Sobral Pinto e Prestes: duas vidas que se cruzam

GERALDO PEREIRA 

sobral pinto
Para o companheiro Francisco Soares de Souza, sindicalista e líder frentista, admirador de Sobral Pinto.

Agradeço a Jorge Amado ter conhecido o admirável e saudoso ser humano que foi Heráclito Fontoura Sobral Pinto, de quem me tornei amigo, amizade que durou mais de 4 décadas, décadas de lições aprendidas para não desaprender jamais.

Heráclito Fontoura Sobral Pinto era mineiro de Barbacena, onde nasceu em 05 de novembro de 1893. Estudou na Faculdades de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, em 1917 estava formado. Sua banca de advocacia entra em atividade em 1919.

Faleceu, no Rio de Janeiro, em 30 de novembro de 1991, deixando bem mais pobre a sua Pátria e o seu povo. Com o seu desaparecimento perdeu o Direito a sua grande voz, a liberdade o seu amante amantíssimo, dedicado que lhe foi extremamente fiel.

Sendo o segundo maior advogado que o Direito brasileiro produziu em toda a sua existência (o primeiro foi Ruy), transformou a sua Banca de Advocacia e Saber numa policlínica popular, para todos os doentes, em todas as épocas que necessitassem de liberdade.

Por lá passaram, além de Luís Carlos Prestes, Graciliano Ramos, Adauto Lúcio Cardoso, Juscelino Kubistchek, Carlos Lacerda, Miguel Arraes, Hélio Fernandes, Mauro Borges, Carlos Marighela, Francisco Julião, Gregório Bezerra, Oswaldo Pacheco, Luís Tenório de Lima e uma infinidade de vítimas do arbítrio que se instalou no Brasil, em 1937, com a ditadura de Getúlio Vargas  e em 1964, com o golpe militar contra o governo João Goulart.

Tínhamos a mesma paixão, paixão pelo América do Rio de Janeiro: pertencemos durante anos ao seu Conselho Deliberativo.

Nunca vi o velho Sobral mais alegre do que quando o clube do nosso coração levantou o campeonato carioca de 1960. O vi extremamente triste, indignadíssimo quando o Conselho ao qual pertencíamos aprovou o nome do General Médici, então presidente da República, como presidente de honra do nosso América. Ele esteve ausente dessa reunião. Na reunião seguinte  compareceu. Foi à tribuna, fez um violentíssimo discurso contra o ato e contra o ditador, perguntou: “Quem foi o responsável por esse ato? SE eu estivesse aqui teria impugnado essa proposta e teria votado contra. O América não precisa disso!”

Vivíamos uma ditadura cruel, o próprio Sobral Pinto havia sido preso e jogado brutalmente no camburão, na cidade de Goiânia.

Após o discurso, deixou o plenário, acompanhei-o até a sua residência, na Rua Pereira da Silva, no bairro das Laranjeiras, onde morou por mais de 75 anos. Despediu-se de mim dizendo: “Não piso mais no América”.

Já tentei diversas vezes escrever sobre Sobral Pinto, sem citar Luís Carlos Prestes, coisa absolutamente impossível. Essas duas existências, esses dois grandes homens tiveram suas vidas interligadas. Prestes, marxista, ateu, Sobral Pinto, líder católico, apostólico romano, conservador, anticomunista, ambos nos deram exemplos de dignidade humana diária. Sobral Pinto, aos 95 anos, ainda trabalhava para viver. Prestes, deixo que sobre ele fale o mestre Sobral Pinto: “Por maiores que sejam as suas culpas, há nele alguma coisa de grande e elevado. Se ele tivesse pensado somente em si, como aconteceu com o Góis Monteiro, o Getúlio, o Juarez, e tantos outros, seria estas horas General do Exército brasileiro, e quiçá, Ministro da Guerra. Em 1930, não lhe faltaram oferecimentos, os mais sedutores. A tudo resistiu, porém, para ficar fiel às suas ideias, erradas e funestas, é verdade, mas adotadas e seguidas com rara sinceridade”.

Na ditadura de Getúlio não tinha um advogado com coragem suficiente para defender Luís Carlos Prestes. Sobral Pinto assume a sua defesa, a batalha é travada em favor de Prestes e, também, para salvar a sua filha Anita Leocádia, nascida num campo de concentração da Alemanha nazista, para onde fora enviada Olga Benário Prestes, sua mãe.

Antes, em 03 de junho de 1936, o advogado Heitor Lima ingressou na Suprema Corte, como era chamado o Supremo Tribunal Federal, com um pedido de ‘Habeas Corpus’, em favor de Olga, a fim de evitar a sua expulsão do Território Nacional. Na petição ele apela para o presidente da Corte, Ministro Edmundo Lins,  que “o presente pedido se processe sem custas”… “Por que a paciente se encontra absolutamente desprovida de recursos. O vestido que traz hoje é o mesmo que usava quando foi presa; e o pouco dinheiro os valores e as roupas que a polícia apreendeu na sua residência não lhe foram restituídas e que faça submeter a paciente a uma pericia médica, no sentido de precisar seu estado de gravidez”. Olga estava grávida de sete meses.

O pedido é indeferido. O advogado Heitor Lima vai à replica: “Se a justiça masculina, mesmo quando exercida por uma consciência, do mais fino quilate, como o insigne presidente da Corte Suprema, tolhe a defesa a uma encarcerada sem recursos, não há de a história da Civilização brasileira recolher em seus anais judiciários o registro dessa nódoa: a condenação de uma mulher, sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Palácio da Lei. O impetrante satisfará a despesa do processo. Rio de Janeiro, 04 de junho de 1936. Heitor Lima, advogado.”

As custas do processo totalizaram 14$800 (quatorze mil e oitocentos reis).

O processo foi julgado e a decisão pela Suprema Corte, em 17 de junho de 1936 foi a seguinte:

Nº 26155 – Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, impetrado pelo Dr. Heitor Lima, em defesa de Maria Prestes, que ora se encontra recolhida à Casa de Detenção, afim de ser expulsa do território nacional, como perigosa à ordem pública e nociva aos interesses do país.

A Corte Suprema, indeferindo não somente a requisição dos autos, do respectivo processo administrativo, como o comparecimento da Paciente e bem assim a perícia médica afim de constatar o seu estado de gravidez, e atendendo que a mesma Paciente é estrangeira e a sua permanência no País compromete a segurança nacional, conforme se depreende das informações prestadas pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça; atendendo a que em casos tais não há como invocar a garantia constitucional do habeas- corpus, a vista dos dispositivos  artigo 2, do Decreto nº 702, de 21 de março deste ano;

ACCÓRDA, por maioria, não tomar conhecimento do pedido.

Custas pelo impretante.

Corte Suprema, 17 de junho de 1936.

Edmundo Lins, presidente, Bento de Faria Relator.

Uma decisão vergonhosa e mesquinha que cobriu de vergonha todos os membros daquela Corte. Entregar aos carrascos nazistas uma mulher grávida de 7 meses, casada com um brasileiro.  A sessão foi  presidida pelo ministro Edmundo Lins, com a presença de todos os ministros, componentes da mesma, a saber: Hermenegildo de Barros, vice-presidente; Bento de Faria, relator; Eduardo Espínola, Plinio Casado, Carvalho Mourão, Laudo de Camargo, Costa Manso, Octávio Kelly, Ataulpho de Paiva e Carlos Maximiliano. A decisão da Suprema Corte foi a seguinte: “Não conheceram ao pedido contra os votos dos ministros Carlos Maximiliano, Carvalho Mourão e Eduardo Espínola, que conheciam e indeferiam”.

Olga foi metida no navio La Coruña, que partiu do Rio de Janeiro, em 23 de setembro de 1936; chegando a Hamburgo em 18 de outubro. É imediatamente entregue aos seus carrascos, levada para prisão feminina nazista de Barnimstrasse, onde dá à luz a uma menina, em 27 de novembro de 1936, que recebeu o nome de Anita Leocádia. Ficando com a filha, na fase de amamentação até os 14 meses.  Depois a menina é entregue à Dona Leocádia mãe de Prestes, sua avó, que se encontrava na Europa, lutando, clamando pela liberdade do filho.

Graças à solidariedade recebida conseguiu salvar a criança das garras das bestas nazistas.

Em março de 1938 Olga é transferida para o campo de concentração Lichtenburg, sendo um ano após levada para outro campo de concentração, esse só de mulheres, o Ravensbrück, onde como cobaias serviam para experiências médicas. Olga foi assassinada em 1942 no campo de extermínio de Bernburg, onde centenas de milhares de judeus tiveram o mesmo fim.

Geraldo: Dr. Sobral e a expulsão de Olga?

Dr. Sobral: Se eu fosse  advogado de Olga, Olga não teria sido expulsa, não teria sido expulsa!

O advogado escolhido foi o Heitor Lima, era a coisa mais simples desse mundo. O Código Civil Brasileiro, declara no artigo 6º que a personalidade humana, começa com o nascimento, mas, a lei assegura e garante desde a concepção o direito do nascituro, ela estava grávida de 7 meses, grávida de quem? De um brasileiro, ficou grávida onde? No Rio de Janeiro, território Nacional, então aquele feto era brasileiro, sendo brasileiro não podia ser extraditado porque a lei de extradição, de expulsão, não permite que o brasileiro seja expulso ou extraditado. O brasileiro que pratica um crime no estrangeiro vem para o Brasil, a Nação pede ao Brasil para extraditar, o governo não pode extraditar. Compromete a processá-lo aqui, mas não extradita, ele não manda. Uma das partes tinha que ter isso. A Lei não permite a expulsão de brasileiro e esse feto é brasileiro. Era canja isso e o advogado não fez isso.

Geraldo: E o senhor não poderia orientá-lo?

Sobral: Nem eu sabia, só vim a saber depois, porque isso foi em setembro de 36, e eu só fui advogado do Prestes em janeiro de 1937. Eu fui convidado pelo Tragino Ribeiro presidente da Ordem dos Advogados, ele bateu à  porta de 6 advogados, alguns dos quais, supôs ele que fossem comunistas ou esquerdistas, ele me disse eu procurei aqueles que pensei que por suas idéias tinham obrigação de defendê-lo, mas todos eles recusaram. Ele então foi para um católico e o católico recusou em nome do catolicismo, nessa altura, ele louco, o juiz a exigir indicação de um nome. Ele então vai a mim e diz: “Sobral, não é possível que a Ordem não tenha…” eu disse “Não! Você está sendo generoso, porque a lei autoriza você indicar e ninguém pode recusar, e se recusar você pode suspender. O Conselho suspende, está na Lei. Você está sendo generoso. Mas esse católico não sabe o que é a caridade cristã. Ele não conhece o evangelho: “Aquele que é do reino de Deus tem que ser amigo, não só do amigo, não só do amigo, mas do inimigo.”

Fazer bem àquele do qual recebeu o mal está no Evangelho, isso que Santo Agostinho resumiu numa frase lapidar: “Odiar o pecado e amar o pecador”.

Geraldo: Dr. Sobral, após o senhor ser indicado pela Ordem, como foi o seu primeiro encontro com Prestes, na condição de seu advogado?

Sobral: Eu fui a primeira pessoa com a qual ele se entendia após a prisão. Ele tinha sido interrogado pelo juiz do Tribunal de Segurança que tinha o processo dele. Foi apenas interrogado e saiu.

A primeira pessoa com quem ele conseguiu falar francamente fui eu.

Então ele durante uma hora e meia, numa exaltação tremenda, ele atacou o governo, atacou o Tribunal de Segurança, atacou o tratamento brutal que lhe estava sendo aplicado em incomunicabilidade rigorosa, atacou a Ordem dos Advogados, atacou a mim dizendo o que é que eu poderia fazer se o senador Chermont havia requerido um habeas corpus ao Tribunal, com autorização do Senado estava preso e sendo processado. “O que é que o senhor um ‘advogadozinho’ pode fazer?”. E naquela uma hora e meia de um discurso extraordinariamente exaltado, nesse discurso muita coisa era verdade. Muita coisa não era, então, ele me proibiu de apresentar a defesa.

Geraldo: Como se deu a aproximação do senhor com a Dona Leocádia, mãe do Prestes?

Sobral: No dia que eu entrei com a petição ao Tribunal, em defesa do Prestes, eu fui à prisão onde ele se encontrava, para lhe entregar uma cópia, mandei levar. Eu não fui ao quarto dele, porque foi uma coisa desagradável, o que tinha acontecido antes.

Ele levou mais de meia hora e pediu para vir à minha presença, o comandante autorizou. Ele veio com dois guardas, um de cada lado. Diz-me: “Eu queria perguntar ao senhor, se o senhor realmente entrou com essa petição?” Eu respondi: “É evidente que sim. Eu não seria capaz de trazer ao senhor, palavras que não teria apresentado ao Tribunal, sobretudo ao senhor que não tem meios de verificar se entrei. O senhor não tem ninguém em contato, a única pessoa em contato com o senhor sou eu.” Peguntei: “Por que?” Respondeu-me: “A petição está muito bem feita, sobretudo, muito corajosa. Meus parabéns!”

A censura esqueceu de avisar os jornais, que não publicassem nenhuma defesa no Tribunal de Segurança Nacional. Um comunista pediu uma certidão dela e levou para o jornal ‘O Radical’. O jornal publicou, na primeira página. E outro comunista, marinheiro francês, mandou para a dona Leocádia, que se encontrava em Paris. Ela leu a petição e se entusiasmou. Escreveu ao Prestes dizendo: “ tenha confiança no doutor Sobral. Não há motivo para recusar a sua defesa”. Ele mudou de orientação e aceitou a minha defesa.

A correspondência entre ela e Sobral Pinto é constante, em 19 de março de 1937, ele dá ciência ao Ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, através de uma carta sua: “Honrando o apelo angustioso que Dona Leocádia Prestes me dirige, do seu penoso exílio, passo às mãos de V.Exa. a carta que ela, aflita e esperançada, escreveu ao senhor Ministro da Justiça do Brasil. Católico e patriota, eu me honro com o desempenho desta missão, de que me vi investido pela veneranda Mãe de Luís Carlos Prestes. Tudo farei, na medida das minhas energias morais e da minha capacidade profissional, para evitar que o Governo bárbaro e odiento de Hitler pratique a monstruosa iniquidade de tirar das mãos de sua mãe uma tenra criança de 10 meses. Se me dirijo agora a V.Exa., na qualidade de advogado ex-officio de Luís Carlos Prestes, é porque não posso alijar da minha convicção a certeza de que cabe ao Governo brasileiro a maior responsabilidade desse crime contra os direitos da maternidade, que ora se prepara, fria e cruelmente no recinto de uma prisão da outrora e gloriosa Germânia. Como admitir, assim, justificativa para o ato do Governo Brasileiro, que entregou, consciente e deliberadamente Olga Benário Prestes à vingança do racismo odiento e perseguidor de Hitler. Cruzar as autoridades brasileiras, os braços ante a iniquidade que ora se projeta levar adiante contra um coração materno, num dos presídios políticos da Alemanha, é procedimento que não se compreende que a consciência cristã profliga”.

Respondendo a outra carta recebida de Dona Leocádia diz o notável jurista, que um delegado de polícia vai falar com Prestes, na Casa de Correção para saber “em que País, e em que data Luís Carlos Prestes teria se casado com Olga Benário Prestes. Das respostas do filho de V.Exa. é que irá depender a situação da menina Anita Leocádia”.

Antes foi a luta para encontrar um Tabelião a fim de lavrar a escritura pública de reconhecimento, por parte de Luís Carlos Prestes, de sua filha Anita Leocádia. Sobral Pinto bateu às portas de quase todos os cartórios e só encontrou o medo e a má vontade. Isto sem falar em alguns membros do Partido Comunista que não se mostravam satisfeitos com a sua atuação no processo. A esse respeito escreve: “Consolo-me, porém, com as declarações do filho de V.Exa. feitas de público, de que ‘estando cercado na Polícia Especial, só de vermes, apareceu-lhe, afinal, um homem’.

Este homem fui eu.” Mais adiante, na sua defesa oral, acrescentou Luís Carlos Prestes: “O senhor Sobral Pinto exerce a advocacia como um sacerdócio”.

O prazo para o reconhecimento da paternidade de Anita Leocádia praticamente está no seu final, Sobral Pinto consegue um Tabelião e envia diretamente à Gestapo uma certidão com a respectiva versão alemã da escritura de reconhecimento da menor Anita Leocádia.

O que pouca gente sabe, o que o Brasil precisa saber é que esse documento pelo qual Sobral Pinto tanto lutou, foi ele que salvou a menina das garras odientas da Gestapo.

Em outra carta datada de 12/05/1937, Sobral Pinto escreve para dona Leocádia: “Exma. Sra. D. Leocádia Prestes. Obtive ontem, finalmente, autorização do Chefe de Polícia, para entregar ao seu filho os objetos que me remeteu para tal fim. Hoje, se Deus quiser, irei até a Polícia Especial para, na presença do Comandante dessa Força, passar às mãos de Luís Carlos Prestes as roupas e objetos de uso que ele estava realmente necessitado. Parece incrível que a supressão das liberdades tenha atingido, no Brasil, a tais extremos que um advogado precise fazer as peregrinações a que tive que me entregar para conseguir dar a um preso político algumas roupas que a sua velha mãe, também exilada lhe mandara de longas terras.”.

Pergunto ao Dr. Sobral: – “O Prestes só se comunicava com a mãe através do senhor? Ele tinha liberdade de ler jornais e livros?”.

O velho mestre, com a memória privilegiada, responde: “Eu estabeleci uma correspondência permanente minha com a dona Leocádia e consegui que o juiz do processo estabelecesse uma correspondência semanal do Prestes com a mãe. Ela, primeiramente, em Paris, depois, com a Segunda Grande Guerra Mundial, em 1939, ela veio para o México, ele semanalmente escrevia à Mãe e recebia uma carta dela. Eu consegui também para ele a assinatura do Jornal do Comércio e do Correio da Manhã, ele recebia diariamente esses dois jornais. Consegui também a autorização para o Prestes receber livros, ele chegou a ter mais de mil volumes na prisão onde se encontrava, na Casa de Correção, na Frei Caneca.”

Geraldo: O senhor esperava absolver o Prestes e os seus companheiros da revolução comunista?

Sobral: Eu não podia de forma nenhuma tentar obter a absolvição por duas razões muito simples: A primeira é que o Prestes e o Berger tinham declarado à Polícia, quando foram pegos, que eram os organizadores da Revolução de 35. De modo que eles assumiram nobremente a responsabilidade por ela.

Em segundo lugar a polícia ao prendê-los e ao prender, também, o Bonfim, que era o secretário do Partido Comunista, a polícia ficou com todo o arquivo dessas personagens. Ela tinha a prova concreta e documental da participação deles de modo que não podia pensar em absolvição.

O que eu pretendia e tentei fazer em relação ao Berger e ao Prestes era obter uma condição de pessoa humana que lhes estava sendo negada pelas autoridades policiais da época, considerava ambos como se fossem uns animais hidrófobos.

Prestes estava em incomunicabilidade rigorosa. Colocado numa prisão sem livros, sem jornal e o Berger num socavão de escada, como se fosse um cão hidrófobo. Então eu tinha a obrigação de tentar para que eles fossem colocados numa prisão condigna, numa prisão a altura da sua situação de pessoas humanas, membros da família humana, isso era o que achava que devia fazer.

Geraldo: Foi dada a situação desumana na acepção da palavra em que se encontravam o Berger que fez o senhor pedir para ele a Lei de Proteção dos Animais?

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Luiz Carlos Prestes, Maria Prestes e Sobral Pinto. Arquivo: Google

Sobral: O Berger estava num socavão de escada, a lei de proteção aos animais não permite que se coloque o animal numa situação imprópria para sua natureza.

Alguns utilizavam o exemplo do cavalo. O cavalo precisa de espaço, se colocar o cavalo numa baia sem poder sair, sem poder correr, depois de um certo tempo ele começa a entristecer, sem querer comer, ele acaba morrendo.

Colocar um homem num socavão de escada com acesso para o primeiro andar, pela qual dia e noite desciam e subiam os soldados e com uma grade externa e frontal, era positivamente uma monstruosidade. Era a prática de um ato criminoso até para um animal, quanto mais para um ser humano. Eu levei 6 meses para conseguir tirá-lo desse lugar. Quando eu consegui me entender com ele depois dele já estava preso há mais de um ano nessa situação, ele já estava um pouco perturbado. Eu consegui que um médico psiquiatra fosse examiná-lo. O médico me disse que ele a perturbação que ele tinha, era perturbação da situação é dada a situação que se encontra, se for retirado agora, desse local, ele ainda pode salvar-se, pode readquirir o seu juízo perfeito, mas se ele continuar pode se agravar e ai é irremediável a loucura e foi o que aconteceu, quando eu o tirei ele estava inteiramente perturbado.

Com a anistia concedida por Getúlio Vargas, em 19 de abril de 1945, próximo ao término da Segunda Grande Guerra Mundial, Luís Carlos Prestes, depois de cumprir nove anos de prisão, é anistiado com os demais presos políticos.

Já em liberdade, Prestes dá uma entrevista coletiva à Imprensa, pregando a União Nacional com Getúlio e também a “Constituinte com Getúlio”.

Uma semana após, mais precisamente, em 28 de abril, Sobral Pinto escreve a Luís Carlos Prestes: “… o respeito que lhe devo, a amizade que nos une, a magnitude do assunto, e os altos interesses do Brasil não me permitem guardar silêncio em face da sua atitude, corporificada nessa entrevista de ontem. Julgo-me, assim, no dever indeclinável de lhe expor, com franqueza e sinceridade o que eu penso da sua atitude de agora, não só no que diz respeito ao seu futuro, mas, também, no que se refere ao futuro da vossa Pátria.

Quero fixar, de inicio, a posição dramática em que me encontro. Sou seu advogado ex-officio, até ontem, vivemos juntos e solidários oito longos anos de sofrimentos, inquietações e incertezas permanentes, animados sempre, todavia, pela certeza da vitória final contra a prepotência sombria e brutal da ditadura do Sr. Getúlio Vargas, que oprimia, com desrespeito às prerrogativas de homem, a dignidade do próprio cidadão brasileiro. Nada valho, nada sou, modesto obreiro do Direito, minha vida se vem processando em lutas cotidianas, ásperas e bravias, em prol do reinado da Justiça. A nada aspiro, senão lutar pela liberdade, efetiva e real, no seio de nossa Pátria. Eis porque, magoado e triste li sua entrevista. Ora, capitão Luís Carlos Prestes, para que possamos chegar ao Brasil ao entendimento dessa natureza, é indispensável que nós não nos aproximemos do Sr. Getúlio Vargas.”.

Nas eleições de dois de dezembro de 1945, Prestes se elege senador pelo Distrito Federal, antiga capital da República, como se chamava a cidade do Rio de Janeiro.

Eleito para o mandato de cinco anos, como senador, Prestes só cumpriu dezoito meses. Vivíamos o governo do General Eurico Gaspar Dutra, um governo arbitrário na acepção da palavra, para ele não havia Constituição. Ele agia como um subalterno do governo americano, fiel cumpridor de todas as suas ordens: Intervir nas entidades sindicais de esquerda; prender, espancar e processar seus dirigentes; proibir comícios do Partido Comunista, empastelar seus jornais, cassar o registro do Partido Comunista e os mandatos dos seus parlamentares. “Prestes levou meses sem aparecer no senado, mesmo sem ter sido cassado”, me diz Sobral Pinto.

O senador Bernardes Filho avisou ao Dr. Sobral que a política estava esperando Prestes no Senado para prendê-lo, Dr. Sobral de imediato comunicou o Prestes, através do Capitão Rolemberg. Uma certa tarde, Prestes chega ao senado, faz um discurso de alguns minutos e foi embora.

Quis saber por que o Dr. Sobral nunca se candidatou a cargo eletivo, ao que ele respondeu-me: “Eu poderia ter-me feito deputado tranquilamente pelo Rio de Janeiro ou por Minas Gerais. Eu tive a oportunidade de ser senador em condições excepcionalíssimas. Em 1947 fez-se a eleição do 3º senador. Lembre-se que a Constituição de 1946 criou só dois senadores, mas no curso de 46 resolveram fazer o terceiro. Então, nessa ocasião três partidos no Rio de Janeiro reuniram-se e me ofereceram a senatoria, dispensando-me dos seus respectivos programas. Foi anunciado isso nos jornais. Nessa época o Partido Comunista era legal. Prestes era senador aqui pelo Rio de Janeiro. O Prestes mandou me convidar através de um grande amigo dele e meu, o comunista Rolemberg (oficial do Exército que foi expulso do Exército e voltou pela anistia 16 anos depois). Ele vinha toda semana aqui no meu escritório. Ele veio me consultar se na realidade eu era candidato, porque se fosse o Partido Comunista votaria fechado comigo. Logo que eu vi as noticias nos jornais, comuniquei imediatamente aos três partidos que eu não aceitava, e não aceitava por isso: porque eu não confiava nos partidos, eis a razão porque eu nunca fui nem senador nem deputado.”.

Tanto na ditadura de 1937, como na de 1964, Sobral Pinto foi preso. A primeira na Casa de Detenção, quando o tenente Canepa, seu temível diretor, tentou agredi-lo, chamando-o de mentiroso. “Mentiroso é você”, respondeu-lhe o corajoso Sobral.

De outra feita, revoltado com a agressão covarde cometida por meia dúzia de policiais, diante do comandante da polícia especial, coronel Euzébio Queiroz, contra Prestes, Sobral Pinto sai em sua defesa.

O coronel Euzébio Queiroz, era um homem forte e violento, partiu para cima do Sobral Pinto, que era franzino, agarrando-o e rodopiando seu corpo, Sobral agarrou-se ao pescoço do coronel, para não ser arremessado ao chão.

Recordei, certo dia, em casa do Prestes, esse episódio covarde e violento, quando ressaltou Prestes a coragem de Sobral Pinto: “Nesse momento, também, sobrou para ele”.

Em 18 de dezembro de 1968, Costa e Silva assina o Ato Institucional nº 5.  Sobral Pinto encontrava-se em Goiânia, para onde fora paraninfar a turma da Faculdade de Direito da Universidade de Goiás.

Geraldo, Goiânia é muito quente. Eu estava de chinelo, sem meias, de manga de camisa, bateram à porta, era um emissário de um importante político de Goiás, que colocava à minha disposição, com total segurança, um carro completamente equipado, com um motorista que conhecia minuciosamente toda a região, inclusive com condições de levar-me para o exterior, pois eu seria preso à tardinha, o que seria uma vergonha para o Estado de Goiás.”

Sobral Pinto agradece o zelo, pela sua pessoa, mas não aceita. Declara para o mensageiro: “Devo dizer que dos 70 bacharelandos, até o momento em que a comissão foi ao Rio de Janeiro, comissão constituída de três bacharelandos, para me dizer que tinham me eleito paraninfo da turma, eu não conhecia o nome de nenhum só desses bacharelandos, nem sabia quem eram. Evidentemente, essas pessoas me convidaram pelo meu passado que não é de covardia, nem de medo, então, nessa hora eu vou dar a esses rapazes uma demonstração de medo e covardia? Em hipótese alguma!”.

“Agradeço muito o seu interesse e do seu amigo, mas, eu fico aqui. Eu apenas não acato a ordem de prisão que querem me dar.”

E realmente, mais tarde o previsto aconteceu.  “Um militar bateu à porta e me disse o seguinte: ‘O presidente da República, Marechal Costa e Silva, mandou ao senhor uma ordem por meu intermédio, para o senhor me acompanhar. ’ ‘Ordens ilegais como essa, eu não as obedeço’, respondi. Então, ele me disse: ‘Nós temos que quebrar o senhor’. ‘Então quebre! Pouco me interessa. Eu não vou absolutamente. Com os meus passos não vou. ’ Eles tiveram que me arrastar, e me jogaram no camburão.”

Levaram-no para o quartel do Exército, em Goiânia e depois para Brasília, onde ficou preso durante três dias.

Sobral Pinto protesta, em carta enviada ao presidente Costa e Silva: “… através do referido Ato, V.Exa. instituiu em nossa Pátria a Ditadura Militar. Sou, Senhor presidente uma das vítimas do Ato Institucional n.º 5. A Polícia Federal de Goiás, invocando o nome de V.Exa. deu-me voz de prisão, ordem que não acatei, declarando que nem V.Exa., nem ninguém, nesse País, é dono da minha pessoa e da minha liberdade. Nada fizera para esta perder.

Recusava altivamente acatar ordem tão absurda e tão ilegal. Mal pronunciei essas palavras, quatro homens de compleição gigantesca lançaram-se sobre mim, como vespas sobre a carniça, imobilizando-me os braços e apertando-me o ventre pelas costas. Em seguida, empurraram-me, como autômato, do quarto ao elevador, onde me empurraram. Deste até o carro, que se encontrava à porta do hotel, fizeram idêntica manobra. Colocado no carro de mangas de camisa, como me encontrava no quarto, conduziram-me a um batalhão, que fica nos arredores de Goiânia. Neste permaneci uma hora mais ou menos. Depois de um atrito com o Comandante da Unidade, que tentou desrespeitar-me, sendo levado ao Quartel da Polícia do Exército, em Brasília, onde fiquei três dias, respeitado pela oficialidade, desde o coronel comandante até o mais modesto dos tenentes.”.

Advogado criminalista, professor universitário, Sobral Pinto não cobrava honorários dos políticos, nem dos pobres, que era a sua grande clientela. “Cobrava de quem?” perguntou-se certa vez Mestre Evandro Lins e Silva.

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Com uma tipoia no braço, o advogado Sobral Pinto caminha com Geraldo Pereira pelas ruas do Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Arquivo: GP

Na década de 40, para adquirir a carne verde (como se chamava a carne de boi, na época), só no câmbio negro. O chefão do câmbio negro, na cidade de São Paulo, estava com a polícia no seu encalço. Ele é aconselhado a procurar um grande advogado para defendê-lo. O indicado era o famoso advogado carioca Sobral Pinto. Segue para o Rio de Janeiro e procura Sobral Pinto, cujo escritório ficava na Rua da Assembleia e tinha como vizinho de sala outro grande advogado: Evandro Lins e Silva que, tomando conhecimento do caso, disse para o Sobral: “Esse fulano tem muito dinheiro, na hora de cobrar os honorários quem acerta sou eu.” Sobral Pinto concordou, mas pediu ao Evandro que não cobrasse muito.

Essa história quem me contou, rindo muito, foi o saudoso Evandro Lins e Silva.

Sempre que visitava o doutor Sobral, conversávamos longamente, sobre os mais diversos assuntos. Lembro que numa dessas vezes, o encontrei muito preocupado: “Dr. Sobral, se precisar de mim, disponha. Estou vendo que o senhor está muito preocupado.”. Era fim de mês. Ele me respondeu: “Tenho que pagar minha secretária, dona Marlene, telefone, luz…” Digo-lhe, estou indo para São Paulo, se o senhor me autorizar, falarei com Caio Graco, filho de Caio Prado, editor da Brasiliense, muito meu amigo, que pode tirar uma nova edição dos seus livros ‘Lições de Liberdade’ e “Porque defendo os comunistas”, eles estão esgotados. Dr. Sobral concorda.

Em São Paulo, falei com Caio que ficou contentíssimo. Ele na hora telefonou para a Editora Comunicação, de Belo Horizonte e foi  informado que havia uma ponta de estoque de 800 exemplares de um título e 700 do outro, o que impossibilitava que a Brasiliense editasse os referidos livros.

Com o apoio de Luís Tenório e Afonso Delelis, meus amigos, Delelis  era assessor para assuntos sindicais do governador Montoro, chego à presença do governador e lembro-lhe do Congresso da Democracia Cristã, realizado no Uruguai, em 1946, cujos representantes do Brasil seriam Sobral Pinto e Alceu Amoroso Lima, as maiores expressões do catolicismo brasileiro. Sobral telefona para o Alceu e diz: “Alceu, tem em São Paulo um jovem de muito futuro, ele vai com você no meu lugar.”

Esse jovem era André Franco Montoro.

Expus as dificuldades em editar o livro. De imediato ele se prontificou a adquirir todos os exemplares para distribuí-los nas escolas do Estado. Sai dali muito satisfeito. À tardinha já estava no escritório do mestre Sobral Pinto. Dou-lhe a notícia. Ele me encara e com uma impostação de voz, até então, desconhecida por mim, diz: “Montoro não pode gastar o dinheiro do Estado, comprando os meus livros. Não aceito. Você não está autorizado a falar mais nesse assunto, se quiser ser meu amigo.” Não disse mais nada.

Certa tarde, em seu escritório, num longo bate papo, dizia-me que o seu sonho era ser Ministro do Supremo. De imediato lhe respondi: “Dr. Sobral, esse sonho não se tornou realidade porque o senhor. não quis. Não é verdade?”.

Recordemos um pouco a história: Juscelino havia ganho a eleição, em 1955, e as forças mais retrogradas do país queriam impedir a sua posse. Sobral Pinto, com o seu saber e acima de tudo, com a sua reconhecida força moral, o que lhe conferia a mais alta respeitabilidade pública da Nação, saiu em defesa do Juscelino. Foi a ‘pá de cal’, no sonho dos golpistas da UDN.

Ao tomar posse, Juscelino convida Sobral Pinto para ser Ministro do Supremo Tribunal Federal. O velho Sobral, com aquela dignidade que era o seu maior patrimônio, não aceita o convite. Fixando-me bem nos olhos, disse: “Iriam dizer que eu defendi a posse dele para ser ministro. Não! Não podia aceitar.”

Geraldo: Dr. Sobral, para ser um bom advogado é suficiente só estudar o Direito?

Ele respondeu-me: “Não. É preciso ter um temperamento próprio para a profissão, pois a profissão requer luta, a profissão requer trabalho, a profissão requer coragem, a profissão requer esperança, a profissão requer um ideal pela aplicação justa e razoável do Direito. Não basta, portanto, conhecer as leis e interpreta-las. São indispensável todas essas qualidades que eu acabei de enumerar. Um grande advogado não se faz sem esses elementos que eu acabo de apontar. Não é só a razão, não é só a inteligência, não é só a cultura que faz um grande advogado: é também o seu temperamento, é também a sua convicção de que a profissão exige muito esforço, muita coragem, e muita disposição para a luta.”

Geraldo: E com essa idade o senhor ainda precisa trabalhar?

Sobral:“Eu preciso trabalhar porque não tenho rendas. Eu trabalho por necessidade. É claro, é evidente que também por gosto. Eu gosto de trabalhar, eu acho que o trabalho completa o homem. Nosso Senhor quando criou o homem mandou que ele trabalhasse. Então, eu acho que o trabalho é elemento fundamental da existência de todo e qualquer homem, mas, além dessa circunstância eu trabalho porque preciso da renda do escritório, pois não tenho outra para manter e à minha família. Eu trabalho, também, por entender que enquanto tiver saúde, essa saúde que Deus me deu, é minha obrigação trabalhar.”

Geraldo:Dr. Sobral, onde é que o senhor encontra tanta vitalidade?

Sobral: “Geraldo, você pergunte isso a Deus. Eu jamais fiz qualquer coisa para manter a vitalidade que consigo até essa idade. Nunca fiz dieta, nunca fiz regime, nunca tive preocupação em ter um horário permanente em cada dia; a minha vida é inimiga de horários. Eu só tenho duas horas certas: é a hora de me deitar e a hora de me levantar. A hora de me deitar raramente é antes da meia noite; e a hora de me levantar é raramente depois das 6 horas da manhã, as únicas coisas que tenho feito com constância. O mais não é absolutamente resultado de esforço ou de preocupação minha, é única e exclusivamente generosidade e bondade de Deus. Aquilo que sou, aquilo que tenho sido, decorre única e exclusivamente da minha fé em Deus, da minha fé em Jesus Cristo e da minha fé na Igreja como depositária das verdades eternas pregadas por Deus.”

Geraldo: O senhor continua indo as missas aos sábados?

Dr. Sobral: Vou todos os sábados e no domingo eu ouço na televisão.

Geraldo: Seus filhos são católicos.

Dr. Sobral: São Católicos, alguns relaxados, mas, são católicos.

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