Um mergulho no mundo de José Saramago, que faria 100 anos
O português José Saramago pertencia a muitos lugares, o Brasil entre eles. Um porto frequente, onde desfrutou das amizades com Jorge Amado, Zélia Gattai, Nélida Piñon, Rubem Fonseca, Chico Buarque, Sebastião Salgado, Luiz e Lilia Schwarcz.
“Sempre com Zélia e Pilar, os amigos Jorge e José nunca precisaram de longos discursos nem de copos de conhaque para saber que se entendiam e estimavam”, lê-se em um trecho reproduzido do El País.
Ao visitar a Bahia pela segunda vez, em 1996, Saramago pediu: “Estou de férias e quero me sentir como um baiano”. Aproveitou como pôde a Festa de Iemanjá sobre a qual sentenciou: “Vir aqui no dia 2 de fevereiro e não participar da Festa de Iemanjá é como ir a Roma e não ver o Papa”.
Essas e outras histórias podem ser lidas, com deleite, nos livros A intuição da ilha, de Pilar Del Río, e Saramago, os seus nomes (edição de Alejandro García Schnetzer e Ricardo Viel), lançados este ano pela Companhia das Letras. Fazem parte das comemorações pelos 100 anos que Saramago completaria em 16 de novembro último. Há ainda um guia para desvendar a obra do escritor português, também publicado recentemente pela mesma editora: As artemages de Saramago, da crítica literária Leyla Perrone-Moisés.
“Saramago é antes de tudo um estilo. Em sua escrita, a frase portuguesa adquire ritmo particular, obtido por simetrias, incisas, retomadas e inversões, num balanço harmonioso que conduz a um acabamento perfeito”, escreve Leyla, que pega emprestada a palavra “artemages”, do povo do Alentejo, para designar as artes mágicas, o “milagre” do sucesso do único escritor de língua portuguesa agraciado com o Nobel de Literatura.
Como suas pátrias foram muitas, Saramago nunca passava três semanas seguidas na própria casa.
“As viagens tinham como fim a aproximação a outras pessoas e outras culturas, a convivência com o passado e com o presente, com o melhor que os seres humanos produziram e produzem, a arte, e também com o que a natureza oferece”, escreve Pilar Del Río, jornalista, tradutora, presidenta da Fundação José Saramago e a quem o escritor dedicou todos os seus livros após conhecê-la.
Os dois casaram-se em 1988. Cinco anos depois, mudaram-se para a Ilha de Lanzarote (Espanha) e ergueram A Casa, hoje aberta ao público e onde Saramago passou seus últimos 18 anos. É sobre esse período que trata o livro A intuição…, elaborado no silêncio da pandemia. “Pretendi contar o dia a dia de José Saramago em Lanzarote, por que surgiram determinados livros, o que significam esses livros e saiu como se fossem cartas a leitoras e leitores de José Saramago. Sem pretensões acadêmicas”, disse ela, que esteve no Brasil para o lançamento. Com a leitura, conhecemos o Saramago que comprava pão, que alimentava as cabras e as dava nomes, que passeava com os cães Pepe, Greta e Camões.
O português fez da ilha nas Canárias, no Atlântico Sul, “sua casa, o lugar onde trabalhar, juntar idiomas, receber amigos, sonhar, ser amado e amar”, resume Pilar. Ele gostava de dizer que era uma casa feita de livros. Milhares deles que, pouco depois, reclamaram um espaço só seu. Ao lado d’A Casa foi construída, então, uma biblioteca.
Pilar lembra que a inauguração do edifício, uma festa para 100 convidados, foi memorável, “a melhor abertura possível para uma biblioteca que já continha toda a seriedade do mundo, a grande literatura, o pensamento, a reflexão (…) Ninguém saiu da sala sem beijar os livros e alguns leitores beijaram-se entre eles”.
A Companhia das Letras lançou três títulos para marcar o centenário do escritor português José Saramago (divulgação) |
A intuição… tem ainda 13 fotografias, além de uma montagem com cenas do belíssimo filme José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes. O cineasta, que durante anos foi uma sombra de José Saramago, registrou “a cotidianidade, nunca a intimidade” do escritor. Pilar narra a realização do filme: “Aos poucos, confiando na má memória das pessoas mais velhas, Miguel tratava de ir avançando: ‘E se gravássemos na piscina?’, perguntou um dia num gesto inocente. Recebeu uma resposta imediata: ‘Vestido ou nu?’”, comentou um Saramago piadista.
Um capítulo é dedicado aos jornalistas. Nele, destaca-se o respeito de Saramago pela profissão e uma entrevista ao brasileiro Humberto Werneck para a revista Playboy, da qual se extrai um longo trecho. Na ocasião do prêmio Nobel, em 1998, em sinal de reconhecimento, o escritor anotou em seu diário os nomes de todos aqueles que o entrevistaram.
Já o livro Os seus nomes é um álbum biográfico, dividido em quatro seções, onde cerca de 200 nomes são citados, entre lugares, obras, criações e pessoas. Com trechos extraídos de seus diários, entrevistas, cartas e romances, o leitor pode mergulhar no pensamento de Saramago sobre as mais diversas questões literárias, políticas e sociais, além de apreciar mais de uma centena de fotografias.
Ao saber pelo jornal argentino Clarín, por exemplo, que havia uma proposta de entregar zonas arqueológicas, como Machu Picchu e Chan Chan, a empresas privadas, o autor dá o seu veredito: “A mim parece-me bem. Privatize-se Machu Picchu, privatize-se Chan Chan, privatize-se a Capela Sistina (…) privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se o diurno e de olhos abertos. (…) Entregue-se por uma vez a exploração dos Estados a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo… E, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos”.
Jorge Amado, que nunca esteve n’A Casa, é citado outras vezes, como na conquista do Nobel, quando os autores recuperam carta do português endereçada ao baiano: “Queres saber, querido Jorge, o que penso? Que o Nobel deveria ser-nos atribuído em conjunto, a ti e a mim, pois claro, metade para cada um. Não haveria solução melhor”.
E uma vez mais, como escreve Pilar: “No último momento de José Saramago, já no cemitério do Alto de São João, falou-se de Jorge Amado e de seu medo de voar”. É quando a jornalista relembra um pouso forçado que viveram Jorge e Zélia após a falha de um motor na ida de Paris a Saint-Malo, na Bretanha. Em meio à agonia, Jorge pede à mulher o jornal no bolsão da frente. “E você vai ler jornal, numa hora destas?”, pergunta Zélia, ao que o escritor responde: “Ao menos morro sabendo as notícias…”
Foi o que se fez naquela despedida em Lisboa, em 2010. Contou-se a Saramago “que tinha morrido um homem bom, um grande escritor, um ser solidário”. Um ateu humanista.
O essencial do autor
No Colóquio Internacional José Saramago: palavra, pensamento e ação, realizado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em agosto, especialistas na obra do escritor indicaram oito livros essenciais. São eles: Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a Cegueira (1995) e Todos os Nomes (1997).
Mais sobre Saramago
Português nascido na aldeia de Azinhaga, na província do Ribatejo, filho dos camponeses José de Sousa e Maria da Piedade, herdou o nome Saramago (uma planta que servia de alimento) graças à iniciativa do funcionário do cartório que achou por bem dar à criança a alcunha pela qual a família do pai era conhecida no povoado. Mudou-se para Lisboa com a família aos 2 anos e só aos 13 ou 14 passaram a viver numa casa só deles.
Foi bom aluno e teve contato com a disciplina de Literatura no liceu, onde aprendeu o ofício de serralheiro mecânico, função que ocupou por 2 anos. Depois, foi empregado administrativo, casou-se com Ilda Reis, teve a única filha Violante e, no ano do nascimento dela, 1947, publicou o primeiro romance, Terra do Pecado.
Trabalhou ainda em uma empresa metalúrgica, fez traduções, foi crítico literário, publicou poemas, divorciou-se, foi coordenador do suplemento cultural e editorialista do Diário de Lisboa e em seguida foi diretor do Diário de Notícias. Publicou em 1977 o Manual de pintura e caligrafia e decidiu se dedicar inteiramente à literatura. O romance Levantado do Chão é de 1980. São também dessa década os romances Memorial do Convento, O ano da morte de Ricardo Reis, A jangada de pedra e História do Cerco de Lisboa.
Casou-se em 1988 com a jornalista espanhola Pilar Del Río, que hoje preside a Fundação José Saramago, na capital portuguesa. Mudou-se com ela para a ilha de Lanzarote, no arquipélago de Canárias, após censura do governo de seu país natal à apresentação de Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu. Foi na ilha que ele escreveu Ensaio sobre a cegueira, Todos os Nomes, O conto da ilha desconhecida e tantos outros. Em 1995, ganhou o Prêmio Camões e em 1998 o Nobel de Literatura, sendo ainda o único escritor de língua portuguesa agraciado com a máxima da Academia suíça.
Morreu em 18 de junho de 2010, dedicando uma vida à luta pelos direitos humanos e à bandeira de que as pessoas devem ser prioridade absoluta. Suas cinzas foram depositadas aos pés de uma oliveira, em frente à Casa dos Bicos de Lisboa, onde funciona a Fundação. Faria 100 anos em 16 de novembro de 2022.