Somos racistas e não podemos mais adiar esse debate

Há quase seis anos a Câmara de Vereadores de Salvador discute a criação do Estatuto da Igualdade Racial. Há seis anos os vereadores enrolam o debate sobre um tema de fundamental importância para a comunidade negra em Salvador, considerada a maior cidade negra fora da África. E, até o momento, não há uma perspectiva clara de que o projeto de lei será apreciado, apesar de inúmeras sinalizações. Enquanto isso, seguimos com o bizarro argumento de que não há racismo no Brasil.

 

Nesta terça-feira (24), houve um pedido de vista coletivo que deve retardar mais um pouco a votação do estatuto ainda no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça. A motivação, dessa vez, pareceu técnica. O parecer do relator do projeto, Duda Sanches, tem 18 páginas e os vereadores Aladilce Souza, Marcelle Moraes e Alfredo Mangueira pediram mais tempo para analisar o documento. Mais um processo “natural”, para usar o termo adotado pelo próprio autor do parecer, dentro de um país que não é racista.

 

Ao longo dos últimos meses, o Estatuto da Igualdade Racial foi alvo de questionamentos, principalmente da bancada evangélica. Na discussão, os vereadores ligados basicamente aos neopentecostais buscam a inserção de outras religiões no item “Do direito à cultura e à religião”. Moisés Rocha, presidente da Comissão de Reparação, autora do projeto, discorda da tentativa de ampliar o escopo do documento para além das matrizes africanas. Afinal, ao tratar de igualdade racial, é um pouco óbvio que haja certa restrição na abordagem de cultos marginalizados historicamente por serem iminentemente práticas de negros. Mas, como sabemos, não existe racismo no Brasil.

 

Talvez o item mais polêmico seja o que trata da hipótese de possuidores de títulos de mestre da tradição e cultura popular de Salvador terem acesso a alguns “direitos”. Segundo o texto em tramitação na Câmara, essas pessoas poderiam ter “apoio e incentivo para o desenvolvimento de suas atividades através de subvenção e transferência voluntária do Município; assistência médica, alimentar e nutricional; apoio e incentivo educacional; e gratuidade nos transportes públicos”. São pontos polêmicos e gerariam debate. Mas o objetivo da Câmara é exatamente esse. E, ao tratar da chance de reparação histórica, evangélicos querem a igualdade também nesse quesito – mesmo que entre eles não haja nada a reparar. Talvez porque seja comum vermos Taateto, Mameto, Nengua, Yarorixá, Babalorixá, Doné, Doté ou Gaiaku em locais de destaque na sociedade, tal qual as dezenas de representantes evangélicos nos Legislativos de todo país. Afinal, o racismo é uma coisa da cabeça dos negros.

 

Os pontos citados são pequenas coisas em um universo extremamente complexo. No entanto, sei que estou longe de ter lugar de fala para debater racismo. Nunca vivi a dura realidade de ser olhado de maneira diferente pelo tom da minha pele. Nunca tive acesso a menos oportunidades por isso. Porém acho que tenho obrigação de assumir por ter espaço para falar: o Brasil é racista. Ainda que digam o contrário. E os sucessivos adiamentos da votação do Estatuto da Igualdade Racial em Salvador são apenas uma das pontas desse enorme iceberg de um problema social que precisa ser enfrentado.

 

Este texto integra o comentário desta quinta-feira (25) para a RBN Digital, veiculado às 7h e às 12h30, e para as rádios Excelsior, Irecê Líder FM, Clube FM e RB FM.

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