Trump tenta impedir a publicação de um retrato devastador de sua Casa Branca

Livro causa polêmica e reforça a imagem de presidente caótico e bufão que governa por impulsos

Em uma imagem de 12 de outubro, o presidente dos EUA, Donald Trump, fala para jornalistas na Casa Branca.
Em uma imagem de 12 de outubro, o presidente dos EUA, Donald Trump, fala para jornalistas na Casa Branca. EVAN VUCCI AP PHOTO

 

Donald Trump nunca acreditou que ganharia as eleições. E quando o fez, ficou gelado como um fantasma. Um estupor ao qual, uma vez investido presidente, pareceu continuar preso: não processava as informações, não lia e nem sequer folheava os relatórios. Ele era um “menino grande” que dava broncas no serviço de limpeza por ter trocado sua escova de dentes e ficava paralisado diante de assuntos complexos. A incendiária descrição está em um livro prestes a ser publicado, cujos detalhes de caos e infantilismo na Casa Branca desencadearam uma tempestade espetacular. Trump nega furiosamente seu conteúdo, mas ressurgiu ao mundo a imagem de um presidente caótico e bufão que governa por impulsos.

A bomba se chama Fogo e Fúria: Dentro da Casa Branca de Trump, do polêmico Michael Wolff, um jornalista de 64 anos que escreveu para Vanity FairThe Guardian e Hollywood Reporter. Seu trabalho foi questionado mais de uma vez por sua suposta tendência ao exagero. Neste caso, embora alguns dos altos funcionários tenham se apressado em desmentir o publicado, ninguém nega que ele teve uma proximidade excepcional com a Casa Branca. Foi trazido pelo ex-estrategista-chefe, Steve Bannon, e durante 18 meses obteve 200 depoimentos de pessoas próximas ao presidente, e inclusive se encontrou, embora brevemente, com Trump, um personagem que já havia entrevistado para a Hollywood Reporter e ao qual solicitou diretamente autorização para o livro.

Com essa bagagem, o livro se tornou veneno puro para a Casa Branca. Há citações ferinas por toda parte e personalidades do círculo íntimo de Trump, como o próprio Bannon ou a ex-chefe de gabinete, Katie Walsh, que revelam pormenores vergonhosos da vida no Salão Oval. Sua carga explosiva é tal que bastou a divulgação de alguns trechos para colocar a Casa Branca no modo de combate. Os advogados do presidente tentaram impedir o lançamento do livro, previsto para a próxima terça-feira, e solicitaram por carta à editora, a poderosa Henry Holt & Company, que desista sob a ameaça de denunciá-la por difamação.

Nesse vendaval, o próprio Wolff escreveu um longo artigo explicando a gênese e defendendo o conteúdo do livro. Seu relato, embora às vezes não esclareça a fonte da informação, é um retrato devastador da presidência. Um Governo consumido por lutas internas, sem prioridades claras e dominado, de acordo com o livro, por uma personalidade extravagante e caprichosa que encontra nos instintos seu melhor conselheiro.

A vitória (inesperada)

Melania chorava e Trump, de acordo com o depoimento de seu filho mais velho, ficou gelado como um fantasma. Tinha acabado de saber. Era o próximo presidente dos Estados Unidos. Não acreditava. Não esperava. Até o último dia dava sua derrota como certa. Naquele 8 de novembro, de fato, sua equipe tinha se reunido satisfeita nos quartéis-generais porque considerava que perderiam por menos de 6 pontos. E o próprio Trump, nos dias anteriores, havia manifestado a um amigo, o presidente da rede Fox, Roger Ailes, sua convicção de que ter chegado até ali já era uma vitória que lhe abria as portas da fama, mesmo que lhe fechasse as da Casa Branca. Mas tudo mudou naquela noite. Perplexo, seu assessor de campanha Steve Bannon o viu se transformar. Primeiro cético, depois horrorizado e finalmente iluminado: “Donald Trump se tornou o homem que ele achava que merecia ser e era perfeitamente capaz de ser, presidente dos Estados Unidos”.

Irritação na cerimônia de posse

Steve Bannon em uma fotografia de dezembro de 2017.
Steve Bannon em uma fotografia de dezembro de 2017. JOE RAEDLE AFP / GETTY IMAGES

Não foi o dia mais feliz da vida de Donald Trump. O livro sustenta que ele estava aborrecido com o boicote das celebridades e desgostoso por ter de dormir nas dependências de hóspedes da Casa Branca em vez de no Hotel Trump. A esposa Melania foi vítima de seu mau humor e estava à beira das lágrimas.

Primeiros dias e fobias

Trump não gostou da Casa Branca e desde o início se refugiou em seu quarto, um cômodo separado do de Melania. Foi a primeira vez desde Kennedy que um casal presidencial não dormiu no mesmo quarto. Imediatamente ele pediu mais dois televisores e uma fechadura para a porta, algo que a equipe de segurança desaconselhou. Já instalado, não demorou em dar uma bronca no serviço de limpeza por ter retirado suas camisas do chão. “Se a minha camisa está no chão é porque quero que esteja no chão”, disse. E rapidamente impôs novas regras: ele abriria a cama e decidiria quando queria que os lençóis fossem trocados, e ninguém podia tocar em nada em seu quarto, especialmente em sua escova de dentes. Isto era um reflexo do seu antigo medo de um envenenamento.

A guerra interna permanente

Nos primeiros meses, ninguém dominou a Casa Branca e seus colaboradores mais próximos se odiavam. Três deles competiam e despachavam diretamente com o presidente. O chefe de gabinete, Reince Priebus; o estrategista-chefe, Steve Bannon, e o genro, Jared Kushner. Os dois primeiros eram especialmente desprezados por Trump. Um dia chegou a comentar em voz alta os defeitos de seu círculo íntimo: “Bannon era desleal (sem mencionar que se vestia como uma merda); Priebus, um fraco (sem mencionar que era baixinho, um anão); Kushner, um adulador”, indica o livro.

A escolha de altos cargos e o nepotismo

Trump não sabia quem escolher para os principais cargos. E suas manias não o ajudavam. Quando recomendaram o diplomata John Bolton como assessor de Segurança Nacional, rejeitou-o por causa do bigode. “É um problema. Para Trump, ele não pode fazer parte da equipe com esse bigode”, disse Bannon.

Tampouco melhorou seu critério para a seleção do chefe de gabinete, um posto de enorme poder e que faz as vezes de primeiro-ministro. O primeiro impulso do presidente foi escolher o genro, sem experiência política alguma e cujo principal valor era ser marido de sua filha Ivanka.

Mas isso não importava para Trump. Expressou seu desejo e ninguém se atreveu a rejeitá-lo. Foi alguém de fora quem deu a voz de alerta. A colunista conservadora Ann Coulter disse reservadamente ao presidente: “Ninguém está lhe dizendo, mas você não pode. Você simplesmente não pode contratar os seus filhos”. O sucesso de Coulter foi apenas parcial.

Ivanka, presidenta

O poder de Ivanka e do marido, Jared Kushner, é imenso na Casa Branca. Nos primeiros meses, era igual ao do então chefe de gabinete, Reince Priebus. Tinham contato direto com o presidente e, apesar das advertências, tinham conseguido ser contratados como assessores. “Ivanka havia ajudado o pai não só em assuntos de negócios, mas também em assuntos conjugais. Foi algo transacional”, descreve o livro.

A partir dessa proximidade, tratava o pai com desapego, ria dele e inclusive fazia brincadeiras sobre seu penteado. Enquanto o resto do gabinete se calava, ela lembrava que essa composição capilar era uma maneira de cobrir uma superfície central absolutamente lisa, por meio do artifício de pentear os cabelos dos lados para o centro e depois para trás. Apesar das piadas, não escapou de ninguém que ela era a imperatriz e que aspirava a ser a primeira presidenta dos EUA. “[Ivanka e Kushner] haviam chegado a um acordo sério: se, em algum momento no futuro, a oportunidade se apresentasse, ela seria candidata à presidência. A primeira mulher presidenta — se emocionava Ivanka — não seria Hillary Clinton, mas Ivanka Trump”.

A incompetência de Trump

O presidente não se destacava pelo conhecimento ou pelo sangue-frio. O vice-chefe de gabinete Walsh o descreve no livro como “uma criança cujos desejos deviam ser adivinhados”. Incapaz de se disciplinar, não sabia colocar ordem ou estabelecer prioridades na Casa Branca. “Diga-me três coisas sobre as quais o presidente quer se concentrar. Quais são as três prioridades?”, chegou a perguntar Walsh a Kushner alguns dias antes de deixar o cargo, em março. Sua exasperação tinha, segundo Wolff, um motivo. O presidente não avançava. O livro explica o porquê: “Não processava as informações em um sentido convencional. Não lia nada. Nem sequer folheava. Para muitos, não era mais do que um semianalfabeto. Confiava em sua própria experiência, mesmo que fosse irrelevante, mais do que em qualquer outra pessoa. Muitas vezes se mostrava confiante, mas igualmente paralisado, preso às suas perigosas inseguranças. Respondia instintivamente, arremetendo e agindo de acordo com suas tripas”.

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