Por Paulo Mustefaga*
Quando dona Márcia Maria da Silva, 31 anos, moradora da favela Vila Emater, na periferia de Maceió, vai ao mercado, ela agora compra mais proteína para alimentar seus 6 filhos. Desde que o governo aumentou o valor do Bolsa Família, a qualidade da alimentação da família melhorou muito.
“Com o dinheiro, além da feira de sempre, comprei carnes, leite, material escolar e fralda para os meus outros filhos. Antes, o dinheiro dava só fralda para o bebê. E a mistura [proteína das refeições] era quase só ovo, agora dá para ter peixe, carne de boi ou porco todo dia”, contou a dona de casa ao UOL. Casos como esse estão se desenrolando em todo o Nordeste.
Mas o que brasileiros como dona Márcia ganharam corre o risco de acabar se a carne for taxada. Hoje, a carne não paga tributos federais (PIS e Cofins) no Brasil e os maiores consumidores são os das classes C, D e E, ou os cerca de 60% da população que dizem comer carne ao menos duas vezes por semana, de acordo com pesquisa do Good Food Institute publicada em 28 de maio pelo jornal Extra. Por considerarem as carnes produtos essenciais, praticamente todos os governos estaduais também concedem isenção ou redução na cobrança do ICMS.
Estamos num momento de intensas negociações para a regulamentação da reforma tributária recém-aprovada pelo Congresso Nacional. Infelizmente a sociedade está à margem desse debate, restrito aos líderes do Congresso.
A questão da carne –ou melhor, das carnes– passa pela discussão de quais produtos comporão a cesta básica isenta de impostos.
As carnes bovina, suína, de frango e peixes entrariam, conforme a proposta da equipe econômica do governo, no grupo de produtos com redução de 60% no imposto. O problema é que os 40% restantes acabarão pressionando os preços das carnes para cima, que podem ter impacto de até 12% na sua carga tributária embutida.
Diante disso, dona Márcia lá de Alagoas, que recebe R$ 1.200 de Bolsa Família, 1 kg de coxão mole, hoje vendido a R$ 30,90, passará a custar R$ 34,60 por causa do imposto. O músculo, que custa R$ 24,79 em Maceió, vai para R$ 27,76. Numa cidade onde a passagem de ônibus custa R$ 4,35, a alta nas carnes mais consumidas pelas classes B, C e D impactará, e muito, o bolso de mães de família como dona Márcia.
É fundamental que todas as carnes sejam mantidas na cesta básica e com imposto zero para que a população, especialmente aqueles que recentemente voltaram a consumir proteína animal no dia a dia, depois de um longo período de abstinência iniciado na pandemia.
Em 25 de junho, a Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores, publicou pesquisa da Kantar mostrando que pessoas das classes D e E, como dona Márcia, passaram a consumir mais carne bovina. Um crescimento de 4,2% no 1º semestre comparado com 2023. E também cresceu o consumo de outros itens como iogurtes, biscoitos, doces, bazar, bebidas e medicamentos de venda livre.
Agora, em plena discussão sobre a composição da cesta básica e taxação de carnes em geral, é preciso serenidade e responsabilidade para que este consumidor de baixa renda, que hoje se alimenta melhor, não seja prejudicado por decisões cujo risco é criar condições para um aumento inconveniente de preços. Quem mais precisa de proteína de alta qualidade é justamente o cidadão das classes C, D e E, que ganham até R$ 3.600 mensais.
Em entrevista ao UOL, o presidente Lula falou em taxar carnes consumidas pelos ricos e isentar carnes consumidas pelos pobres, como o frango. Mas, como mostrou a pesquisa Kantar, o brasileiro gosta de frango, mas prefere carne bovina, seja uma boa costela, uma picanha com aquela gordurinha ou uma rabada com agrião. É paixão nacional. Não faz o menor sentido taxar carne de rico e liberar carne de pobre, porque carne é carne.
Estudos mostram que as classes de renda mais baixa possuem maior propensão (elasticidade-renda) a consumirem carnes consideradas mais nobres, ou “de primeira”, em razão de estímulos de renda. Quem não gosta de poder comprar uma picanha para comer um churrasco com a família no fim de semana? Dificultar o acesso das classes mais pobres a esse tipo de produto é um contrassenso.
Nos últimos 25 anos, os produtores de carnes investiram e se desenvolveram, passando a ter maior controle sanitário, maior controle de qualidade e a própria fiscalização federal se tornou mais eficiente. Tudo isso fez com que o país deixasse de depender de importações de carnes e passasse a ser o maior exportador de proteína de origem animal do planeta.
Não é pouca coisa. E os brasileiros, sejam eles de que classe for, ganharam muito com isso e hoje acabou aquela balela segundo a qual o Brasil exportava o que produzia de melhor e deixava o pior para o mercado interno. A mesma carne que é vendida na Ásia ou na Europa é consumida aqui. Corremos agora um risco de retrocesso.
Ser contra os impostos para as carnes em geral não significa ser crítico do governo ou do Congresso, mas defensor das conquistas dos consumidores de baixa renda –que, sabemos todos, são os mais vulneráveis.
O combustível das pessoas, o que as mantém produtivas e felizes, é a comida de qualidade. O brasileiro, como pontuou inúmeras vezes o presidente Lula durante a campanha eleitoral, é um amante do churrasco. É em torno da carne, especialmente a bovina, que as famílias gostam de celebrar seus melhores momentos. Comer carne é parte integrante da nossa cultura.
Dentro de mais alguns dias, será batido o martelo e selado o destino das proteínas preferidas do povo brasileiro. Nós entendemos que o governo tem seus argumentos e pontos de vista, os quais respeitamos, mas é preciso entender algo fundamental: do jeito que as coisas estão caminhando, ou ganha o governo, ou ganha a população. O governo perder é do jogo. Mas o que pensaria dona Márcia, que acabou de voltar a consumir carne, se ela fosse obrigada a voltar para o ovo?
*Publicado nesta segunda-feira (1º) no site Poder360