Renúncia foi golpe: Lacerda e Denys derrubaram Jânio em nome de Kennedy
Alex Solnik
As tais “forças terríveis” às quais o presidente da República Jânio Quadros atribuiu a sua renúncia, a 25 de agosto de 1961 eram três: o governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda; o Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denys e o governo norte-americano de John Kennedy.
Não foi uma renúncia; foi um golpe.
É o que se conclui ao ler a cronologia do episódio, iniciado a 13 de agosto, data em que o vice-presidente João Goulart embarca para a China Comunista:
13/8/1961
– Em viagem oficial, a caminho da China, o vice-presidente João Goulart faz uma escala em Moscou, onde posa para fotos com Gherman Titov, o segundo astronauta do mundo; ele deu 17 voltas em torno da Terra em 25 horas; Gagarin tinha dado uma volta.
– Missão comercial do governo brasileiro viaja a Cuba para expandir o comércio entre os dois países.
14/8/1961
– João Goulart é recebido em Pequim por Chu En-lai, Presidente da República Popular da China.
16/8/1961
– João Goulart participa de banquete oferecido por Chu Em-Lai.
17/8/1961
– O presidente Jânio Quadros recebe extensa carta de 14 páginas do líder soviético Nikita Krushev acerca do início da construção do Muro que classifica como “a mais terrível mensagem que se possa imaginar sobre a crise de Berlim”;
– Chefe da Missão Permanente da Rússia no Brasil, Victor Azov, anuncia viagem de Jânio à União Soviética nos primeiros meses de 1962.
18/8/1961
– Governador Carlos Lacerda anuncia aumentos de gás, luz e telefone.
– O secretário particular do presidente, José Aparecido de Oliveira revela que um mês atrás, quando recebeu a Missão de Boa Vontade soviética, Jânio enviou carta a Nikita Krushev, na qual escreveu que “temos algumas coisas a oferecer e muito a receber”.
– Por volta das 10 da manhã, o governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda procura a primeira-dama, dona Eloá Quadros, no Palácio das Laranjeiras, onde estava hospedada; pede sua ajuda para falar com o presidente Jânio Quadros com urgência, o mais rápido possível, ainda naquele dia.
Dona Eloá telefona para o Palácio do Planalto. Seu marido está ocupado, recebendo as credencias do novo embaixador do Japão.
Lacerda sai contrariado. Somente cinco horas depois, às 3 da tarde recebe telefonema do presidente.
– O que o senhor pretende do governo? Pergunta Jânio.
– Prefiro falar pessoalmente. Aí em Brasília.
– Mas eu vou ao Rio amanhã. Por que não me espera aí?
– Gostaria de lhe falar ainda hoje, insiste Lacerda, cuja fama de golpista todo mundo conhecia, resumida na famosa charge em que foi comparado a um corvo.
– Então está bem – concorda Jânio. Jantaremos juntos. Pegue um jatinho da FAB e venha.
Lacerda desembarca no aeroporto de Brasília, onde é recebido pelo general Pedro Geraldo de Almeida (Jânio tinha vários generais a vigiá-lo) às 8 e meia da noite.
Dali vai direto para o Palácio da Alvorada, com mala e tudo. Quando chega, tem de esperar: Jânio estava assistindo a um filminho no cinema particular.
Depois o recebe. Manda colocar a mala nos seus aposentos e pergunta ao crítico mais mordaz de sua política externa:
– Já jantou?
Visivelmente cansado Lacerda responde que não.
– Lamentavelmente eu já jantei, disse Jânio e os empregados já se recolheram. Posso lhe oferecer um sanduíche?
Quando o sanduíche chega, Jânio diz:
– Enquanto o senhor se alimenta, me dá uma licença que eu já volto?
Na sala contígua, Jânio telefona a Pedroso Horta, o ministro da Justiça e comanda:
– O Carlos está aqui. Chame-o à sua casa e veja o que ele quer.
De volta à sala onde Lacerda terminava o sanduíche, Jânio está presente quando o ajudante de ordens informa ao governador que o ministro Pedroso Horta deseja falar ao telefone.
– Carlos, venha à minha casa – ordena Pedroso Horta que, por ser ministro estava hierarquicamente acima do governador.
– Não posso – responde Lacerda – estou com o presidente da República, só com ordem dele me ausentaria.
– Peça permissão – instrui o ministro.
Lacerda consulta Jânio, que responde:
– Vá. É melhor conversar com ele sobre os problemas do seu estado e depois volte aqui para continuarmos.
Às 9 e meia da noite Lacerda toca a campainha da casa de Pedroso Horta. O secretário particular de Jânio, José Aparecido de Oliveira também está lá. Lacerda e Pedroso se trancam numa sala, onde conversam, a sós até à 1 da manhã.
Assim que Lacerda põe os pés para fora da casa, Pedroso Horta telefona a Celino, o contínuo do Palácio da Alvorada:
– Celino, o governador Carlos Lacerda chega aí dentro de minutos. Apanhe sua mala e devolva-a. Ele vai pernoitar no hotel.
Lacerda não entende nada quando, ao chegar ao Alvorada, dá com a sua mala na mão de Celino, que lhe diz:
– O presidente já foi dormir, disse que estava muito cansado e precisava viajar cedo para Vitória.
Entrega-lhe a mala e entra.
Espumando de ódio, de seu quarto no Hotel Nacional, Lacerda telefona a Pedroso Horta:
– Não aceito essa afronta! Estou disposto a renunciar ao governo do estado.
Horta corre ao hotel para acalmar o Corvo.
19/7/1961
– Às 7 da manhã, Lacerda comunica por telefone ao deputado da UDN Adauto Lúcio Cardoso estar deciddio a renunciar ao seu mandato. O deputado passa a informação adiante e em poucos minutos eclode a crise da renúncia de Lacerda.
– Na mesma hora, no Palácio do Planalto, Jânio, que não foi a Vitória como Celino informara a Lacerda, condecora o Ministro da Indústria e Comércio de Cuba, Ernesto Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul.
– Às 7 e meia da noite, no Rio de Janeiro, em represália ou desagravo ao governo americano do qual era um dos mais profundos admiradores, Lacerda entrega a chave simbólica do Estado da Guanabara ao líder anticastrista Manuel Antônio Varona declarando: “As portas da cidade estão sempre abertas para os combatentes da liberdade cubana”.
– O vice-presidente João Goulart se encontra em Hangchov com o líder da revolução chinesa Mao-Tse-Tung, a quem definiu como “grande líder chinês”, “um dos mais importantes personagens do mundo contemporâneo” e “renomado poeta, teórico e estrategista dos movimentos populares”.
21/8/1961
– O ministro da Guerra, Odilio Denys adverte aos generais Emilio Rodrigues Jr. Chefe do Estado Maior do Exército, seu imediato e Ademar de Queirós, Comandante da 1ª. Divisão de Infantaria, comandante de todas as tropas aquarteladas na Vila Militar por terem ido ao Palácio Guanabara ao encontro do governador Carlos Lacerda em meio à crise Jânio-Lacerda. A advertência deveu-se ao fato de terem sido vistos e não devido ao motivo da visita, conspiração contra Jânio, com a qual o marechal concordava, como se verá adiante: três dias depois da renúncia ele avisou que João Goulart seria preso se voltasse ao Brasil para tomar posse.
– Deputado republicano August E. Johansen se pronuncia em Washington acerca da aproximação de Jânio com Fidel em termos ríspidos, sem pudor de se imiscuir em assuntos internos de um país independente: “é uma dissimulação hipócrita e traiçoeira”.
24/8/1961
– Lacerda faz um pronunciamento-bomba na TV no qual diz, entre outras coisas, que tinha sido convidado por Pedroso Horta para participar de “uma reforma institucional do país” ou seja, participar de um golpe, por mais absurdo que fosse supor que um ministro de Jânio convidaria um desafeto declarado para conspirarem juntos.
25/8/1961
– Jânio chega ao Palácio do Planalto às 6 e meia da manhã e anuncia aos ministros da casa sua disposição de renunciar.
– Participa da cerimônia do Dia do Soldado sem dar qualquer sinal do que ocorreria logo após, quando entrega sua carta de renúncia ao ministro Pedroso Horta, que a lê.
– Como João Goulart está ausente do país, o presidente da Câmara Ranieri Mazzili toma posse e demite todos os ministros, menos os militares.
28/8/1961
– O ministro da Guerra Odilio Denys anuncia que o vice-presidente João Goulart está impedido de retornar ao país para assumir a presidência da República, será preso se tentar e ordena que o Congresso Nacional vote o seu impedimento, deixando claro que quem manda é ele e não o presidente civil, o que caracteriza a ruptura do regime democrático. O presidente em exercício não reage.
31/8/1961
– Comissão Mista do Congresso Nacional rejeita o impedimento de João Goulart; sugere a votação da emenda que institui o parlamentarismo.