“Eu me sinto como um pássaro de asas cortadas, que fica se atirando contra as barras da gaiola. ‘Me deixem sair!’, grita uma voz dentro de mim”.
O relato de Anne Frank faz parte do diário que ela escreveu entre 12 de junho de 1942 e 1º de agosto de 1944 – a maior parte no período em que permaneceu confinada nos fundos de um prédio de três andares, em um esconderijo apelidado de anexo secreto, no nº 263 da rua Prinsengracht, em Amsterdã, na Holanda.
Se não tivesse morrido, de tifo e inanição, no campo de concentração nazista de Bergen-Belsen, na Alemanha, estaria completando 90 anos.
O diário com capa de pano xadrez que ela ganhou de presente em seu 13º aniversário virou livro póstumo na Holanda, em 1947, com o título de Het Achterhuis (O Anexo Secreto, em tradução livre).
Nos EUA, onde foi lançado em 1952, rebatizado de The Diary of a Young Girl (O Diário de Uma Jovem Garota, em tradução livre), chegou a ser rejeitado por 15 editoras.
‘”Tolo”, “enfadonho” e “inoportuno” foram alguns dos adjetivos usados pelo editor Alfred A. Knopf para justificar sua recusa. “Não passa de um registro monótono de brigas típicas de família, amolações triviais e emoções adolescentes”, avaliou o dono da editora que levava seu sobrenome.
Ao longo de décadas, a jovem que emocionou o mundo ao relatar a perseguição nazista aos judeus despertou tanto a ira de detratores, como o ensaísta francês Robert Faurisson, de The Diary of Anne Frank – Is It Authentic? (O Diário de Anne Frank – Ele é autêntico?, em tradução livre), quanto a simpatia de admiradores, como o líder sul-africano Nelson Mandela e o escritor americano Philip Roth.
Enquanto o primeiro declarou que, enquanto esteve preso, o diário o encorajou a lutar contra o apartheid, o segundo afirmou, em Diário de Uma Ilusão (1979), que Anne foi “uma escritora maravilhosa”. “Um assombro para uma menina de 13 anos”, sublinhou.
Em 1960, a casa onde Anne Frank permaneceu escondida dos 12 aos 15 anos foi transformada em museu. Desde então, recebe uma média de 1,2 milhão de visitantes por ano.
Polêmicas associadas a Anne e seu diário, aliás, não faltam. Em 1983, uma escola do Alabama (EUA) tentou banir o diário sob a alegação de que era “depressivo”. Em 2018, um colégio de Vitória (ES) suspendeu sua leitura por ter sido considerada “pornográfica”.
“A cada ano, na proporção que diminui o número de testemunhas oculares do Holocausto, a importância de O Diário de Anne Frank tende a crescer”, afirmou Jan Erik Dubbelman, responsável pelo departamento internacional da Casa Anne Frank, em Amsterdã.
“Ele tem muito a nos ensinar sobre o quão frágil a vida pode ser e o quão urgente e necessário é proteger a dignidade humana.”
1 – Quantas versões de “O Diário de Anne Frank” existem?
Quatro. A primeira delas, chamada de a versão “A”, é o manuscrito original, sem cortes. A segunda, ou “B”, é a versão revisada pela própria Anne. Quando ouviu no rádio, em 29 de março de 1944, que Gerrit Bolkestein, um membro do governo holandês no exílio, pretendia transformaria cartas, diários e afins em documentos históricos assim que a Segunda Guerra acabasse, a jovem decidiu reescrever seu diário, usando nomes falsos – a família Frank se tornaria os Robin – e adotando o gênero epistolar.
“Imagine como seria interessante se eu publicasse um romance sobre o Anexo Secreto. Só o título faria as pessoas acharem que é uma história de detetives”, escreveu, radiante, naquele mesmo dia.
A terceira, ou “C”, é a versão editada por seu pai, Otto Frank, em 1947. Nela, omitiu detalhes considerados desnecessários, como as reflexões de Anne sobre sexualidade – a certa altura, ela descreve a genitália feminina como um “buraquinho tão pequeno que mal consigo imaginar como um bebê pode sair dali” – ou suas explosões de raiva contra a mãe, Edith.
A quarta e última, a “D”, é a versão revista, ampliada e organizada pela escritora e tradutora alemã Mirjam Pressler. Lançada em 1995, a “edição definitiva”, de mais de 700 páginas, resgata os trechos suprimidos pelo pai em 1947.
2 – A que horas Anne Frank escrevia em seu diário?
Em geral, à tarde, quando boa parte dos moradores do “anexo secreto” tirava um cochilo. O esconderijo, um labirinto de cômodos com pouco mais de 120 metros quadrados, era dividido entre a família Frank (Otto, Edith, Margot e Anne) e a família van Pels (o sócio de Otto, Hermann, sua esposa, Auguste, e seu filho, Peter), além de um dentista amigo das duas famílias, Fritz Pfeffer.
Escritora compulsiva, Anne usou um diário, dois cadernos e 324 folhas avulsas de papel colorido para escrever e reescrever suas memórias. O dia dela, na maioria das vezes, começava cedo: por volta das 7h, ela pulava da cama para se lavar e tomar café.
Depois das 8h30, quando os funcionários chegavam ao armazém para trabalhar, não podia mais fazer barulho. De meias ou descalça, evitava os degraus mais barulhentos das escadas, não utilizava água corrente, nem dava descarga na privada. Tossir, espirrar ou dar risadas era proibido. Conversar, só em sussurros.
Anne passava as manhãs lendo e estudando. Por volta das 12h30, quando os funcionários saíam para almoçar, ela fazia sua refeição – a comida era racionada e carne, leite e ovos eram itens cada vez mais escassos – e, em seguida, ligava o rádio na BBC para ouvir notícias.
Como nenhum dos oito moradores, por medida de segurança, tinha autorização para deixar o anexo, quem levava roupas e alimentos para eles eram quatro empregados de confiança de Otto: Miep Gies, Johannes Kleiman, Victor Kugler e Bep Voskuijl.
Banho, só aos sábados ou domingos. E, mesmo assim, de caneca, em uma tina com água aquecida. Por medida de segurança, as cortinas estavam sempre fechadas.
3 – Quem era Kitty, a quem Anne direcionava muitas das mensagens do diário?
Nem colega de turma, como sugerem alguns, nem amiga imaginária, como especulam outros. Kitty Francken era uma das protagonistas de Joop ter Heul, uma série de cinco livros infanto-juvenis escrita pelo romancista holandês Setske de Haan sob o pseudônimo de Cissy van Marxveldt.
Publicados entre 1918 e 1925, os quatro primeiros volumes narram o dia a dia de um grupo de amigas, da fase escolar à maternidade.
Durante muito tempo, Anne endereçou suas cartas no diário às personagens da série: Conny, Marianne, Phien, Emmy, Jettje e Poppie. Até que, ao ouvir pela BBC o pronunciamento do ministro da Educação holandês, Gerrit Bolkestein, que prometera publicar os relatos dos sobreviventes da guerra, Anne resolveu dar ao diário o nome de Kitty.
4 – O esconderijo foi denunciado ou descoberto por acaso?
Até dezembro de 2016, a hipótese mais aceita era a de que Anne Frank e os demais moradores do “anexo secreto” teriam sido vítimas de uma denúncia anônima. No entanto, um estudo da Casa de Anne Frank, coordenado pelo pesquisador Gertjan Broek, indica que o esconderijo pode ter sido encontrado por acaso.
Os nazistas que descobriram o paradeiro dos clandestinos no dia 4 de agosto de 1944 estariam, na verdade, investigando uma possível fraude na distribuição de cupons de alimentos – meses antes, dois funcionários da empresa que funcionava no mesmo prédio, Martin Brouwer e Pieter Baatzelaar, foram presos acusados de vender cupons de forma ilegal – ou uma empresa que dava permissão de trabalho a judeus.
“A hipótese de traição não está descartada”, afirmou, à época, Ronald Leopold, diretor-geral da instituição, “mas outras hipóteses devem ser consideradas”.
5 – O diário é autêntico?
Durante muito tempo, houve quem afirmasse – revisionistas que contestam o Holocausto, principalmente – que o relato de Anne Frank teria sido forjado.
Algumas teorias apontam Otto Frank, o pai de Anne, como o verdadeiro autor. Outras, Miep Gies, a secretária do armazém que guardou os pertences que não foram levados pelos nazistas e, em junho de 1945, os entregou ao único sobrevivente da família.
Outras, ainda, o dramaturgo americano Meyer Levin, o primeiro a tentar adaptar o diário para o teatro.
Um dos muitos defensores da tese, Heinrich Buddeberg, um líder político de direita alemão, chegou a ser processado por calúnia e difamação.
Contratados pelo Instituto para Documentação de Guerra, especialistas forenses em caligrafia puderam comprovar a autenticidade do diário.
6 – A obra já entrou em domínio público?
Segundo a Fundação Anne Frank, que detém os direitos da obra, não. A instituição, fundada por Otto Frank em 1963 e sediada na Suíça, alega que O Diário de Anne Frank tem coautoria dele – que o editou em 1947 – e, por essa razão, só cairá em domínio público em 2051.
De acordo com a legislação holandesa, uma obra literária pode ser publicada por qualquer editora sem precisar pedir autorização ou pagar direitos autorais aos herdeiros no dia 1º de janeiro que se segue ao aniversário de 70 anos da morte do autor ou do último autor vivo.
Otto Frank morreu em 19 de agosto de 1980, aos 91 anos. Traduzido para mais de 70 idiomas, O Diário de Anne Frank já vendeu mais de 35 milhões de exemplares – 400 mil deles só no Brasil. Desde que foi publicado pela primeira vez, em 1947 na Holanda e em 1952 nos EUA, deu origem a diversas adaptações: de peças a filmes, de documentários a quadrinhos, de animações à realidade virtual.
7 – Como foram os últimos dias de Anne Frank no campo de concentração de Bergen-Belsen?
Nanette Blitz Konig, de 90 anos, foi uma das últimas pessoas a verem Anne Frank com vida. As duas estudaram juntas no Liceu Judaico, em Amsterdã.
Já na escola, Anne deixava transparecer sua paixão pela escrita. Quando indagada por uma de suas colegas o que tanto escrevia em seu diário, respondia: “Não é da sua conta!”. Seu sonho, quando crescesse, era ser jornalista ou escritora.
Por infelicidade, Anne e Nanette voltaram a se encontrar, através de uma cerca de arame farpado, no campo de concentração de Bergen-Belsen.
“Estava careca e muito debilitada. Praticamente uma morta-viva”, descreve Nanette, que conheceu o marido, o húngaro John Konig, na Inglaterra, e, desde 1953 vive no Brasil, na companhia dele.
Anne e Margot, sua irmã, morreram em fevereiro de 1945, aos 15 e 18 anos, respectivamente. Seus corpos foram enterrados em valas comuns. O campo de concentração de Bergen-Belsen foi libertado por tropas inglesas em 12 de abril de 1945.