Transplantes: Vidas compartilhadas

Crianças cheias de vida

Os três meninos da imagem que enobrece esta página nos dão a chance de entender que, independentemente da idade, todos nós temos uma história permeada de ensinamentos para contar. Eles nem imaginam que, com alegria estampada nos olhos, ensinam como os recomeços fazem parte da vida de todos nós e que, quase sempre, ganhamos a oportunidade de seguirmos inteiros após um baque. “Quando apareceu o meu doador? Fiquei feliz, feliz, feliz e feliz”, respondeu Luiz Cauã, 11 anos, quando questionado sobre o momento em que soube que havia sido encontrada, após nove anos de busca, uma pessoa compatível com ele. A luta de Luiz Cauã contra uma anemia de caráter genético começou nos primeiros dias vida. Ele nasceu sem produção de hemácias (as células vermelhas do sangue) e sempre teve o transplante de medula óssea como a única chance de cura. Para sobreviver, passou nove anos dependendo mensalmente de transfusões de sangue.

Foto Luiz Cauã

Luiz Cauã comemora vida nova, ao lado dos pais

“Logo após o nascimento, na primeira consulta com a pediatra, Luiz Cauã fez um exame que acusou uma taxa muito baixa de hemoglobina (proteína que transporta o oxigênio pelo sangue). Apenas aos 5 meses de vida, veio o diagnóstico. Fomos avisado de que não havia medicamento para tratar a doença e que somente o transplante de medula óssea o salvaria”, conta a mãe do menino, a dona de casa Shirlene Maria Tavares, 35, moradora de Igarassu, no Grande Recife. Naquele momento, começava a procura por um doador na própria família. As chances de se encontrar alguém compatível, entre irmãos ou um dos pais, é de 25%. Os parentes de Cauã não estavam dentro dessa estatística.

Para resistir à anemia, Luiz Cauã passou por milhares de transfusões até chegar aos 3 anos, quando apareceu uma esperança num cordão umbilical (uma das fontes de células-tronco para o transplante de medula óssea) compatível. Fez o procedimento, passou três meses internado e teve alta. Tudo parecia se acalmar, se não fosse a rejeição do enxerto da medula. Foi preciso voltar à rotina das transfusões – um pesadelo que acabou aos 9 anos, quando se descobriu um doador. “Vai mudar tudo”, diz Luiz Cauã sobre o que logo pensou quando soube da compatibilidade encontrada. E o garoto estava mais do que certo. Com o transplante, nasceu um novo ânimo de criança em Luiz Cauã, que comemora dois anos de infância feliz em setembro.

Na zona rural de Rio Branco, no Acre, também não falta celebração. Não se completou um mês da volta para casa de Murilo Andrade Nascimento, 10, mas a família está em festa. Após passar seis meses no Recife, onde foi submetido ao transplante de medula óssea, o menino volta a apreciar o modo de vida do campo. “Está andando por tudo o que é lugar, soltando pipa, matando a saudade do açude, dos amigos e de todos da família”, relata o pai de Murilo, o microprodutor rural Marcos Nascimento, 57. É um garoto que deixou de lado o ar abatido da anemia aplástica severa (condição em que o organismo deixa de produzir quantidade suficiente de células sanguíneas novas) para desfrutar de tudo o que a vida tem a oferecer a uma criança.

Para destruir a doença (diagnosticada em outubro do ano passado, após Murilo terminar o tratamento contra uma hepatite autoimune), o único caminho seria o transplante. Começaram as buscas na família pelo doador. A notícia dos sonhos chegou em 15 dias: o irmão Marcos, de 20 anos, foi 100% compatível. “Quando recebi a notícia, senti uma emoção muito grande. Naquela hora, a minha vontade era de gritar, de comemorar pelo fato de já ter um doador para o meu filho. Estava receosa porque a doutora falou que essa busca nem sempre é fácil. Há casos em que o paciente tem 11 irmãos e nenhum deles pode doar. Então, foi um momento muito gratificante para a gente”, recorda a mãe de Murilo, a dona de casa Ana Célia Andrade Nascimento, 47 anos, que atribui, ao filho Marcos, o título de herói de Murilo – o irmão mais novo que ele sempre nos pedia . “Hoje a vida dos dois está ainda mais ligada. E Murilo voltou a ser o menino brincalhão, de nove meses atrás. Está contente por ter vencido a doença”, vibra o pai.

Foto Murilo Andrade

Pais de Murilo estão em festa pela recuperação do filho após o transplante

Agradecida aos médicos pelo atendimento dado ao menino, como também aos amigos pelas orações e vibrações positivas, a família agora planeja abraçar uma mobilização na região do Acre onde moram. “Sempre pensamos que essas coisas nunca podem acontecer com a gente. Após tudo o que vivemos, só podemos dizer que ficamos mais unidos e aprendemos a crescer com cada desafio. Agora a nossa pretensão é convidar os amigos para se cadastrarem como candidatos a doador voluntário de medula óssea. É tudo tão prático, e o risco é mínimo para devolver a vida a uma pessoa (quase) sem esperança”, destaca Marcos, que está cheio de razão. O cadastro não tem mistério. Basta ir a um hemocentro, manifestar o interesse em se inscrever e receber orientações. É retirada também uma pequena quantidade de sangue (10 ml) do candidato a doador. Quando houver um paciente com possível compatibilidade, o voluntário será consultado para decidir quanto à doação e à chance de salvar uma vida.

Ninguém sem doador

​O hematologista Rodolfo Calixto é o coordenador do Setor de Transplante de Medula Óssea do Real Hospital Português (RHP), no bairro de Paissandu, área central do Recife. Desde 2002, ele acompanha pessoas que renascem após doações. “A gente vai se apaixonando por esse trabalho e se envolve mesmo. Conseguimos salvar a maioria dos casos. Digo para ir com fé que tudo vai dar certo”, diz o médico, que viu progredir a busca pelos doadores no banco nacional. Ele recorda que, há seis anos, o tempo médio de espera para se encontrar um doador compatível fora da família era de 9 meses. Hoje, o período dura em torno de cinco meses. “Ainda é longo, mas caiu quase pela metade.”

Setor de Transplante de Medula Óssea do Real Hospital Português tem equipe multidisciplinar coordenada pelo hematologista Rodolfo Calixto (ao centro)

Os avanços permanecem e, no ano passado, o RHP começou a salvar vidas com uma nova técnica nova: o transplante de medula óssea de doador que não é 100% compatível, conhecido como haploidêntico. “Três pacientes já passaram por esse procedimento, que traz a mensagem de que ninguém mais ficará sem doador.” O haploidêntico ocorre quando a compatibilidade é de apenas 50%, o que é possível com parentes como pai e mãe. A questão é que se trata de um transplante mais difícil, com taxa de rejeição mais alta. “Mas para uma pessoa em estado grave e que não encontra um doador totalmente compatível, é um procedimento que pode ser viável”, ressalta Rodolfo.

Foi o que aconteceu com o estudante Matheus Lima da Luz, 10, que mora em Rolim de Moura, município de Rondônia. “Ele chegou com uma aplasia grave (doença em que a medula não funciona). O caso dele não permitia esperar até aparecer um doador 100% compatível. O nome de um até apareceu no banco, mas ele não foi encontrado pelas equipes de busca. Um outro foi detectado, mas fora do Brasil. Ou seja, esperar (os trâmites internacionais) também seria difícil no caso dele. Então, o haploidêntico foi o mais indicado”, conta o hematologista.

Para passar pelo transplante, Matheus chegou ao Recife em janeiro deste ano. Recebeu a medula do pai (50% compatível) em fevereiro. No mês passado, veio a boa notícia: a saúde do menino voltou a prosperar e, assim, ele recebeu o aval para retornar a Rolim de Moura. Com a mãe, a costureira Eucineia Santos de Lima, 34, sempre por perto, Matheus nunca deixou o ânimo contagiante perder forças. Agora, recuperado, ele até já faz planos. “Quero me tornar hematologista quando crescer, pois gostei muito do doutor que me atendeu em Porto Velho. Quero cuidar de pessoas também”, diz Matheus, que é um exemplo de como o transplante dá espaço para a essência de criança resplandecer de forma autêntica, livre e feliz.

Foto Matheus Lima

Com a mãe sempre por perto, Matheus nunca deixou o ânimo contagiante perder força

Fonte: JC

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