Um passeio cheio de história pelos terreiros de candomblé em Salvador
As portas da casa nº 222, no bairro do Curuzu, só fecham à noite – a contragosto de Doté Amilton, 70 anos, que gostaria de deixá-las sempre abertas, mas a vida na cidade não permite. Às 6h30, ele manda tirar o cadeado dos portões brancos do Terreiro Vodun Zo, fechados novamente só às 22h. É um convite a quem quiser entrar, basta bater as palmas em sinal de aviso.
Em Salvador, estão 1.738 terreiros de Candomblé, calcula a Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afroameríndia (AFA). Sem desrespeitar os mistérios reservados aos iniciados, há templos que abrem as portas à comunidade externa. Para quem promove esse movimento, é uma tentativa de contar a própria história e desatar os nós do racismo que violenta a religião.
Deixar o terreiro aberto foi uma das primeiras atitudes de Amilton como Doté, sacerdote da nação Jeje (o Candomblé possui sete nações diferentes), há 40 anos. “Eu sempre achei que deveria ser assim”, conta ele. (Leia mais: veja no fim da reportagem lista de templos que aceitam visitação).
Um portal de bronze identifica que o visitante chegou ao Vodun Zo, o primeiro terreiro Jeje tombado pelo município. “Conjunto Monumental tombado” é o anúncio gravado na entrada da Vila Braulino. Para chegar lá, é só descer a Rua Direta do Curuzu e entrar a segunda à esquerda – de carro.
Se estiver a pé, é melhor perguntar a um morador, porque há outros terreiros na região. É o caso do tradicional Ilê Axé Jitolú, a 160 metros do Vodun Zo, que aceita visitas e possui uma trajetória intrinsecamente ligada ao do primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê.
A visita a terreiros de Candomblé proporciona minutos ou horas – depende do seu tempo e do que ficou combinado com a liderança responsável – de resistência, arte e preservação.
“Aqui não temos um memorial só, o terreiro é o próprio memorial, nosso quintal é um memorial”, afirma Doté Amilton.
Na entrada do Vodun Zo, uma fonte com a escultura de uma sereia dourada recebe o visitante. De cima, o quintal do terreiros é uma mancha verde no Curuzu: são 2 mil m² de área. Por lá crescem as árvores sagradas, como as gameleiras, e as frutíferas, como jaqueiras e abacateiras.
Quem chega quer conhecer o terreiro de 132 anos, que resistiu ao tempo e às invasões – simbólicas e físicas. Doté Amilton se disponibiliza a contar aquilo que pode ou autoriza filhos de santo mais velhos a fazê-lo.
Há telhas transparentes, entre as marrons, que deixam feixes de luz entrar e iluminam o barracão do terreiro, onde Doté Amilton recebe a reportagem. Ele gosta do efeito natural das cores. Obras de arte religiosas ornamentam as paredes, junto às fotos da mãe e avó dele.
“Antes vinham mais estudantes, professores, pessoas de fora, hoje observo um interesse maior de outras pessoas, jovens, gente de Salvador”, conta o líder religioso, que autoriza guias de turismo a levarem grupos até lá. Seja perto ou distante dali, outras portas também se abrem.
Tradição e história
A 10 quilômetros de distância, chegamos ao Ilé Ôsúmàrè Aràká Ògôdó (Ilê Axê Oxumarê), na Federação. Saindo da Liberdade, é possível fazer o trajeto de ônibus, o que demanda entre 45 minutos e uma hora, a depender do trânsito e da regularidade do transporte público. Na Avenida Vasco da Gama, há uma escadaria que também dá acesso ao terreiro, no fim da 2ª travessa Pedro Gama de Baixo. Há quem suba, curioso do que está por vir.
Babá Pecê, oluô e babalorixá do Oxumarê (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
“Queremos desmistificar o que muitas pessoas pensam ser o Candomblé”, conta Babá Pecê, o sacerdote à frente do Oxumarê, um dos mais tradicionais da cidade. Um livro de 84 páginas acaba de ser preenchido com a assinatura de visitantes que passaram por lá desde 2002. O substituto já vai em 26 páginas preenchidas.
Antes de visitar um terreiro, é aconselhável ligar. Há casos em que o espaço não pode ser frequentado, exceto por filhos da casa. Os terreiros cumprem períodos de obrigações que podem exigir reclusão e outros deles modificaram o funcionamento durante a pandemia.
O Ilê Axé Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro, um dos pioneiros, na década de 80, em convidar a comunidade externa, está temporariamente fechado para visitação. É época de obrigações. Já o Tumba Junsara, no Engenho Velho de Brotas, pausou a visitação devido à pandemia. Ambos devem retomá-la até meados do ano.
No Oxumarê, onde o barracão principal e as casas dos orixás se escondem entre e sobre o verde, há três pessoas habilitadas a apresentarem o terreiro, além do babalorixá. Desde 2019, filhas de santo ocupam a função. O líder da casa incentiva um processo de musealização do terreiro, onde existe até uma lojinha de suvenires para visitantes.
Búzios
Mas não é só em busca da história material que os visitantes cruzam as portas azuis do Oxumarê. “É como ir a Roma e não ver o papa”, brinca o babalorixá, sobre quem faz questão de consultar seu jogo de búzios. Ele, como Doté Amilton e outros sacerdotes e sacerdotisas, são oluôs, pessoas que veem e interpretam o que os búzios têm a dizer sobre os caminhos da vida.
O jogo de búzios é uma porta de entrada para o Candomblé – o que não é sinônimo de iniciação – e atrai visitantes aos terreiros.
As mãos sacodem, jogam os 16 búzios para cima – cada um representa um orixá – e aguardam no ar a queda do oráculo. O mistério está naquele milésimo de segundo. A partir dali é com Exu, o orixá mensageiro, e depois com os oluôs, que interpretarão as quedas.
16 búzios são lançados à mesa pelos oluôs (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Esse sistema adivinhatório desembarcou em Salvador com africanos escravizados. “É um dos muitos sistemas adivinhatórios que o continente africano nos legou”, explica o antropólogo, babalorixá e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Vilson Caetano. O jogo dos búzios existe há, pelo menos, cinco mil anos, sobretudo entre os iorubás do sudoeste da Nigéria.
Em Salvador, são associados a grandes oluôs nomes como o de Babá Pecê, Doté Amilton, Pair Air, Pai Cícero, Mãe Vânia, Mãe Ana de Xangô, Mãe Neuza e Mãe Nilzete – há, claro, outros. O Candomblé, vale lembrar, valoriza o conhecimento dos mais velhos.
“Ler os búzios é combinar caminhos, e a partir daí as pessoas são orientadas, se precisar que se prescreve algo, como oferendas, para que caminhos sejam abertos”, explica Vilson, também um oluô e babalorixá do Terreiro Ilê Obá L’okê, em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador.
O jogo de búzios é uma parte fundamental da economia dos terreiros, onde há custos para tudo. “Como todo sistema adivinhatório, há uma troca. O valor da troca pode ser simbólico, uma vela, por exemplo, mas a lógica é que o axé é uma força a ser trocada”, afirma Vilson.
Os valores dependem do terreiro e devem ser consultados com cada um – há aqueles que só aceitam pessoas encaminhadas por conhecidos dos líderes religiosos, como no Vodun Zo, no Curuzu.
A fama dos oluôs corre longe dos limites dos terreiros onde os búzios são consultados. No bairro de Plataforma, está o Terreiro Ilê Axé Kalê Bokun, o único da nação Ijexá tombado pelo município.
Antropólogo e babalorixá, Vilson Caetano destaca o jogos de búzios como ‘porta de entrada’ (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
A sacerdotisa à frente da casa, Mãe Vânia, 69 anos, é procurada pela oluô (leitora de búzios) que é. Às terças, quartas e quintas, ela recebe pessoas que não querem apenas conhecer o terreiro, mas consultar o oráculo. Por dia, ela atende, no máximo, cinco pessoas. “Sexta de jeito nenhum e domingo tiro para o lazer”, conta.
No Kalê Bokun, a 30 minutos da Estação de Metrô Pirajá, há regras para as visitas. A ialorixá prefere que os mais velhos na religião estejam por perto: os mais novos estão em fase de aprender, não de explicar. “Agora só não gosto quando vem barganhar com o orixá”, afirma.
O início da troca
Historicamente, terreiros são espaços de agregação, e o diálogo com a sociedade exterior foi decisivo para a sobrevivência deles. Entre 2017 e 2018, a turismóloga Ofir Souza, 33, estudou a hospitalidade em dois terreiros de Candomblé de nação ketu. Para ela, a visitação – sem compromisso religioso – às casas de Axé podem ser vistas como um segmento dos turismos étnico, que valoriza o patrimônio material e imaterial de grupos étnicos, e religioso.
Foi o interesse de pesquisadores e artistas – como Jorge Amado, Carybé e Pierre Verger – que primeiro aguçou o imaginário social a respeito das culturas afro-brasileiras, segundo Ofir. Mãe Menininha do Gantois, do Ilé Ìyá Omi Àse Ìyámasé (Terreiro do Gantois), filha de Oxum, uma das ialorixás mais famosas do Brasil, se tornou um dos símbolos desse imaginário.
A filha de Oxum inspirou até músicas, como Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi, e é a única mãe de santo homenageada por um memorial.
O espaço funciona dentro do terreiro, na Federação, e pode ser visitado após agendamento. Enquanto estava viva, aquele era o quarto de Mãe Menininha, onde estão preservados objetos como um pote azul e dourado usado em rituais religiosos na infância.
Mãe Senhora, a terceira ialorixá a comandar o Ilê Axé Opô Afonjá, mostra Ofir, “foi uma das primeiras a abrirem as portas dos terreiros para pessoas externas”. O Opô Afonjá é o primeiro terreiro, em 1982, a abrir um museu – o Ilê Ohun Lalai. Hoje, o espaço está fechado devido à pandemia.
“Os terreiros, que são também segundos quilombos, onde todos são bem-vindos, passam a ter uma visibilidade para a comunidade externa”, afirma a pesquisadora.
Só em 2003 a discussão sobre o turismo em terreiros começou. Naquela época, estava em questão o fato de agências de viagem produzirem “shows folclóricos em templos”, lembra Leonel Monteiro, presidente da AFA.
“Esse assunto não foi plenamente resolvido, mas os terreiros começaram a pensar numa nova forma, que desconstrua a deturpação que se faz da religião”, explica Leonel.
O religioso acredita que, assim como as igrejas católicas são visitadas e se movimentam economicamente, é possível pensar em modelos para os terreiros. Com diferenças, é claro: roupas pretas e curtas devem ser evitadas na hora de visitar um templo da religião.
Outros terreiros investiram, ao longo dos anos, em memoriais. Nos fundos do Pilão de Prata, na Boca da Rio, está o Memorial Lajuomim do terreiro, onde painéis e fotografias contam a história de membros da família de Bamboxê Obitikô.
Esse babalaô nigeriano, na Bahia, ajudou a estabelecer as bases para o culto aos orixás que levou à abertura do primeiro terreiro ketu brasileiro – o de Ilê Àse Iyá Nassô (Casa Branca), que também abre as portas para que visitantes conheçam parte da sua história e beleza.
Confira o roteiro com 10 terreiros na capital:
– Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (Terreiro do Gantois)
Endereço: Alto do Gantois, 33, Federação
Telefone: (71) 3331-9231
– Ilê Axé Opó Afonjá
Endereço: Rua Direta de São Gonçalo do Retiro, 557, Cabula
Telefone: (71) 3384-5229
– Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca)
Endereço: Avenida Vasco da Gama, 463, Engenho Velho da Federação
Telefone: (71) 3335-3100
– Terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe
Endereço: Rua do Curuzu, 222, Bairro da Liberdade
Telefone: (71) 3256-7230
– Ilê Maroiá Lájié (Terreiro de Alaketu ou Olga de Alaketu)
Endereço: Rua Luis Anselmo 67 – Matatu de Brotas
Telefone: ( 71) 3244-2285
– Ilé Òsùmàrè Aràká Àse Ògòdó (Casa de Oxumaré)
Endereço: Avenida Vasco da Gama, 343, Federação
Telefone: (71) 3237-2859
– Mansu Bandu Kenkê (Terreiro do Bate Folha)
Endereço: Travessa de São Jorge 65, Mata Escura
Telefone: (71) 3261-2354
– Ilê Odô Ogê (Terreiro do Pilão de Prata)
Endereço: Estrada do Curralinho, Boca do Rio
Telefone: (71) 3341-9055
– Ilê Axé Jitolú (Ilê Aiyê)
Endereço: Rua do Curuzu, 231, Liberdade
Telefone: (71) 3386-2148
– Tumba Junsara
Endereço: Engenho Velho de Brotas, Ladeira da Vila América, Vila Colombina, 30
Contato: @terreirotumbajunsara (Instagram)