Em texto publicado em 1915, Rodrigues Dória narrou a observação de trabalhadores negros que consumiam a erva às margens do rio Paraguaçu, na Bahia. Os mais velhos acendiam e passavam o fumo para os jovens, que dançavam, cantavam e riam.
A conclusão tomada pelo médico ao observar as cenas? A maconha seria capaz de levar o usuário à loucura, prática de crimes, degeneração, depravação sexual e até a morte.
“Não há nenhuma relação de equivalência entre o que ele observou e o veredito a que chegou”, explica a historiadora Luísa Saad, que escreveu o livro Fumo de Negro: a Criminalização da Maconha no Pós-Abolição.
“Só que por ele ser médico, um homem letrado, deu um tom de ciência a esse estudo de observação que fez, apesar de não ter nenhum compromisso com a verdade”, aponta.
A apontada inconsistência acadêmica não impediu os estudos do médico de ecoaram no Brasil, chegando a serem apresentados nos Estados Unidos e servindo de base para outras pesquisas que culminaram na proibição brasileira em 1932.
Racismo científico
A grande repercussão positiva de Rodrigues Dória – que se formou pela Faculdade de Medicina na Bahia e é um dos fundadores tanto da Faculdade de Direito quanto do Instituto Histórico Geográfico da Bahia – foi impulsionada por uma tese popular entre acadêmicos no período: o racismo científico.
Esta pseudociência argumentava que havia uma hierarquização entre raças, colocando principalmente os brancos acima dos negros. Estas teses foram usadas no Brasil para justificar o branqueamento da população e a marginalização dos ex-escravizados.
Estes aspectos aparecem claramente nos estudos de Rodrigues Dória, que, ao falar dos males do vício em maconha, aponta que a droga pode ser um combustível para atiçar os negros a se vingarem dos brancos, supostamente ‘adiantados’ em termos de civilização.
“Ele sempre faz questão de mencionar que os africanos trouxeram plantas de maconha quando traficados, como se a planta fosse uma forma de se vingar dos colonizadores que tiraram sua liberdade”, analisa Luísa Saad.
Histórico da maconha no Brasil
A maconha é uma planta nativa da Ásia que chegou ao Brasil nas primeiras embarcações portuguesas. Os europeus costumavam usar o cânhamo para produzir as cordas das naus, enquanto os africanos usavam a folha para o uso religioso, medicinal e recreativo em sua terra natal.
“Algumas pesquisas mostram que as pessoas escravizadas, no que pese tenham sido trazidas em condições desumanas e degradantes, conseguiam trazer algumas raízes e sementes de plantas para que conseguissem, de alguma forma, se manterem vinculados ao lugar de onde vieram”, explica a historiadora.
Apesar disso, as primeiras plantações no Brasil eram geridas por portugueses como uma forma de impulsionar a economia da metrópole. O maior interesse era as fibras de cânhamo, usadas na fabricação de papel, corda, óleo e outros combustíveis.
A primeira lei que proibia o uso e comércio da droga foi promulgada no Rio de Janeiro, em 4 de outubro de 1830. Chamada de lei do ‘Pito do Pango’, um dos apelidos da erva no Brasil – onde também era chamada de ‘Fumo de Angola’.
“É proibida a venda e o uso do ‘Pito do Pango’, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em três dias de cadeia”, diz a lei em tom racista.