Shalôm: paz em plenitude, mesmo diante da opressão e do medo

Todos os Santos I, Wassily Kandinski, 1911, óleo sobre tela, Städtische Galerie in Lenbach, Munique, Alemanha.

Shalôm!

Shalôm aléikhèm!

Shalôm para vocês!

Neste domingo (23) os cristãos católicos encerram um período muito especial inserido nos 50 dias da celebração do Tempo da Páscoa: é denominado de Oitava da Páscoa. O sentido é místico (seguimento em grande proximidade os passos do Mestre): vivemos todos os dias desde o Domingo da Páscoa como se fosse um oitavo da semana, como se todo o tempo estivesse concentrado num único dia, o da Ressurreição e da grande alegria.

É um tempo raro, mais raro ainda é vive-lo nesta época frenética, colérica, na qual a fé parece ter se refugiado em fórmulas prontas sectárias. Viver este “oitavo dia da semana” como uma extensão do momento fundante do seguimento a Jesus Cristo, sua ressurreição, e a vitória da esperança sobre o medo e a dor.

A Liturgia da Palavra proposta pela Igreja acontece em torno de dois episódios ligados à ressurreição tomados do Evangelho de João (Jo 20, 19-31), o último deles um dos eventos mais conhecidos dos evangelhos, quando Tomé, que estivera ausente do primeiro encontro do Ressuscitado com os discípulos, encontra-o. É a origem das expressões “ver pra crer”, “sou como São Tomé” e assemelhadas.

Proponho que nos concentremos no primeiro encontro. Os discípulos estavam desnorteados e apavorados diante da perda de seu Mestre, preso, torturado e morto pelo consórcio entre as elites judaicas e o exército de ocupação romano, e pela onda de perseguições desencadeada a seguir.

Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana,

estando fechadas, por medo dos judeus,

as portas do lugar onde os discípulos se encontravam (v19)

Era um momento em tudo parecido com o que vivemos hoje, no Brasil e no mundo. A ameaça da trevas, a perseguição aos pobres e aos que os defendem a concentração do poder e da riqueza nas mãos das elites, a praga corrupção espalhada por toda a terra, os ricos a vender os pobres por um par de sandálias (Am 2,6), por uma emenda constitucional, pela terceirização das relações de trabalho, pela liquidação da Previdência Social.

Em meio ao fechamento e ao medo, Ele chegou. Sua presença e palavra mudaram tudo:

Shalôm aléikhèm! A paz esteja com vocês!

A tradicional saudação judaica não é apenas um cumprimento formal. Não é “olá! Como estão vocês?”. E não apenas um desejo de paz –ausência de brigas ou dissenções ou guerras. É muito mais..

É a expressão do desejo de que repouse a plenitude de todos os bens sobre aqueles a quem se dirige a saudação. É a manifestação de qual a vida deve ser pretendida.

Shalôm aléikhèm! A paz esteja com vocês!

O Ressuscitado não se contentou em saudar seus amigos uma vez, mas o fez por duas vezes:

Jesus entrou e pondo-se no meio deles,

disse: “A paz esteja convosco”.

Depois destas palavras,

mostrou-lhes as mãos e o lado.

Então os discípulos se alegraram

por verem o Senhor.

Novamente, Jesus disse: ”A paz esteja convosco.

Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. (vv. 19-20)

Nesta saudação reiterada, Jesus expressou todo o conteúdo de seu ministério: uma vida de plenitude para todos, uma vida de bens partilhados e abundância, de resgate dos pobres e oprimidos, de fraternidade e amor.

Mas há mais, na saudação: Jesus indicou aos seus amigos que seu ministério, confiado por seu Pai, passou a ser responsabilidade de todos. A todos os discípulos e discípulas, a todos os amigos e amigas do Mestre cumpre assumir a missão do Primeiro. Não é algo que seja reservado a uma pequena elite eclesial –a própria ideia de uns poucos apropriarem-se da herança e missão é em si a traição ao Mestre.

É para todos. No Brasil de hoje, significa rejeitar o projeto das elites, excludente, escravocrata, agarrado à idolatria ao dinheiro e aos valores do Império; significa mergulhar no país misturado e fundado como expressão de reunião, caldeirão, cheiros e cores: Paratodos.

A saudação judaica é, em  verdade, uma pequena oração. Jesus chegou aos seus com uma pequena oração: Shalôm aléikhèm!

É rezar-agir Shalôm.

Um rabino místico, profético, Abaham Itzhak Kuk (1865-1935), escreveu uma vez que rezar é assumir compromisso com a missão do Pai, com o Shalôm:

“(…) na oração devemos ter em mente que nossa intenção é remover as trevas e o mal da face do mundo e fortalecer a bondade e a luz da plenitude da vida divina”.[1]

A missão Shalom é para todos. A vida Shalom é para todos.

[Mauro Lopes]

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