Primeiro líder do MST criado em assentamento vê Lula mais distante e cobra alma
Quando tinha dez anos, João Paulo Rodrigues cumpriu sua primeira missão no MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Em 1990, coube a ele e a um primo da mesma idade correr 5 km, atravessar um riacho a nado, reunir as famílias despejadas de um acampamento no Pontal do Paranapanema e repassar as instruções da cúpula do MST sobre o local para onde deveriam rumar —os agentes tentavam dispersá-las e diziam que elas deveriam voltar para suas cidades de origem.
Hoje com 44 anos, Rodrigues é a principal liderança da segunda geração do MST, a primeira a ter sido criada em assentamentos. Os antecessores que fundaram o MST em 1984, em Cascavel (497 km de Curitiba), formaram-se em grupos religiosos, sindicatos e outros movimentos rurais.
No MST, que chega aos 40 anos neste janeiro, ele tem ocupado funções de comando desde a adolescência e atualmente é responsável pela articulação política. Entre os representantes de movimentos sociais, é um dos mais próximos ao presidente Lula (PT).
Essa conjunção de fatores o levou a ocupar a posição de coordenador de mobilização popular da campanha de Lula em 2022, quando ficou encarregado de elaborar estratégias de disseminação do nome do petista para além dos marcos da comunicação oficial.
Hoje, diz à Folha, MST e Lula estão mais distantes. Diferentemente do esperado, o presidente ainda não recebeu o movimento e não visitou assentamentos.
O dirigente camponês afirma que o movimento precisa ter consciência de que não está no governo, apesar de apoiá-lo. Ao mesmo tempo, diz ele, o presidente também tem que compreender as manifestações dos sem-terra, que classificam 2023 como o pior ano em número de assentamentos em quatro décadas. E tem que entender também os protestos e as invasões (chamadas pelos sem-terra de ocupações).
Rodrigues se define como um agricultor. Enquanto membro da segunda geração do MST, foi encorajado a estudar e tem diplomas de técnico agrícola e de ciências sociais.
A cada 20 dias, ele parte para seu terreno no assentamento Gleba 15 de Novembro, no extremo oeste paulista, para “tocar a roça”. No restante do tempo, fica na capital ou viaja para atividades do MST.
“Lá tem pato, ganso, galinha d’angola, pavão, peixe, porco, cavalo. Sou especialista em criação de carneiro e de porco. E o que me dá mais renda é o leite e a mandioca.”
O surgimento da Gleba foi um marco na disputa agrária no estado. Em 1984, o então governador Franco Montoro (PMDB) desapropriou uma área grilada reivindicada pelos sem-terra no Pontal do Paranapanema, um dos epicentros dos conflitos por terra no país, e a estabeleceu como primeiro assentamento de São Paulo.
Após dois anos acampada, a família Rodrigues então foi assentada. João Paulo é filho de Valmir Rodrigues Chaves, mais conhecido como Bill, ex-meeiro da cafeicultura no Paraná e pioneiro do MST na região.
Nessa época, formou-se politicamente no movimento e na convivência com petistas em ascensão –o PT surgiu em 1980, quatro anos antes do que o movimento dos sem-terra.
“Vi o Lula pela primeira vez nessa época, o [Luiz] Gushiken, o [José] Genoino, porque eles iam lá em casa. Com oito anos, eu tinha relação com todos esses papas da política”, rememora. Ele afirma que participou de quase todas as invasões no Pontal nesse período. Com 16 anos, já coordenava ações de repercussão.
Rodrigues afirma que a juventude em assentamentos lhe deu visão privilegiada e desapaixonada da experiência sem-terra. Ele diz que lembra com nitidez da sensação da lona da barraca sobre si quase derretendo no verão e pingando gotas geladas no inverno.
“Não tem glamour. Nossa luta radicalizada não é componente ideológico, é questão de sobrevivência. Quando a gente ocupava terra, fazia saques, fechava rodovia, era para resolver o problema da minha subsistência como sujeito que estava fazendo reforma agrária. A consciência política de que aquilo estava dentro de uma atuação maior vem depois das ocupações”, argumenta.
Nos anos seguintes, Rodrigues ascenderia na burocracia. Em 2002, interrompeu o curso de filosofia na Universidade Metodista para coordenar o escritório do MST em Brasília. Na ocasião, ganhou projeção ao tomar a frente nas negociações da ocupação da fazenda da família do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), localizada em Buritis (MG).
Ele ainda ficaria responsável pela juventude e pelas relações internacionais do MST antes de ser alçado ao posto de articulador político. Em 2014, concluiu o curso de ciências sociais na Uninove (Universidade Nove de Julho), em São Paulo.
Rodrigues já estava entre os principais líderes do MST durante o governo da petista Dilma Rousseff (2011-2016) quando o movimento promoveu uma clivagem em seu projeto.
Diante da desilusão com as administrações petistas, o MST diagnosticou a falência da batalha pela reforma agrária clássica, baseada em tentativa de aliança com os setores industriais mais progressistas, e abraçou um programa de reforma agrária popular, alicerçado no desenvolvimento agroecológico e no enfrentamento do latifúndio e das empresas transnacionais.
Rodrigues é um dos principais entusiastas da reforma agrária popular no MST. Ele diz que os próximos sete anos, contando com uma reeleição do PT, são a janela de oportunidade para que o MST proponha um modelo de agricultura alternativo ao agronegócio para o país. Uma “revolução verde no campo”.
“Nas bases do MST há 10 milhões de hectares. Se conseguirmos ter nessa cadeia produtiva agroindústrias de sementes, parcerias de bancos, e conseguirmos avançar em ter toda a produção agroindustrializada e beneficiada, poderemos ser uma das maiores organizações de produção de alimento do mundo”, afirma Rodrigues.
A ideia é produzir sem agrotóxicos, com o mínimo de participação de máquinas pesadas, no modelo cooperativado, e não somente familiar. O MST possui hoje 185 cooperativas, e de algumas delas saem as produções mais massivas do movimento, como a de arroz orgânico e de leite.
Um desafio para o MST é conseguir dominar toda a cadeia de um produto, da criação à comercialização. No caso do leite, a estimativa é que, dos 7 milhões de litros que o movimento produz por dia, 6 milhões sejam entregues puros para a indústria tradicional, que então concentra o lucro.
Na cadeia do suco de uva, o movimento discute a instalação de uma fábrica de vidro no Rio Grande do Sul para envasar os 3 milhões de litros por safra, além de vinho e geleia. A ideia é buscar apoio do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento).
Mais do que os antecessores, Rodrigues tem uma preocupação própria com o papel do MST nas guerras culturais. É nesse sentido que ele defende a persistência das ocupações. Segundo ele, elas e as greves são “irmãs gêmeas da radicalidade”, às quais camponeses e trabalhadores recorrem pelo contínuo efeito de novidade.
As ocupações ajudariam, então, nas tarefas que o MST tem de propor o debate sobre o direito à terra e manter vivo o sonho da “sociedade socialista”, de “plantar a semente de que nós vamos ser iguais”, “sem explorado e sem explorador”, diz Rodrigues.
Foi nesse campo da “disputa dos imaginários” que o MST fez uma aposta pela aproximação com a sociedade civil, por meio de ações como doações de alimentos e de sangue, e pelo estreitamento de laços com os grupos LGBTQIA+, negros e indígenas. É o MST que vende milhares de camisetas e bonés por mês.
“Sempre negamos na história do MST ser uma organização identitarista, ongueira, de flertar com setores médios, etc. Mas a crise do movimento clássico, sindical, partidário, nos ‘obrigou’ a ter outros canais com quem está falando com o povo”, diz.
“Não perdemos a irmandade com CUT, PT, PDT, e procuramos novos atores que estão fazendo luta sem nenhum preconceito”, completa. “Para enfrentar um agro que é pop, temos que construir uma luta.”
Nesse aspecto, o governo Lula tem falhado, avalia. Para além de não ter registrado avanços significativos nos programas –”não acho razoável que não se tenha sinalizado qual é o modelo de reforma trabalhista que teremos”–, a gestão petista não tem dado espaço para a participação popular e não tem produzido simbologia no trato da política social, afirma Rodrigues.
“Gosto muito dos eventos que são feitos no Palácio do Planalto, mas não acho simbologia nenhuma (…) Preciso de um Lula mais próximo de atividades populares para ele ouvir, sentir e sinalizar”, cobra.
Rodrigues conta que um ministro lhe disse que o governo vai bem, “mas sem alma”, com o que ele concorda.
“Preciso saber para onde ele está indo para eu convencer outros. Não consigo ver só pelo Lula internacional ou só pela Fazenda. Preciso que este governo nos dê elementos para fazer assembleias e discutir políticas públicas nos acampamentos ou nas pequenas cidades”, conclui.
Guilherme Seto e Nicollas Witzel, Folhapress