Rússkaya Amérika: as esquecidas colônias da Rússia na América (que não incluíam só o Alasca)
Na tarde de 16 de dezembro de 1866, o czar Alexandre 2º da Rússia, seu irmão e um punhado de altos funcionários dos ministérios da Marinha, Relações Exteriores e Finanças fizeram uma reunião secreta em São Petersburgo para tomar uma decisão urgente.
Depois de apenas apresentar argumentos contra, foi vencido e a resolução foi unânime: o Alasca tinha que ser vendido para os Estados Unidos.
O imperador reconheceu o consenso e apoiou a negociação com Washington. Após três meses, a transação – que envolvia o pagamento de US$ 7,2 milhões – tinha sido aprovada pelo Senado dos EUA e, em maio de 1867, ratificada pelo presidente Andrew Johnson.
Assim se deu o fim de Rússkaya Amérika, a América russa, um episódio colonial relativamente anedótico e esquecido por muitos.
Embora breve, houve um tempo em que o império russo estendeu-se até o Pacífico, com presença permanente não só no Alasca, mas também mais ao sul, no que no início eram territórios espanhóis e logo virou a província mexicana da Alta Califórnia, atual estado da Califórnia.
“Quando hoje se fala de imperialismo, tende-se a julgar o fenômeno pelo que se sabe sobre os grandes impérios, mas não é justo comparar o colonialismo russo na América com o espanhol, o britânico ou o português, as outras potências no continente”, diz à BBC Mundo Ilya Vinkovetsky, professor da Universidade Simon Fraser em Burnaby, na Columbia Britânica, Canadá.
“Há que compreendê-lo dentro de seu próprio contexto, com suas próprias particularidades”, destaca o acadêmico, que dedicou sua carreira a pesquisar a cultura, o comércio, a política e as práticas coloniais do império russo do século 19.
Para entender melhor como foi a única experiência colonial ultramarina da Rússia, vamos começar, então, desde o início.
As primeiras expedições e o início da colonização
Dois séculos depois de espanhóis e portugueses lançarem-se na exploração, conquista e colonização da América — ao que logo se juntariam ingleses, franceses e holandeses — os russos aproximavam-se do continente pelo extremo noroeste.
A política expansionista de Pedro 1º da Rússia, Pedro “o Grande”, tinha atingido os limites do Pacífico já nos primeiros anos do século 18, quando a península de Kamchatka ficou definitivamente sob o domínio russo.
No entanto, e apesar de historiadores afirmarem que havia presença russa na América do Norte desde 1648, ainda se duvidava se havia mar entre os dois continentes.
O encarregado de esclarecer a questão foi Vitus Bering (1681-1741), um dinamarquês que navegou por aqueles mares gelados sob a bandeira russa.
A primeira tentativa aconteceu em janeiro de 1725, quando o imperador, pouco antes de morrer, colocou-o no comando de uma expedição que o levaria até os confins do império.
Acompanhado, entre outros, pelo experiente cartógrafo K.P. von Verd e pelo instrutor naval Aleksei Chirikov, Bering levou três anos para percorrer os 9.600 km de São Petersburgo até a península de Kamchatka. Mas não chegou ao ponto mais oriental da Ásia nem pôde constatar que lá havia mar ou avistar, do outro lado, a costa americana.
O que conseguiu, no entanto, em uma segunda viagem, muito mais ambiciosa, quando levou cinco anos para chegar ao Pacífico e mais três até a América do Norte.
Mas foi só em 16 de julho de 1741 que o navegador avistou o Monte San Elias, no sul do Alasca.
No trajeto de volta, durante o qual descobriu algumas das ilhas Aleutianas, com escorbuto e perseguido pelo mau tempo, que também destruiu seu navio, ele morreu em uma ilha inabitada que hoje leva seu nome.
A tripulação que sobreviveu reconstruiu o navio e chegou à margem de Kamchatka, reportando o que havia sido alcançado pela expedição.
As peles de lontra marinha que traziam e com as quais se cobriam eram de tal qualidade que foram consideradas as melhores da época.
E foram justamente as peles que desencadearia, em poucos anos, o início da colonização russa na América.
Tudo pelas peles
As peles — de lontra, marta cibelina, arminho ou raposa — eram um dos principais produtos de exportação da Rússia desde o século 15 até bem adiante do 19.
“O comércio de peles foi uma força fundamental na história econômica e de expansão territorial da Rússia desde muito antes de os russos colonizarem a Sibéria”, escreve o professor Vinkovetsky em seu livro Russian America: An Overseas Colony of a Continental Empire, 1804-1867 (“A América Russa: uma colônia ultramarina de um império continental, 1804-1867”).
“Era o único bem que eles poderiam oferecer de forma consistente a mercados estrangeiros. Era o que os ingleses procuravam quando começaram a negociar com a Rússia em 1555, (…) e o único artigo que poderia atrair o interesse do consumidor chinês, depois que (ambos os países) começaram a fazer negócios oficialmente, com a assinatura, em 1689, do Tratado de Nerchinsk (que delimitou oficialmente as fronteiras entre a China e a Rússia)”, explica.
“O produto foi em grande parte responsável pela integração da Rússia à economia global”.
E seu comércio internacional exerceu uma poderosa influência globalizadora na economia e na sociedade russa, com a chegada de produtos estrangeiros (do chá até novas tecnologias) e a penetração de novas ideias, como o mercantilismo, observa Vinkovetsky.
Como mais um capítulo dessa história particular, a bem sucedida expedição de 1742 foi seguida por outras, desta vez comerciais.
Assim, durante as décadas seguintes ocorreram diversas incursões, autorizadas pela czarina Catarina 2ª, por parte de russos ou indígenas da Sibéria que, quer colaborando, quer explorando as populações aleutas (ou unangan) por suas habilidades para a caça, entraram no comércio de peles.
No início, criaram assentamentos temporários, para os três ou quatro anos que durava cada expedição.
No final de 1790, já eram permanentes.
A intensa atividade causou redução na população animal, levando os caçadores a avançar cada vez mais no Pacífico Norte para garantir as provisões de peles.
Com uma concorrência cada vez maior, a exploração foi se concentrando em cada vez menos corporações, porém mais poderosas.
E assim seguiu até a criação, em 1799, da Rossiyskaya-Amerikanskaya Kompaniya, a Companhia Russo-Americana, uma empresa semi-privada que não só monopolizaria a exploração dos recursos, mas gerenciaria as ambições imperialistas russas no continente e toda a vida nas colônias.
Colonialismo semi-privado
“O fato de ser uma empresa comercial, um contratado do Império, que gerenciava os territórios e as pessoas do exterior fez disso um colonialismo menos arriscado e mais rentável, e proporcionou aos governantes um bode expiatório”, observa o pesquisador Vinkovetsky.
“Era conveniente porque, se a empresa tivesse sucesso, o governo imperial poderia depois reivindicar o território, os recursos, as peles. E se não o tivesse, poderia sempre marcar a empresa como ineficiente”, explica.
Como sociedade anônima, o capital era aportado pelos acionistas privados, que dividiam os lucros. Enquanto isso, o Tesouro do Estado cobrava os impostos e também podia impor outras obrigações à empresa que eventualmente gerassem mais receitas para os cofres públicos.
Havia também vantagens para a empresa, que operava sob a proteção do Império e tinha o monopólio interno garantido, o que a tornava um concorrente mais forte em um cenário de disputa com empresas britânicas e americanas pelo comércio de peles de lontra no Pacífico Norte.
A isso se somou o início da circunavegação em 1803, com almirantes da Marinha Imperial no comando e em nome do czar. Foram expedições intermitentes, caras e de alto perfil, compostas por homens da Marinha, mas também por cientistas, diplomatas, exploradores e artistas, que partiram do Báltico e cruzaram o mundo para chegar ao Alasca.
A partir de 1808 a capital da América russa passou a ser o Novo Arcanjo (atual Sitka, ao sul do Alasca), transformado em um dos melhores portos do Pacífico Norte, com navios de última geração, uma base estratégica para o comércio de peles e uma comunidade cosmopolita, cultivada e sofisticada para a época.
“Isso deu aos interesses coloniais e imperiais russos uma nova e ambiciosa perspectiva (…). E os russos começaram a considerar planos para uma maior expansão pela costa da América do Norte e do Havaí”, escreve o professor Vinkovetsky em seu livro.
Na verdade, os russos estabeleceram-se de certa forma no arquipélago do Pacífico, em Fort Elizabeth.
Foi em 1818, quando o empresário russo-alemão George Schaeffer negociou um Tratado de Proteção na ilha de Kaua’i com o chefe supremo Kaumualii , vassalo do rei Kamehameha 1º do Havaí. Mas a recusa do czar Alexandre 1º em ratificar o tratado acabou com a tentativa.
Da mesma forma, como veremos mais adiante, no tempo em que a companhia administrou a América russa, não houve avanços territoriais significativos ou constantes.
Divididos em sete distritos administrativos ou otdely, os domínios coloniais eram administrados, cada um com seu escritório e com gerentes locais. Neles, curiosamente, nunca houve mais de 700 russos simultaneamente.
E quatro em cada cinco estavam envolvidos na administração da colônia e na oferta de serviços técnicos e de defesa à frota.
Uma colônia pouco povoada
“Como o objetivo era bastante comercial, a única colônia russa de ultramar foi sempre muito pouco povoada, e essa foi uma de suas principais características”, explica Vinkovetsky.
“É por isso que não é justo comparar nesses termos o colonialismo russo na América com o espanhol ou o britânico”, prossegue.
A sociedade colonial russa foi, por outro lado, multicultural; composta não só pelos chegados da Rússia e por indígenas da Sibéria, mas também pela população nativa, incluindo os aleutianos, os tlingits e kodiaks.
Embora houvesse mais indígenas do que colonos — entre 2.000 e 3.000 — a sociedade estava rigidamente hierarquizada. Nisso, não se diferenciava das outras potências coloniais.
Os oficiais da Marinha, à frente de toda a operação desde 1818, dividiram os nativos em dois grupos: os que dependiam da Companhia (e viviam nos assentamentos) e os que não; e entre os primeiros distinguiam-se os kaury (espécie de escravos, considerados propriedade coletiva) e os vol’nye aleuty ou os “aleutas livres”.
“Também surgiu uma notável população crioula, um termo que os russos aprenderam com outras potências coloniais, porque era um tempo em que uns aprendiam com os outros”, sublinha Vinkovetsky.
Nisso e no papel da igreja, mas neste caso a ortodoxa, pode-se estabelecer um paralelo com o colonialismo espanhol.
É que, seguindo a mesma teologia pastoral do frade Bartolomeu de las Casas, na América russa também se pregou e houve missões, das quais ainda restam cerca de 90 paróquias.
Mas a história não terminou no Pacífico Norte. E em busca de mais lontras para obter peles e fonte de alimento para seus assentamentos setentrionais, os russos avançaram para o sul.
A Califórnia russa
Entre 1806 e 1807 Nikolai Rezánov, representante da Companhia Russo-Americana, visitou o presidio espanhol da Yerbabuena, atual São Francisco.
E em vista da fraqueza do poder colonial da Espanha por causa das guerras napoleônicas e da insurreição de grande parte das colônias, recomendou ao governo russo a ocupação pacífica da região norte da Alta Califórnia.
Em 1811 Ivan Aleksandrovich Kuskov, um administrador da Companhia, explorou as costas do território, e em setembro do ano seguinte fundou Krépost Ross, mais conhecido como Fort Ross, nas terras do povo pomo.
“Os nativos estavam interessados em que os russos estabelecessem-se lá, como contraposição aos espanhóis”, relata Vinkovetsky.
O forte foi povoado por alguns soldados, marinheiros e caçadores russos, nativos do Alasca e locais e californianos crioulos.
Em novembro de 1822, quando a Alta Califórnia passou a ser uma província mexicana, o forte russo ficou com um status impreciso (povoado por súditos do Império Russo, mas com soberania de jure incerta) e com rendimentos agrícolas insuficientes.
O custo de manutenção, o fato de não dar dividendos suficientes e um acordo vantajoso com a então Companhia da Baía de Hudson inglesa – dedicada ao comércio de pele de lontra, hoje a corporação mais antiga do Canadá – para abastecer os assentamentos do Alasca levou os russos a vender o forte ao cidadão mexicano John Sutter.
Os últimos conquistadores russos abandonaram o local em 1º de janeiro de 1842, e em 1848, pelo Tratado de Guadalupe Hidalgo, o forte, com toda a Alta Califórnia até então mexicana, passou para as mãos dos EUA.
Em 1850, a CRA estabeleceu um escritório em São Francisco para negociar acordos comerciais com empresas americanas, uma década e meia antes que tudo chegasse ao fim.
O fim da ‘periferia’ e um grande negócio
“Desde a sua criação, tanto a Companhia Russo-Americana quanto o governo estiveram mais interessados em ganhar acesso comercial e influência na China e no Japão do que na América do Norte”, escreve Vinkovetsky em sua pesquisa sobre a que foi a única colônia ultramarina russa.
Assim, com as conquistas territoriais no Extremo Oriente Asiático entre 1858 e 1860, o interesse da Rússia na Manchúria e a importância estratégica cada vez maior do porto de Vladivostok – pela proximidade com a China e a Coreia – em detrimento do Novo Arcanjo, as elites russas começaram a ver a América russa como o que na realidade já era: “a periferia da periferia”.
“Então eles finalmente decidiram que não merecia nem o investimento, nem o risco”, exposta como estava à invasão da frota britânica.
E assim chegamos à compra territorial talvez mais rentável da história, uma pechincha, ainda que na época não tenha sido vista como tal.
Se levarmos em conta a inflação, os US$ 7,2 milhões pagos pelos EUA em 1867 ao czar russo Alexandre 2º pelo Alasca são equivalentes a pouco mais de US$ 100 milhões hoje (cerca de R$ 525 milhões). Um número absurdamente barato para se comprar o que é hoje o estado mais extenso dos Estados Unidos.
Seja como for, “o Alaska na nossa imaginação continua a ser aquele tesouro de recursos inesgotáveis, um tanque estratégico cheio de combustível, um paraíso de aventuras na natureza para empresas e investidores”, diz Vinkovetsky.
“É uma terra de possibilidades, vasta o suficiente para abrigar muitos mitos”, continua.
O da “última fronteira” americana e o da “colônia perdida” da Rússia. Ou do que poderia ter se tornado a América russa.