Um retrato sensível de Clarice Lispector

Obra apresenta perfil da escritora a partir do convívio com os amigos Marina e Affonso

Ubiratan Brasil

Clarice Lispector (1920-1977) sempre foi devotada aos amigos, especialmente escritores. Diante deles, não era um ser fechado, amargurado, como se perfilava a partir de sua escrita intimista – na verdade, Clarice mostrava-se atenciosa e invariavelmente convidava as pessoas para a visitarem.

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No rol das amizades, destacava-se o casal Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna. Ambos a conheceram quando já era escritora consagrada, mas cultivaram com ela uma relação de profunda amizade, que percorreu os caminhos da literatura e da vida. É o que se observa em Com Clarice (Editora Unesp), volume em que Marina e Sant’Anna esboçam um retrato sensível de uma mulher, à primeira vista, indecifrável.

Por isso, o livro apresenta facetas por meio de estudos acadêmicos até da transcrição de um importante depoimento dado por Clarice ao Museu da Imagem e do Som do Rio, em1976, e do qual participou o casal de amigos, a pedido da escritora. “Ela estava particularmente feliz naquele dia, sorrindo várias vezes”, lembra-se Sant’Anna, que teve a ideia da obra graças aos incessantes pedidos de pessoas que escreveram livros relevantes sobre Clarice: resolveu oferecer sua visão e a de Marina, lembranças de afeto e epifanias.

Enquanto o poeta Affonso Romano de Sant’Anna assina textos mais acadêmicos, Marina Colasanti aposta no lirismo e nas recordações mistas – visões distintas que só alimentam o baú já repleto de imagens múltiplas de Clarice Lispector. Em Com Clarice, o casal não busca decifrar um mistério, mas oferecer mais peças do enorme quebra-cabeça que era a escritora.

Boas histórias não faltam. “Um dia, ela nos cobrou que não a convidávamos para jantar. Não o fazíamos por pudor”, lembra Affonso. “Mas, tendo ela manifestado o desejo, armamos um jantar onde ela escolheria todos os convidados. Até o horário era cedo, como ela queria. Fui buscá-la em sua casa. Pois ela chegou, viu aqueles amigos todos, mas, daí a uns 15 minutos, fez um pedido que era uma ordem: ‘Quero ir embora.’ Levei-a de volta à sua solidão. E os amigos compreenderam.”

Clarice lamentava ter um espírito cansado e blasé. “Pouca coisa me entusiasma, eu bebi demais na literatura”, dizia. Essa a Clarice que vocês conheciam?

Affonso – Não se pode julgar, conhecer Clarice por parâmetros comuns. Ela era fora de série, ocupava o “não-lugar”– que é, aliás, o “lugar” dos artistas excepcionais. As pessoas que a conheceram, da geração dela, sabiam disto (Otto, Fernando, Hélio, Paulo Francis, Drummond); e nós, que viemos depois, captamos logo essa aura da pessoa extremamente delicada. Ela parecia um jarro de porcelana que ia quebrar a qualquer hora. E a linguagem com que ela se expressa (a literatura) tem essa tensão, essa frágil fortaleza. Talvez tenha sido o que ela quis dizer com “bebi demais na literatura”. Ela vivia de linguagem e para a linguagem.

Marina – Ela não era blasé, de jeito nenhum. Nem estava cansada, no sentido que se dá a isso. Sempre tive a impressão de que teria gostado muito de se entusiasmar com mais facilidade, de participar da vida de uma maneira fácil, despreocupada. Mas não era possível. Havia, entre ela e a despreocupação, uma barreira, e não era a literatura. Na literatura, ela buscava o abrigo que a vida não lhe oferecia.

Quais lembranças Clarice tinha do período diplomático do marido, que viajou por vários países?

Affonso – Pensei numa época em fazer o Itamaraty e desisti. Há que ter um certo talento. Clarice, me parece, era a anti diplomata: sorrir, ser gentil, representar, não era a dela. Deve ter se esforçado, mas, falando em termos psicanalíticos, diria que ela não “representava”, simplesmente “apresentava-se” como era. Veja o “não-jantar” lá em casa em que ela esteve e não-esteve. Aliás, uma boa definição para ela talvez seja essa: ela não estava nem aí.

Marina – Mais do que lembranças turísticas ou diplomáticas, tinha lembranças de sobrevivência. As cartas escritas às irmãs nos dizem de sua solidão em meio às festas de representação, e o seu olhar se pousa já inquiridor sobre pessoas desconhecidas, mais interessado no humano do que nas paisagens.

Como existem escassas imagens em movimento de Clarice, chama atenção a observação que vocês fazem sobre os silêncios que volta e meia interrompiam a fala dela. Como era isso?

Affonso – A coragem do silêncio, isto me apaixona. E ela fazia do silêncio o seu esconderijo. Eu me lembro na juventude ao ler Jean Christophe, de Romain Rolland, e ter ficado impressionado com um personagem (acho que o tio Gotfried) que havia dito 70 palavras em toda a sua vida. Por isto, pode-se pensar em poesia quando se fala de Clarice: poesia é o sentido rodeado de silêncio por todos os lados. Tem uma entrevista dela na TV que ilustra isto: seus silêncios e os entrevistadores sem saber o que fazer. Aliás, vou lhe dizer: o silêncio pode ser doentio mas é também um luxo. Ela se dava esse luxo.

Marina – Eram pausas mais longas do que o esperado, pausas suspensas, que podiam ser interrompidas a qualquer momento pela retomada da fala, como se ela estivesse apenas pensando antes de ir adiante. Reparei nisso na primeira vez que estive com ela, em sua casa. Eram pausas que o interlocutor não se atrevia a interromper, como se qualquer palavra fosse partir o discurso interior e calado que parecia prosseguir dentro dela.

Quais eram as preocupações de Clarice com o ofício de escrever ficção e fazer jornalismo?

Affonso – Andam fazendo uma certa confusão com certo material jornalístico de Clarice, como se tudo fosse “obra de arte”. Ela precisava sobreviver e até alugava sua força de trabalho e usava pseudônimos. Na biografia dela, volta e meia, o Otto Lara, que era uma alma amiga tentava arranjar um emprego para a amiga.

Marina – Há uma parte juvenil de sua atividade jornalística que tem um valor puramente documental, de forma alguma literário. O cruzamento entre as duas atividades se dá já na revista Senhor, quando cria a seção Children’s Corner, onde é visível sua técnica de escrita em fragmentos, fragmentos com os quais mais tarde construía os romances. Da mesma forma trabalha no Caderno B do Jornal do Brasil, sempre avisando os leitores de sua distância formal da crônica, de seu “não estar fazendo” crônica, de seu não saber sequer o que, exatamente, estava fazendo. E no entanto sabia: estava fazendo literatura.

Fonte: Estado de S. Paulo

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