Roma, 1960 – Etíope Abebe Bikila entra para a história ao vencer maratona com pés descalços

Conquista de Bikila representou primeiro ouro olímpico para atleta da África Subsaariana; vitória em plena capital italiana pós-Mussolini foi marco para o povo etíope, colonizado anos antes pela Itália

O etíope Abebe Bikila conquistou a medalha de ouro na maratona dos Jogos Olímpicos de Roma, 1960. Tornou-se o primeiro competidor da África Subsaariana a ganhar uma medalha olímpica, mas sobretudo o primeiro atleta a vencer uma maratona com os pés descalços. Além dessa proeza sem precedentes, a vitória foi um marco para o povo etíope, colonizado alguns anos atrás pela Itália.

Bikila não estava predestinado a ser um maratonista. Membro da Guarda Imperial da Etiópia, foi descoberto por um sueco, Onni Niskanen, que viu nele um dos campeões do futuro. Com seus métodos inovadores para a época e a esperança de sucesso que depositou no guarda imperial, transformou aos poucos o jovem com forte potencial numa máquina de ganhar disputas.

Dois meses antes dos Jogos, ganhava sua primeira maratona com um tempo de 2 horas e 39 minutos. Um tempo razoável, porém incapaz de ameaçar os melhores de então. Um mês depois, no entanto, vence uma nova prova, desta vez com 2 horas e 21 minutos, o que o aproximava dos melhores tempos mundiais. Não obstante, era um desconhecido quando chegou à Itália.

A maratona dos Jogos de Roma foi marcada para transcorrer à noite. O forte calor em pleno verão na capital italiana não permitia ser corrido de dia para a segurança dos atletas.  Os russos Popov e Vorobiev bem como o marroquino Rhadi eram os favoritos.

Assista a trecho do documentário do canal History Channel sobre Abebe Bikila:

O percurso escolhido transitava por locais onde muitos feixes e outras insígnias fascistas haviam sido removidos na desenfreada atitude anti-iconoclástica pós-fascismo. Passando por mosaicos de estilo-antigo de desportistas fascistas, lemas e referências a Benito Mussolini, a Via dell’Impero, a principal via pública do Foro Italico, ligava o imponente obelisco dedicado ao Duce ao Estádio Olímpico. Flanqueada por enormes blocos de pedra travertina, gravados com textos relativos aos eventos chaves da história fascista, entre os quais se encontrava a conquista da capital da Abissínia, Adis Abeba, em 1936.

Primeiro maratonista bicampeão

Franzino, magro, pés descalços, num short vermelho vivo e uma camiseta verde, carregando o número 11, Bikila havia sido incluído na equipe de maratonistas no último momento, no lugar de Wami Biratu que tinha quebrado o tornozelo numa brincadeira de futebol. Desde o começo da corrida, Abdelesem Rhadi toma a dianteira, seguido de perto pelos russos e por Bikila. Correndo nas últimas posições do bloco dianteiro, Bikila avançou ao passar pelo Obelisco de Axium, que havia sido saqueado da Abissínia. Seguindo em direção ao sul e saindo da cidade, o descolamento de um bloco de atletas começou a se materializar: “Ao lado do inglês Kiley corre o irlandês Messitt, o belga Van der Blicher, os marroquinos Rhadi e Saudy, e aí está também o desconhecido etíope de que falamos anteriormente”, irradiava o locutor da BBC. “Ele se chama Abebe Bikila e está correndo descalço.”

No quilômetro 36, dois homens encabeçam a prova: Rhadi e Bikila. Surpreendendo com a facilidade de correr, o etíope parecia acariciar o asfalto. Reentrando na cidade pela Porta San Sebastiano com impecável ritmo, Bikila deixa para trás seu único perseguidor, o marroquino Rhadi Ben Abdesselam, justo quando passava novamente pelo Obelisco de Axium. Pouco depois do quilômetro 40, Bikila dá início a um ataque implacável ao qual Rhadi não pôde responder. O etíope voava em direção à vitória, uma proeza sem precedentes para um atleta desconhecido da crítica e do grande público. Terminou a maratona em 2 horas, 15 minutos e 16 segundos, quebrou o recorde olímpico e estabeleceu o melhor tempo mundial, antes de dançar a jiga numa demonstração de alegria debaixo do Arco de Constantino, onde muitos dos seus rivais simplesmente desabavam após concluir o percurso.

O etíope Bikila, cujo nome significa “a flor que cresce”, sagrou-se vencedor sob o arco do triunfo no exato lugar onde Mussolini se despedia de suas tropas que partiram para a colonização da Etiópia anos antes. Tornou-se herói em seu país e abriu o caminho para outros atletas. Gerações de esportistas etíopes sucederam-no com blilhantismo, como o campeoníssimo Haile Gebreselassie ou ainda Kenenisa Bekele.

Bikila conquistou a medalha de ouro também nos Jogos Olímpicos de Tóquio, 1964, desta vez correndo calçado. Seis semanas antes, fora acometido de apendicite e teve de passar por cirurgia. Ainda estava em recuperação quando chegou ao Japão, tornando-se o primeiro atleta a manter o título de uma maratona olímpica. Nos Jogos do México em 1968, corria a maratona pela terceira vez, mas teve de abandonar a prova. Seu compatriota Mamo Wolde conquistou a medalha de ouro.

Passado colonial

Apesar da facilidade com que percorreu os quilômetros da capital italiana, fascinando o público, o significado da vitória do etíope Bikila saltou à vista: há menos de 25 anos, as tropas de Mussolini conquistavam a capital da Etiópia ao cabo de uma cruel guerra colonial.

Marcando a ascensão e o futuro predomínio dos corredores de meia e longa distância do Leste da África, com a participação da equipe da África do Sul, composta somente de atletas brancos e contra os melhor equipados e melhor treinados atletas da Europa, dos Estados Unidos e da União Soviética, Bikila inscreveu seu nome e de seu país na história do esporte olímpico.

Todavia sua vitória não foi apenas da Etiópia, foi também um triunfo de Roma e dos Jogos Olímpicos. Transcendendo o fato de ter corrido descalço – pelo que é mais comumente reconhecido – concluindo dramaticamente a prova final sob as luzes de um arco de imperador que viveu há muito tempo, eclipsou, ao mesmo tempo, a memória mais recente de um aspirante a imperador.

Assista ao trailer do filme feito sobre a vida de Bikila:

Depois dos acirrados debates parlamentares sobre a imagem negativa projetada no exterior pelos estádios construídos na era fascista e pelos grafites neo-fascistas que marcaram a cidade nos dias anteriores aos Jogos, não poderia haver uma demonstração mais adequada e poderosa de um rompimento da Itália com seu passado do que a conquista gloriosa por um cidadão de sua ex-colônia. Bikila retornou à Etiópia como herói nacional. O ditado popular mais falado à época era “foram necessários um milhão de soldados italianos para invadir a Etiópia, mas apenas um soldado etíope para conquistar Roma”..

Em 1968, um acidente de carro na cidade de Sheno, a 76 quilômetros de Addis Abeba, deixou Bikila confinado a uma cadeira de rodas. Seu espirito competitivo manteve-se inalterado e Bikila chegou a ganhar uma prova de cross-country em 1970 na Noruega. Contudo, em decorrência de complicações de sua paralisia, faleceu em outubro de 1973, aos 41 anos.

No 50º aniversário de sua vitória, a Maratona de Roma de 2010 foi dedicada à memória de Bikila. Corredores etíopes ganharam tanto entre os homens quanto entre as mulheres. As mulheres conquistaram os três primeiros lugares e o vencedor masculino, Siraj Gena, completou os últimos 300 metros descalço.

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