Por que Semana de Arte Moderna ainda é um marco da cultura 100 anos depois
André Bernardo
Em janeiro de 1952, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) precisou comparecer a uma sessão solene na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Centro do Rio, para os 30 anos da Semana de Arte Moderna.
Na época, o ocupante da cadeira 24, então com 66 anos, passava os dias em Teresópolis, na região serrana do Estado, onde se tratava de tuberculose.
À porta do Petit Trianon, um repórter do extinto Diário Carioca solicitou uma entrevista. “Estou farto de falar e de ouvir falar sobre modernismo”, resmungou o poeta. “Tudo o que eu tinha para dizer eu já disse”.
Diante da insistência do rapaz, prosseguiu: “Acho perfeitamente dispensável. Que esperassem o centenário. Se no ano 2022 ainda se lembrarem disso, então, sim”.
Um século depois, a Semana de Arte Moderna ainda é lembrada como um marco da cultura brasileira.
“Nem todo mundo pensa a Semana de 22 do mesmo jeito. Algumas interpretações são mais críticas. Outras, mais laudatórias”, afirma o historiador Lucas De Nicola, coautor de Semana de 22 — Antes do começo, depois do fim (Estação Brasil).
“O inegável é que a Semana de Arte Moderna virou um marco. Um marco de inovação e criatividade”.
Por motivo de saúde, Manuel Bandeira não participou da Semana de 22, mas autorizou o poeta Ronald de Carvalho (1893-1935) a declamar os versos de Os sapos (1919), que ironizava a poesia parnasiana, a inimiga número um dos modernistas.
“Uma das conquistas daquele grupo foi a revolução estética”, completa o professor José De Nicola, de Semana de 22. “Insatisfeitos, romperam com os padrões da época e saíram em busca de novas formas de expressão”.
A leitura de Os sapos foi o ponto alto da segunda das três noites da Semana de Arte Moderna, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922. Revoltado, o público reagiu com vaias, gritos e assobios.
Para o poeta Mário de Andrade (1893-1945), Bandeira era o “João Batista do Modernismo”. Já o historiador Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) apelidou Os sapos de “hino nacional dos modernistas”.
Um carioca entre os paulistas
Até hoje, não se sabe ao certo de quem partiu a ideia de reunir um grupo de artistas e intelectuais paulistas e organizar uma semana de exposições de pinturas, recitais de poesia e apresentações musicais no Theatro Municipal de São Paulo.
Por ironia do destino, a ideia pode ser creditada, segundo alguns autores, a um carioca: o pintor Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976).
Foi ele que, em novembro de 1921, teria desabafado ao amigo Rubens Borba de Moraes (1899-1986): “Esse negócio de exposiçãozinha individual é coisa do passado! O que é preciso é fazer uma grande exposição de arte moderna, um salon des indépendants, ou coisa que o valha. Sei lá o quê, uma coisa que sacuda a indiferença do público!”.
A princípio, o tal “salão dos independentes” idealizado por Di Cavalcanti seria realizado numa modesta livraria de São Paulo, O Livro, de propriedade de Jacinto Silva.
Não foi assim por sugestão do diplomata Graça Aranha (1868-1931). Em visita à exposição do pintor carioca, o autor de Canaã (1902) demonstrou interesse em conhecer “a mocidade literária e artística de São Paulo”.
Entre novembro e dezembro de 1921, Di Cavalcanti apresentou a Graça Aranha nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade (1890-1954), Menotti Del Picchia (1892-1988) e Anita Malfatti (1889-1964).
Entre uma conversa e outra, a ideia de criar uma mostra coletiva começou a ganhar força. Ao fim do terceiro encontro, em 7 de dezembro de 1921, Graça Aranha entregou a Di Cavalcanti um cartão do empresário Paulo Prado (1869-1943).
Aos encontros na livraria O Livro, na rua Boa Vista, seguiram-se outros, no palacete de Paulo Prado, na avenida Higienópolis. O entusiasmo era tanto que, a certa altura, alguém chegou a sugerir que o evento durasse um mês inteiro.
“Não tínhamos munição para guerra tão longa”, protestou um dos presentes. Foi quando, inspirada na Semaine de Fêtes de Deauville, um festival de música, pintura e moda em um elegante balneário francês, Marinette Prado, mulher do anfitrião, sugeriu fazer uma Semana de Arte Moderna.
Definidos o nome e o tempo de duração do evento, só faltava acertar o lugar. A livraria O Livro foi considerada pequena demais para as pretensões do grupo e alguém propôs o majestoso Theatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 12 de setembro de 1911, para sediar a exposição.
Caberia ao produtor de café Paulo Prado o papel de “mecenas” da Semana de 22. A ele, logo se juntaram outros: políticos, banqueiros, empresários…
“O principal legado da Semana foi despertar uma consciência de modernidade no campo artístico brasileiro e gerar um importante debate na sociedade da época sobre o que era ser moderno no Brasil”, avalia a curadora Andreia Vigo, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Gênios ou loucos?
A primeira das três noites da Semana de Arte Moderna, dedicada às artes plásticas, aconteceu no dia 13 de fevereiro.
Ao todo, quase 100 peças, de telas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) a esculturas de Victor Brecheret (1894-1955), entre outros artistas, foram expostas no saguão do Theatro Municipal.
“O movimento modernista foi muito maior que a Semana de Arte Moderna”, explica o historiador Yussef Campos, organizador de Inda bebo no copo dos outros — Por uma estética modernista (Editora Autêntica).
“Tarsila do Amaral, por exemplo, não participou da Semana, embora seja um dos nomes mais importantes de um movimento que, como maior legado, provocou a renovação da linguagem, a ponto de Mário de Andrade dizer que escrevia brasileiro”. De viagem pela Europa, Tarsila do Amaral só desembarcou no Brasil em junho de 1922.
Muitas das telas de Anita Malfatti expostas na Semana de 22, como A estudante russa, O homem amarelo e A mulher de cabelos verdes, pintadas durante seu estágio em Nova Iorque, eram as mesmas da exposição de 1917, em uma galeria da rua Líbero Badaró.
Na ocasião, a obra da pintora foi duramente criticada pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948) que, em polêmico artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em dezembro de 1917, comparou a arte moderna aos “desenhos que ornam as paredes dos manicômios”.
Cinco anos depois, a obra de Anita Malfatti voltou a escandalizar o público conservador da época. Muitos chegaram a se perguntar se as telas não tinham sido expostas de cabeça para baixo.
Em sinal de protesto, alguns visitantes colocaram bilhetes anônimos, com ofensas e insultos, atrás dos quadros.
“A Semana de 22 não nasceu do nada. Houve uma exposição anterior, a da Anita Malfatti, em 1917, que desbravou caminhos para o modernismo no Brasil”, afirma o filósofo Cauê Alves, curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).
“Marcos existem para ser questionados. A ideia da Semana como um marco do modernismo brasileiro precisa ser motivo de questionamento e não de celebração.”
Além da exposição propriamente dita, houve duas conferências: “A emoção estética na arte moderna”, ministrada por Graça Aranha, e “A pintura e a escultura moderna do Brasil”, dada por Ronald de Carvalho.
Por fim, o pianista Ernani Braga (1888-1948) tocou algumas peças do compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), como Três danças africanas.
“Não há registros da Semana de 22. Não temos fotos, áudios ou vídeos. Apenas os textos que foram publicados nos jornais e, anos depois, os livros de memória escritos pelos protagonistas”, explica a pesquisadora Gênese Andrade, professora de Literatura da FAAP e organizadora do livro Modernismos 1922-2022 (Companhia das Letras).
Entre gritos e vaias
A segunda noite da Semana de Arte Moderna — ou “festival”, como preferiam os modernistas — aconteceu no dia 15 e foi dedicada à literatura e à poesia.
No palco do Municipal, Oswald de Andrade leu trechos de Os condenados, e Mário de Andrade recitou versos de Inspiração.
“Como tive coragem para dizer versos diante duma vaia tão barulhenta?”, indagou o autor de Pauliceia Desvairada na conferência “O movimento modernista” (1942).
Não satisfeito em vaiar, o público ainda soltou gargalhadas, proferiu impropérios e arremessou tomates e batatas no palco.
Sem acreditar no que via e ouvia, Ronald de Carvalho chegou a cogitar a hipótese de Oswald de Andrade, o maior polemista do grupo, ter chamado alguns calouros da Faculdade de Direito para fazer algazarra e gerar controvérsia.
“O fato de eles terem sido vaiados foi visto como algo positivo. O que eles queriam mesmo era virar notícia. Era uma forma de promover a causa”, observa a crítica de arte Heloísa Espada, curadora do Instituto Moreira Salles (IMS), que inaugura, em setembro, a mostra “Modernidade Fora de Foco — Foto e filme no Brasil, 1889-1930”.
“É preciso deixar claro que a Semana de 22 é só uma amostra do modernismo no país. Não é sinônimo ou resumo de arte moderna no Brasil”.
Os ânimos só se acalmaram quando a pianista Guiomar Novaes (1894-1979) executou peças de Debussy, Chopin e Villa-Lobos.
“A Semana de Arte Moderna está para acabar!”, noticiou, em tom gaiato, o Jornal do Comércio, na edição do dia 18. “É pena! Como divertimento, foi insuperável”.
Teve mais. “A semana de arte moderna foi um assunto magnífico para desopilantes piadas”, acrescentou Joaquim Feijó em crônica publicada no jornal A Gazeta. “O segundo espetáculo degenerou em função de circo.”
“A segunda noite ilustra com perfeição o espírito irreverente e desafiador da Semana de Arte Moderna”, aponta a jornalista e historiadora Márcia Camargos, autora de Semana de 22: Entre vaias e aplausos (Editora Boitempo).
“Se a Semana de 22 não tivesse existido, algum outro evento, em algum outro lugar, teria surgido para mostrar o descontentamento dos jovens artistas com a estética da época.”
O dia seguinte
A terceira e última noite da Semana de 22 aconteceu no dia 17. Dos três dias, foi o menos concorrido. Mesmo assim, quem compareceu ao Municipal naquela noite de sexta-feira se indignou com a apresentação de Villa-Lobos.
A ideia de convidá-lo partiu, mais uma vez, de Di Cavalcanti. “Ele nos tinha revelado um músico estranho que tocava piano num bar e compunha coisas espantosas”, relatou Oswald de Andrade, em 1954.
Quando subiram as cortinas, o maestro vestia uma casaca e trazia um pé calçado com sapato e outro com chinelo. Com dificuldade para caminhar, apoiava-se em um guarda-chuva.
Pensando se tratar de mais um deboche modernista, o público vaiou. Há quem diga que, irreverências à parte, Villa-Lobos estava realmente com um calo no pé.
Chegava ao fim a Semana de 22.
Em crônica publicada no jornal Correio Paulistano, de 18 de fevereiro de 1922, Menotti Del Picchia se perguntava: “Que ficou da Semana de Arte Moderna?”.
A Semana de 22 deu origem a um sem-número de revistas, como a Klaxon (1922), que durou de maio de 1922 a janeiro de 1923, e movimentos, como o Antropofágico (1928), de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
A Antropofagia, por sua vez, inspirou de filmes do Cinema Novo a canções do Tropicalismo, passando por peças de José Celso Martinez Corrêa, entre outros tantos.
O título da revista Klaxon, uma sugestão de Oswald de Andrade, virou motivo de piada para Lima Barreto (1881-1922).
“Pensei que se tratasse de uma revista de propaganda de alguma marca de automóveis americanos”, tirou sarro o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) no artigo “O futurismo”, publicado na revista Careta de 22 de julho de 1922.
“A Semana de Arte Moderna não nasceu fazendo sucesso. Em 1922, a repercussão foi quase nula. Só passou a ter a importância que tem hoje em 1972, quando o governo de São Paulo financiou uma série de retrospectivas”, esclarece a historiadora de arte Regina Teixeira de Barros.
“Seu legado é a reflexão crítica do passado e a vontade de renovação artística. A liberdade de criação é uma conquista da modernidade.”
“Um grito no salão”
Uma das críticas mais recorrentes feitas à Semana é o fato de ela ter ignorado modernidades fora do circuito paulistano.
O professor Luís Augusto Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cita dois exemplos, ambos do Rio: o escritor Machado de Assis (1839-1908) — “Já era moderníssimo, desde 1880, tanto em forma quanto em conteúdo” — e o compositor Noel Rosa (1910-1937) — “O exemplo do samba é o mais eloquente que existe!”.
“A Semana de Arte Moderna é um evento superestimado. Se atribui a ele o papel de Big Bang de tudo de bom e moderno que aconteceu na cultura brasileira. Isso é uma bobagem! Um provincianismo sem tamanho!”, critica.
“Tem muita coisa boa que aconteceu antes e depois da Semana de 22 que é moderna e não tem nada a ver com o modernismo paulista”.
Na contramão dos que criticam a Semana de Arte Moderna e relativizam sua importância histórica e cultural, há quem não economize elogios.
“Não faz sentido querer desqualificar a Semana de Arte Moderna. Sua produção é inegavelmente importante. Caso contrário, não estaríamos aqui, cem anos depois, conversando sobre o legado da Semana de 22”, argumenta a pesquisadora Gênese Andrade.
Se Lima Barreto era um feroz opositor do modernismo, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) não escondia sua admiração. Tanto que seu livro de estreia, Alguma poesia (1930), foi dedicado a Mário de Andrade.
Em crônica de 1972, por ocasião dos 50 anos da efeméride, o poeta mineiro comparou a Semana de Arte Moderna a “um grito no salão”. “E, para dar grito, não se pede licença: grita-se!”.
Cem anos depois, o grito dos modernistas continua ecoando, em alto e bom som.