“Quem sou eu para pôr defeito em Beethoven?”
Diretora do Beethovenfest, Nike Wagner se despede do festival em Bonn em grande estilo: os 250 anos do nascimento do compositor serão celebrados com obras monumentais. Mas ela tem ressalvas à popular “Nona sinfonia”.
Nike Wagner é diretora-geral do Beethovenfest de Bonn desde 2014. Após a edição de outono de 2020, em setembro, ela entrega o cargo. Mas o evento no ano em que se completam 250 anos do nascimento de Ludwig van Beethoven promete brilhar com grandes astros musicais e orquestras.
O programa está dividido em duas partes: de 13 a 22 de março e de 4 a 27 de setembro. E nem o coronavírus deverá ser um obstáculo para a bisneta do compositor Richard Wagner e tataraneta de Franz Liszt.
DW: A primeira parte do Beethovenfest deste ano começa em 13 de março, um programa reunindo artistas internacionais de primeira grandeza. Porém em meio aos preparativos naturalmente vem a pergunta: até que ponto o festival será afetado pelo surto do coronavírus?
Nike Wagner: Levamos a sério os desdobramentos e avaliamos a situação para proteger a equipe, as artistas e os artistas e o público. Estamos em contato com autoridades, agências e grupos, assim como com nossos associados, a fim de poder reagir de modo prudente e adequado. No momento não há indicações de que os concertos não vão poder se realizar.
O slogan do programa de março é “Sejam abraçados”, um dos versos do coro final da Nona sinfonia de Beethoven. Neste ano de jubileu, essa obra será tocada por praticamente todas as orquestras sinfônicas. Por isso se escolheu essa referência, ou há algo mais por trás?
Estou em meu sétimo ano em Bonn, e nunca incluí a Nona nos programas, e tampouco enciclopedicamente, por assim dizer, com um único conjunto ou intérprete tocando todas as sinfonias. Minha questão era mais apresentar Beethoven no contexto do tempo antes e depois dele.
Num grande jubileu, porém, tudo é um pouco diferente. Nós nos decidimos por uma temporada adicional, na primavera, pela preocupação de que o público já esteja exausto de tantos eventos beethovenianos se começássemos só em setembro, como normalmente. Então me dispus a programar “todas as nove [sinfonias]”, porém numa interpretação que é a mais interessante no momento: a da orquestra MusicAeterna, sob a regência de Teodor Currentzis.
Claro que a Nona é uma obra central da história da música, e tem uma mensagem. Só que o idealismo de Beethoven e [do poeta da Ode à Alegria, Friedrich] Schiller não é mais o nosso.
Soa como se a senhora não gostasse do final da Nona.
Tenho dificuldades com esse amontoamento de massas corais afirmativas no movimento final. É também daí que vem a predisposição dessa sinfonia a ocasiões de cunho estatal. Mas quem sou eu para pôr defeito em Beethoven?
No programa de março, além das sinfonias, teremos mais uma vez obras que a senhora encomendou a compositores contemporâneos nos últimos anos, tocadas por orquestras internacionais. Por que considera importante encomendar essas peças que têm uma conexão explícita com uma determinada obra beethoveniana?
Vivemos hoje num tempo totalmente diferente do de Beethoven. A linguagem formal da música, a visão de mundo, tudo mudou. Por isso me interessou o que os compositores pensam dele hoje. Há ainda uma influência, ou todos os laços estão cortados? Não seria impensável alguém dizer: “Ah, me deixe em paz com essa velharia, faz muito tempo que essa sonata caducou, Beethoven é história da música.” Mas, para minha grande alegria, ninguém recusou a encomenda.
Compositores de cinco países europeus foram consultados. Todos se revelaram ligados a Beethoven, e honrados de poderem se mover livremente dentro do cosmos beethoveniano. Claro que nas novas obras ele não é simplesmente citado ou parafraseado, praticamente nunca se escutam alusões musicais diretas, mas se ouve o tom estilístico, certas sensibilidades, que se expressam em relação a um grande modelo.
“Ressuscitar, sim ressuscitar”, o slogan do Beethovenfest em setembro, é um verso do último movimento da Sinfonia nº 2 de Gustav Mahler. Esse compositor, por um lado, fez arranjos de obras beethovenianas, e o tomou como grande modelo para suas próprias composições.
Mahler, como regente, não só “retocou” várias vezes a Nona de Beethoven: sua Segunda sinfonia também é uma reflexão sobre essa obra. Como Beethoven, Mahler introduziu linhas vocais no tecido sinfônico: soprano, contralto, coro misto. Há também paralelos na concepção, dimensões e aspiração – sendo que é óbvia a ambição de Mahler de ainda superar Beethoven. Para mim, essa obra foi importante para demonstrar a continuidade, a forma como foi preciso se ocupar de Beethoven mais tarde. E se ele foi o primeiro romântico da música, Mahler foi, com toda certeza, o último.
Em setembro, participa do programa do Deutsche Welle Campus o compositor alemão Karlheinz Stockhausen – que nos 200 anos de Beethoven, em 1970, elaborou eletronicamente a obra dele em Kurzwellen mit Beethoven (Ondas curtas com Beethoven) –, só que será apresentada sua Gruppen, para três orquestras.
De fato. Isso não tem nada a ver com Beethoven, e sim reflete nosso desejo de trazer obras de grandes proporções no ano do jubileu: além da Nona e da Missa Solemnis, e da Segunda de Mahler, também a dispendiosa Gruppen. Faz também parte da concepção reunirmos para tal a juventude internacional, músicos de todo e mundo, que vão tocar com a orquestra juvenil Bundesjugendorchester. Para isso, pusemos no programa …quasi una fantasia…, a homenagem de György Kurtág [compositor contemporâneo húngaro] a Beethoven, e a estreia de uma peça de uma jovem compositora turca.
Não poupamos em absoluto o portentoso, o universalista, o monumental, neste ano de jubileu. Quando vamos poder voltar a escutar esses marcos da música, se não agora?
O gênio musical