Terreiro secular volta a ser alvo de coação e tentativa de invasão na Bahia

Líder do terreiro Ilê Axé Icimimó Aganjú Didê acusa empresa de tentar intimidar membros para se apossar do território

Wendel de Novais

Terreiro Ilê Axé Icimimó, em Cachoeira. Crédito: Reprodução

O centenário terreiro Ilê Axé Icimimó Aganjú Didê, localizado na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, está sob ataque. É isso o que denuncia Pai Duda de Candola, líder da comunidade, que acusa a empresa Penha Papel e Celulose, do Grupo Penha, de coação e tentativa de invasão, através de um funcionário. De acordo com o sacerdote, o homem, conhecido como ‘Cao’, estaria rondando o perímetro do terreiro e monitorando a área à mando da empresa.

No último dia 30 de agosto, inclusive, Pai Duda afirma ter confrontado o funcionário, perguntando se estava vigiando o local. “Eu vi Cao aqui rondando e me dirigi a ele. Na hora, perguntei se estava no perímetro das terras do terreiro à mando da empresa para me vigiar e estavam voltando a fazer o que fizeram antes. De pronto, respondeu que nunca deixou de fazer isso”, relata Pai Duda, que filmou o diálogo e compartilhou as imagens.

Quando diz que a empresa estaria voltando a manter a atitude, Pai Duda lembra o que aconteceu em 2019, quando o terreiro foi invadido por homens armados, teve assentamentos sagrados violados e os pais e filhos de santo ameaçados. Na ocasião, os homens ainda atiraram para cima como forma de intimidação e afirmaram que voltariam para derrubar os barracões. Os líderes do terreiro atribuíram ao Grupo Penha, proprietário de uma fazenda ao lado do território, a responsabilidade da invasão.

Procurado pela reportagem, o Grupo Penha afirmou que é proprietário da Fazenda Tororó, que tem uma área de 700 hectares onde o terreiro está inserido, por força de ‘Arrematação Judicial’ e tomou posse do imóvel em 2005. A empresa negou ações contra o terreiro. “Nunca houve qualquer confronto ou desrespeito no tocante ao terreiro e sua prática religiosa, tampouco com os demais posseiros e outros templos religiosos que se encontram dentro do perímetro da Fazenda Tororó”, diz em nota.

Na época da invasão, em 2019, a reportagem não conseguiu retorno da empresa. As denúncias do terreiro, porém, resultaram em respostas do Ministério Público do Estado (MP-BA), que expediu uma recomendação para que o Grupo Penha não adentre o local e para que a Polícia Militar fique atenta ao caso. Procurado para falar da nova denúncia, o MP respondeu em nota, informando que enviou um ofício para a PM para obter mais informações acerca do caso.

“Posteriormente, serão adotadas as medidas cabíveis. Informamos ainda que, por se tratar de questão envolvendo quilombo, a competência original é do Ministério Público Federal”, escreve. A PM também foi questionada pela reportagem e afirmou que segue fiscalizando o respeito à recomendação feita pelo MP para a empresa, executando uma operação que amplia a segurança no Ilê Axé Icimimó e em outros terreiros da região.

“De acordo com a 27ª CIPM, a unidade está cumprindo a recomendação do Ministério Público e incluiu o Terreiro Ilê Axé Icimimó Aganjú Didè nas “Rondas da Liberdade”, uma operação para ampliar a segurança em terreiros e comunidades quilombolas da região, onde policiais militares realizam visitas constantes a essas comunidades”, explica, através de nota, a PM. A presença dos militares foi confirmada pelos líderes do terreiro.

Foi em razão da presença do policiamento que filhos de santo da casa voltaram ao local, após divulgação do vídeo em que o funcionário confirma estar monitorando a área. “O ato de vigiar é uma forma de coagir quem está aqui e acontece desde 2019. Por isso e também pelo que houve com Mãe Bernadete há pouco tempo, as pessoas mais velhas deixaram o território com medo. Agora, que a PM está passando aqui todos os dias, puderam retornar”, conta Pai Duda.

A Prefeitura de Cachoeira também foi acionada pelos líderes do terreiro para tomar providência sobre o caso. Em nota, informou que, através da Secretaria de Reparação e Igualdade Racial, juntamente com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais do Estado da Bahia (SEPROMI), realizou uma reunião para buscar soluções, na última quarta-feira (6).

“O Município e o Estado, cientes de toda situação, estão tomando todas as medidas necessárias para garantir a integridade e segurança do espaço e de todos que fazem parte dessa comunidade”, disse a prefeita de Cachoeira, Eliana Gonzaga. A Sepromi confirmou a presença na reunião. Em nota, destacou que, além de prestar solidariedade, se deslocou até o local para acompanhar melhor o caso, através da sua equipe técnica.

“As novas denúncias estão sendo acompanhadas pela Sepromi, por meio do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela e da Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa da Bahia, composta por instituições do poder público e do sistema de justiça”, informou em nota. Ainda de acordo com a pasta, o Ilê Axé Icimimó, fundado em 1910, é o segundo terreiro mais antigo da cidade, atrás apenas do Zô Ogodô, de 1878. Ao todo, a Sepromi reconhece 14 terreiros na cidade.

Cobertura legal

A coação e as tentativas de invasão apontadas por Pai Duda começaram quando a empresa afirmou que teria escritura de terras na região, inclusive o território onde está o terreiro. Segundo o babalorixá, o documento seria de 2005. Porém, a comunidade tem escritura da terra datada de 1913. O terreiro, inclusive, está em processo de tombamento definitivo pelo Iphan, mas já é tombado de maneira emergencial, através de edital publicado no Diário Oficial da União (DOU).

O Grupo Penha, porém, pondera que há uma ação de Pai Duda para reconhecer como parte do terreiro uma área que seria do terreno do grupo. “Em 2012, foi protocolado processo, junto ao IPHAN, para tombamento da área do terreiro, delimitando a área a 13 hectares. O espaço que alegava ser do terreiro e requisitava tombamento adentrava nos limites territoriais e georreferenciadas no INCRA, do Grupo Penha”, defende a empresa.

Ainda de acordo com o Grupo Penha, Pai Duda teria entrado no terreno da empresa e cortado 4 hectares de bambuzal plantado. “O MP foi convidado para intervir e, inicialmente, foi realizada uma composição para cada parte retornar ao estado anterior, conforme consta em Ata de Audiência Pública. Após isso, o Iphan tramitou um tombamento emergencial do terreiro, majorando a área requerida de 13 hectares para quase 30”, reclama.

A empresa  se manifestou no processo e aguarda o tombamento definitivo para entender quais medidas serão tomadas em relação ao manejo da área de sua propriedade.

Procurado para falar do caso, o Iphan informou que acompanha de perto a situação enfrentada pelo terreiro desde que as denúncias chegaram ao conhecimento do órgão, em setembro deste ano. Além disso, o instituto disse que notificou os órgãos de segurança do estado e a administração de Cachoeira para que ações fosse tomadas no sentido de proteger o terreiro e a sua comunidade como um todo.

Matheus Cardozo, defensor público em Cachoeira, explica que, no caso de um patrimônio tombado, há uma série de restrições que impedem invasão, destruição e violação da área. “O bem é tombado para que o patrimônio cultural de uma sociedade seja preservado e conhecido pelas gerações futuras, permitindo o trespasse histórico entre gerações. Então, é de interesse de toda a comunidade que o bem tombado seja preservado e cuidado”, explica.

Ele acrescenta que, ainda que o tombamento não existisse, a invasão do local representaria uma infração. “De acordo informações levantadas, a fazenda onde o terreiro está localizado foi comprada em 1903 e há uma escritura lavrada, em 1913, que dá conta dessa operação. Assim, o terreiro possui justo título para ser considerado proprietário, pois também cumpriu o lapso temporal exigido pela lei para obter a propriedade pela via da usucapião”, completa Cardozo.

Além disso, ele destaca que o proprietário pode também pode usar das ações possessórias e jurídicas para fazer cessar a qualquer ato, direto ou indireto contra sua posse. A Polícia Civil, que também foi procurada pela reportagem, informou que a Delegacia Territorial de Cachoeira registrou o boletim de ocorrência para apurar denúncias de intimidação ao terreiro Ilê Axé Icimimó Aganju Dedé e que partes envolvidas serão intimadas para prestar esclarecimentos, sem informar uma data.

Presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), Leonel Monteiro pede mais ações do Iphan. “É preciso que o órgão estabeleça oficialmente a poligonal, determinando os limites de terra entre o bem a ser tombado e a empresa que alega ter posse de parte das terras que, a princípio, pertencem à comunidade religiosa”, pede. Sobre isso, no entanto, o Iphan não respondeu.

Em nota, a ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia Naira Gomes afirma que a Ouvidoria Cidadã da Defensoria Pública da Bahia está ciente da violação no Terreiro Ilê Axé Icimimó Aganjú Didê. “Infelizmente é uma realidade na Bahia inteira, onde se desrespeita o direito à terra, a função social da terra e se desrespeita mais ainda as terras ocupadas por corpos negros e por sagrados que tem origem africanas e uma prática de pessoas negras”, destacou.

Naira Gomes fez questão de ressaltar que em um território negro e guerreiro como Cachoeira, onde se consolidou a Independência do Brasil, a vitória do Icimimó sobre os grileiros, sobre o Grupo Penha, significa uma vitória do povo negro e pode sim servir de referência e paradigma para todas as outras as lutas que envolvem os mesmos agentes na Bahia inteira.

O Ilê Axé Icimimó Aganjú Didê é reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado da Bahia desde 2015

Veja a lista completa de terreiros reconhecidos em Cachoeira, segundo a Sepromi:

Zô Ogodô Bogum Malê Seja Undê, Terreiro de Nação Jeje Mahi, fundado em 1878. Localizado na Lagoa Encantada/Ladeira da Cadeia.

Ici Mimó (antigo Aganjú Didê), terreiro de Nação Nagô Tedô, fundado em 1910. Localizado na Terra Vermelha (Iguape)

Loba Nekun, terreiro de Nação Nagô-Congo, fundado no início da década de 1920. Localizado Quebra Bunda (Caquende)

Ilê Axé Eran Opê Oluwá (Viva Deus), terreiro de Nação Nagô-Angola, fundado em 1930 –  Quebra Bunda (Caquende)

Loba Nekun Filho, terreiro de Nação Nagô-Congo, fundado em 1930. Localizado na Rua Sabino de Campos (Outeiro do Monte)

Ilê Axé Ogodô Dewí, terreiro de Nação Nagô, fundado na década de 1940 – Ladeira da Cadeia

Humpame Ayono Runtó Lojí, terreiro de Nação Jêje Mahi, fundado em 1962 – Alto da Levada (Caquende)

Ilê Axé Otailê, terreiro de candomblé, fundado na década de 1970. Localizado na  Baixa da Olaria (Rua da Feira)

Ilê Kaió Alaketo Axé Oxum, terreiro de candomblé de Nação Keto, fundado na década de 1970. Localizado no Alto do Rosarinho

Alê Axé Alaketo Oxum Opará, terreiro de candomblé fundado na década de 1990

Humpame Zô Ogodô Darô Taby, terreiro de candomblé de Nação Jêje Mahi, fundado na década de 2010. Rua Irineu Sacramento, 4 – Centro Urbano

Ilê axé Otalomim, no Cucuí de Brito – Guarany Oxossi

Terreiro de culto a caboclo e inkice, no Alto do Rosarinho – Ilê Oxum Niwá

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