado pela Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), e o Ministério Público também abriu uma investigação sobre a morte de Thiago.
“Que nunca aconteça o que aconteceu com o menino que foi assassinado por um policial despreparado ou irresponsável”, afirmou Lula em viagem ao Rio na quinta-feira (10/8).
“Nós precisamos criar condições de a polícia ser eficaz, de a polícia ser pronta para combater o crime. Mas, ao mesmo tempo, essa polícia tem que saber diferenciar o que é um bandido e que é o pobre que anda na rua.”
As mortes em ações policiais, em geral, são parte de um problema que não só marca a história da região metropolitana do Rio como tem se intensificado em anos recentes: a participação de policiais em óbitos e megachacinas.
A proporção de óbitos provocados por agentes do Estado ultrapassou de 35% em três dos últimos quatro anos. Em 2013, quando o menor índice foi registrado, a taxa foi de 9,5% em 2013.
Esse avanço foi marcado pela maior frequência de megachacinas — com oito ou mais mortes de civis — em ações oficiais de agentes da lei. Nove das 27 registradas desde 2007 ocorreram desde 2020.
Os dados são da pesquisa “Chacinas policiais: estatização das mortes, mega chacinas policiais e impunidade”, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF).
De acordo com o sociólogo Daniel Hirata, responsável pelo estudo, a origem deste fenômeno pode ser explicada por uma combinação de fatores: o desmonte das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs); a abolição da Secretaria de Segurança Pública (Sese) com concessão de autonomia às polícias; e a eleição em 2018 de um governo “de extrema direita”, conforme avalia Hirata, para comandar o Estado.
“Procedemos esse escalonamento das chacinas para identificar como elas estão acontecendo nos últimos anos”, explicou o sociólogo.
A divulgação do trabalho ocorreu pouco antes da passagem dos 30 anos de dois episódios semelhantes que envolveram policiais, nos anos 90.
As chacinas da Candelária (23 de julho de 1993, com oito mortos) e de Vigário Geral (29 de agosto do mesmo ano, com 21 vítimas), porém, ocorreram em ações extralegais, cometidas por policiais “no desvio”, envolvidos com o crime.
Foram oficialmente condenadas e geraram ações criminais e prisões, ainda que, depois, tenham ocorrido revisões das sentenças. O governo, de Leonel Brizola (PDT), morto em 2004, era de esquerda.
“Nessas chacinas (de 1993), houve comprovadamente a presença de policiais que atuavam em grupos de extermínio, de forma extralegal, fora do horário de serviço”, afirmou Hirata.
“E agora estão ocorrendo durante operações policiais, chanceladas pelos poderes políticos e policiais do Rio de Janeiro.”
O governo do Rio foi procurado pela BBC News Brasil para comentar a pesquisa, mas delegou a tarefa à Polícia Civil e à Polícia Militar.
As duas corporações defenderam o seu trabalho, que afirmaram ser baseado em inteligência e planejamento.
O MP declarou que a maioria das investigações sobre as operações ainda tramita. Também afirmou estar comprometido com a redução de mortes em ações oficiais.
A mais letal das megachacinas policiais do Rio do ciclo iniciado em 2007 aconteceu em 6 de maio de 2021, na favela do Jacarezinho, na zona norte da capital fluminense.A Operação Exceptis, da Polícia Civil, deixou 27 suspeitos mortos em supostos confrontos. A ação também resultou na morte de um policial. Um terço dos homens abatidos nessa ação não tinha processo criminal na Justiça, como noticiou na época o jornal O Estado de S. Paulo.
Ainda no período de governo iniciado em 2019 – inicialmente chefiado por Wilson Witzel (PSC), que pregou o “tiro na cabecinha” de criminosos como parte da política de segurança – aconteceram a segunda e a quarta ação policial com mais mortos.
Foram as chacinas da Penha (23 mortos, em maio de 2022) e do Alemão (16 óbitos, junho do mesmo ano). Witzel foi afastado do cargo em 2020 e deposto em 2021 por impeachment.
Mas a política de segurança foi mantida pelo vice, Cláudio Castro (PL). Depois de confirmado no posto, ele foi reeleito em 2022 no primeiro turno.
“As chacinas policiais são a face mais trágica da letalidade policial, que é um dos mais graves e persistentes problemas públicos no Brasil e, em particular, no Rio de Janeiro”, afirmam os pesquisadores no relatório.
“Neste Estado, grande parte dos homicídios são praticados por policiais em serviço, fenômeno que vem sendo denominado ‘estatização das mortes’. A violência policial está presente em todo o Brasil, contudo, o Estado do Rio de Janeiro concentrou 22,1% do total das mortes decorrentes da ação policial registradas no país em 2021, ainda que tivesse participação de apenas 10% das mortes violentas intencionais.”
Ou seja, de cada cinco mortes causadas por agentes do Estado no Brasil naquele ano, uma aconteceu no Rio.
A percepção do aumento da violência oficial repercutiu no Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma das consequências foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635.
Ela limitou as ações policiais nas comunidades pobres. Segundo a pesquisa do GENI/UFF, tem sofrido resistência das Polícias e do próprio governo estadual.
As forças de segurança alegam, porém, seguir os princípios legais, afirmam que as mortes de civis ocorrem em confrontos.
Dizem ainda que criminosos de outros Estados se escondem em comunidades pobres no Rio, aproveitando-se das restrições às operações.
Outra iniciativa da Corte foi a ordem para instalação de câmeras nas fardas dos policiais, inclusive do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Foi recentemente reiterada e prometida para breve.
Conceito novo
O conceito de megachacina foi elaborado pelos pesquisadores do GENI para analisar melhor um movimento nas estatísticas de criminalidade no Rio.
Até então, trabalhavam apenas com a denominação de chacina. Esta se refere a massacres – cometidos por criminosos comuns ou policiais – com três ou mais mortos.
Nos últimos anos, houve uma redução no número desses crimes, embora a quantidade total de óbitos seguisse alta no Rio. Havia menos massacres, mas com mais mortos por ocorrência.
A pesquisa apontou que a participação dos agentes do Estado nas taxas de letalidade no Rio caiu gradualmente de 20,1% em 2007 até os 9,5% de 2013 – o piso da série.
A partir daí, voltou a subir, em meio à crise financeira e à recessão da economia brasileira, que quebraram o Estado.
Em 2018, a fatia das Polícias nas mortes violentas no Estado estava em 27%. Passou a 35,2% em 2019, recuou a 30,5% em 2020, mas foi a 35,4% em 2021 e 2022.
Curiosamente, o número de chacinas policiais, que em 2019 chegara ao teto da série 2007-2022, com 75 casos, caiu para 43 em 2020, ficou estável em 44 no ano seguinte e baixou para 36 em 22.
A deterioração nos números, para Hirata, envolveu diferentes fatores. Mesmo crítico às UPPs, o pesquisador reconheceu avanços gerados pela adoção dessa política, há mais de dez anos, e atribuiu ao seu “fim”, como política de segurança, parte dos problemas.
Segundo ele, quando há bases em um território, acontecem rondas policiais de rotina, como em outras áreas da cidade, não incursões.
“Formalmente, as UPPs ainda existem, mas não têm mais investimento, a maior parte dos lugares foi abandonada, aqueles contêineres que colocaram nas comunidades estão vazios”, destacou Hirata.
Outro desmonte que, na avaliação do pesquisador, contribuiu ao longo dos anos para a deterioração nos números foi o do sistema de metas, entre elas a redução da letalidade, para os policiais, com a suspensão de pagamentos por resultados.
A extinção da Secretaria de Segurança Pública, com a autonomia dada às polícias Civil e Militar, transformadas em secretarias independentes, após a intervenção federal na segurança do Estado – para Hirata, desastrosa – ajudaram a deteriorar ainda mais o setor no Rio.
Capital teve quase 400 chacinas desde 2007
A pesquisa de baseou em números do próprio GENI, do instituto Fogo Cruzado e da Polícia Civil. Contabilizou que, de 2007 a 2022, ocorreram no Estado 19.198 operações policiais.
Dessas, 629 resultaram em chacinas policiais (três ou mais mortos civis), com 2.554 óbitos. A capital teve 399 casos, quase dois terços (63,4%) do total, com 1706 mortos.
São Gonçalo, segundo maior município do Estado, com mais de 1 milhão de moradores, ficou em segundo, com 47 casos, 7,5% do total, com 165 civis abatidos.
Em terceiro, ficou Belford Roxo: 41 episódios, 6,5% do total e 159 óbitos. As mortes em chacinas foram 17% daquelas provocadas por agentes do Estado no período.
As 27 megachacinas foram 4,2% das chacinas policiais no período. Registraram as mortes de 300 civis e quatro policiais.
Os nove episódios ocorridos de 2020 a 2022 somam 155 pessoas mortas, mais da metade do total.
Se o cálculo recuar a 2019, os números sobem. Serão doze episódios com no mínimo oito civis mortos. Isso eleva o total desde 2007 a 186 óbitos – dois terços dos casos ocorridos em megamassacres.
O trabalho apontou ainda que, além das duas denúncias de mega chacinas encaminhadas à Justiça (dos casos do Jacarezinho de fevereiro de 2010 e maio de 2021), há nove inquéritos na Polícia Civil; dois Procedimentos de Investigação Criminal no MP; dois casos arquivados.
Os pesquisadores não acharam apurações de doze dos 27 megamassacres.
Também participaram da pesquisa Carolina Christoph Grillo, Renato Coelho Dirk e Diogo Azevedo Lyra. Cinthia Alves, Marcelo Lopes e Rafaella Naves atuaram como pesquisadores-colaboradores.
O estudo teve como parceiros o instituto Fogo Cruzado e Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio, além do apoio da Heinrich Böll Sriftung e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj).
Polícias reagem
A Polícia Militar afirmou, em nota à BBC News Brasil, que suas ações são previamente planejadas com base em informações. A preocupação central da corporação, segundo o texto, é “a preservação de vidas e o cumprimento irrestrito da legislação em vigor”.
A PM declarou basear-se sempre nos “dados oficiais” do Instituto de Segurança Pública (ISP), instituição do Estado que acompanha as estatísticas de criminalidade.
Segundo a PM, o ISP mostra que o índice de mortes por intervenção de agentes do Estado caiu mais de 15% no Rio a maio deste ano, em comparação com o mesmo período de 2022.
“O saldo operacional da Polícia Militar revela o grau de complexidade enfrentado diariamente pelos policiais nesse cenário”, diz o texto.
“Somente no ano de 2023, a corporação já prendeu mais de 17 mil criminosos, apreendeu mais de 2 mil adolescentes envolvidos com a criminalidade, além de retirar das ruas mais de 3,5 mil armas de fogo, entre as quais 300 fuzis idênticos aos utilizados em guerras convencionais.”
A Polícia Civil ressaltou em nota ter “a maior Agência Central de Inteligência do ramo da segurança pública estadual do país”.
Segundo a corporação, nessa instância “estão concentrados todos os setores que buscam e produzem conhecimentos para assessorar na tomada de decisões estratégicas e operacionais de combate ao crime”.
Referindo-se à pesquisa do GENI/UFF, a Polícia afirmou desconhecer a metodologia utilizada para a confecção “do relatório citado”.
Sobre as mortes em ações policiais, declarou que “todas as ocorrências desta natureza são investigadas, a fim de se identificar a autoria e apurar as responsabilidades”.
“Em relação às operações da Polícia Civil, todas são realizadas por agentes altamente capacitados, após minucioso planejamento, priorizando sempre a preservação de vidas, tanto dos policiais quanto dos cidadãos”, prossegue.
“A Sepol acrescenta, ainda, que a atuação em comunidades é parte das ações de combate à criminalidade e se trata de um trabalho fundamental, uma vez que as organizações criminosas utilizam os recursos advindos com as práticas delituosas para financiar seus domínios territoriais, com a restrição de liberdade dos moradores das regiões ocupadas por elas.”
Já o Ministério Público afirmou que, nos últimos anos, tem trabalhado para reduzir a letalidade policial no Estado.
Uma das iniciativas nesse sentido foi a criação do Grupo Temático Temporário – Operações Policiais (GTT-ADPF 635-STF), a Coordenadoria de Segurança Pública e a Coordenadoria-Geral de Promoção da Dignidade da Pessoa Humanas, explicou.
Essas estruturas destinam-se, segundo o MP, a aprimorar o controle externo da atividade policial e promover a articulação entre instituições e contribuir com políticas públicas.
“Também foi criado um canal para atendimento à população, por meio de um inédito serviço de Plantão 24h, destinado ao recebimento de denúncias de abusos por parte de agentes de segurança do Estado durante operações policiais”, destacou o MP no texto.
O MP também informou que a maior parte dos casos citados na pesquisa ainda estão sob investigação, sendo necessário esperar que sejam concluídos para ter “dados estatísticos sólidos”.