Única ministra de tribunal militar penou para se impor entre generais
Era um momento parecido com o de agora: em 2011, Ellen Gracie, primeira mulher ministra do Supremo Tribunal Federal, estava perto de se aposentar da corte, estimulando uma frenética corrida por sua vaga. Maria Elizabeth Rocha, ministra do STM (Superior Tribunal Militar), aparecia entre os nomes mais cotados.
A escolhida por Dilma Rousseff seria Rosa Weber –cuja aposentadoria, no final deste mês, alimenta disputas e bolsas de apostas semelhantes às de 12 anos atrás.
Mesmo preterida, Elizabeth reforçou ali sua visibilidade no primeiro time do Judiciário nacional. Nomeada por Lula (PT) em 2007, foi a primeira mulher a integrar o STM, mais antiga corte do país, criada em 1808.
Desta vez, Elizabeth Rocha, 63, não desponta como favorita à vaga de Rosa, mas exalta o novo cenário.
“A sociedade está descobrindo –e falo isso ironicamente, porque descobre muito tarde– que existem muitas mulheres extremamente competentes aptas ao cargo de ministra”, diz. Ela defende que uma magistrada negra ocupe a cadeira.
Militante por uma sociedade mais diversa e inclusiva, Elizabeth festeja os avanços em relação a direitos de mulheres, negros, homossexuais. Sabe que resta um longo caminho a ser percorrido e vê com preocupação um refluxo justamente no espaço feminino nos tribunais, piora que pode se confirmar na próxima sucessão no STF.
“Nós perdemos uma mulher no TCU, com a aposentadoria da Ana Arraes. Nós perdemos uma mulher no TSE, quando a Maria Claudia Bucchianeri, que deveria ser a ministra indicada como titular, não foi. E agora nós estamos correndo o risco de perder uma mulher no Supremo. Ou seja, em vez de haver avanços, está havendo retrocesso. E isso é assustador.”
A notícia de que Lula tende a subtrair 1 das 2 vagas de mulheres no STF, nomeando um homem, amplifica sua contundência. “Porque é um presidente que afinal de contas se diz de vanguarda, um homem de esquerda.”
Pode-se dizer que Elizabeth tem lugar de fala para a cobrança. Ela é uma exceção no STM não apenas por continuar como a única mulher entre 15 integrantes (10 militares, generais de quatro estrelas das três Forças Armadas, e 5 civis), mas por desde sempre estar associada ao campo progressista, na contramão da maioria fardada da corte.
Filha do advogado Aderbal Teixeira Rocha —brizolista, um dos fundadores do PDT em Belo Horizonte, a ministra é uma crítica do golpe militar e da ditadura, que certa feita definiu como “uma longa noite que durou 21 anos”.
É casada com o general da reserva Romeu Costa Ribeiro Bastos, irmão de Paulo Costa Ribeiro Bastos, militante do MR-8 e um dos nomes da lista de desaparecidos políticos vítimas da ditadura.
O general foi secretário de administração da Casa Civil da Presidência no primeiro mandato de Lula e secretário-geral da AGU (Advocacia-Geral da União) na gestão de José Antonio Dias Toffoli –um dos padrinhos da indicação de Elizabeth ao STM.
“Eu respeito os militares, sou respeitada por eles, não tenho o que dizer. Mas pensamos diferente e nem por isso eu sofro nenhum tipo de hostilidade”, afirma a ministra.
Não é bem assim. Logo na cerimônia de sua posse, em 2007, Elizabeth teve de amargar um discurso atravessado do general que em tese fora encarregado de saudá-la, Valdésio Guilherme de Figueiredo.
O colega puxou-lhe as orelhas por uma entrevista que ela dera às vésperas da posse e lembrou e relembrou que, no STM, teria de respeitar a doutrina militar.
Em 2014, Elizabeth era vice-presidente do tribunal, e o presidente (Raimundo Nonato de Cerqueira Filho) se aposentou no meio da gestão.
Segundo a ministra, um colega (civil) tentou alterar o regimento para impedi-la de assumir. Ela diz ter tido apoio dos ministros militares contra a virada de mesa, e acabou eleita para presidir o tribunal no restante do mandato.
No cotidiano do tribunal, não raro tem suas falas interrompidas. Ou vê teses que defendeu só serem endossadas quando proferidas por um par masculino.
“Aí às vezes eu brinco: ‘Ministro fulano, essa tese já existe e não foi o ministro sicrano quem a defendeu aqui no plenário, fui eu, mas vossas excelências não me acompanharam. Quando ele defendeu, aí vossas excelências mudaram de entendimento’.”
Quanto ao golpe e à ditadura, por haver um fosso entre a sua opinião e a da maioria dos colegas (que costumam se referir ao período com mistificações e eufemismos como “contragolpe” ou “movimento”), Elizabeth conta que o assunto é tangenciado.
Como ela os ministros militares são de uma geração menos afetada diretamente pelo período, diz que a postura dos fardados da corte é mais equilibrada que a de generais mais velhos.
Se há algo em que Elizabeth e os ministros militares estão sintonizados é a defesa da Justiça Militar e do papel do STM, inclusive durante a ditadura –e aí ela discorda de pesquisadores do período e militantes de direitos humanos.
Elizabeth admite que o STM sabia das atrocidades praticadas pelo regime, mas ressalva que foi ao mesmo tempo “o único tribunal do país que subscreveu um acórdão por unanimidade contra as torturas e sevícias” e que teve sua atuação limitada por não ter sido provocado pelo Ministério Público Militar.
Em tempos democráticos, a ministra discorda dos que defendem a extinção da Justiça Militar.
Proclama-se uma garantista: “Sou uma das que mais absolvo ali. Para mim, faltou um carimbo no processo, eu anulo, porque acho que, para tirar a liberdade ou a primariedade de alguém, o Estado tem que estar muito convicto, e a cadeia de custódia e de provas tem que estar rigorosamente correta, e muitas vezes não está”.
Ao relativizar o corporativismo da Justiça Militar, diz que os colegas fardados não são assim. “Eles são punitivistas, entendem que a punição tem que ser dada, inclusive, como exemplo para as tropas.”
Às vezes deixa de lado sua índole antipunitivista, como no caso dos militares que assassinaram um músico e um catador no Rio em 2019: no início do processo, Elizabeth votou para manter os réus presos preventivamente, mas foi vencida. “Ali foi diferente, foi um extermínio.” Mais tarde, a Justiça Militar condenou oitos militares a penas entre 31 anos e 28 anos de prisão.
É por situações assim que Elizabeth é radicalmente contrária ao uso de militares em operações de segurança pública, que define como “uma excrescência, porque o militar das Forças Armadas não está preparado para ser polícia, mas para ir à guerra”.
Considera que o “dano colateral” (eufemismo para mortes de inocentes em ações do tipo) seja uma contingência trágica e defende que cabe à Justiça Militar julgar crimes cometidos por fardados nessas circunstâncias –impasse que foi parar no STF.
Embora condene a politização das Forças Armadas promovida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a ministra defende o papel da cúpula militar –inclusive no que diz respeito ao “dia da infâmia”, como se refere ao 8 de janeiro.
“Não teve golpe no Brasil porque as Forças Armadas não quiseram, pois vontade, pelo visto, teve muita.”
Elizabeth fez carreira na advocacia privada e em seguida enveredou pela advocacia pública. Nada de quartéis. O que não diminui seu propósito, como ministra do STM, de incluir mulheres nas Forças Armadas. No Exército, a mais fechada, elas não são aceitas nas principais armas, o que praticamente as impede de chegar ao topo da carreira.
Deverá tomar o desafio como uma das muitas cruzadas quando, em 2025, voltar a presidir o tribunal, desta vez de maneira efetiva. Segunda mais antiga do STM hoje, na ocasião será também a decana da corte.
RAIO-X | MARIA ELIZABETH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA, 63
É ministra do Superior Tribunal Militar desde 2007. Nascida em Belo Horizonte, formou-se em direito em 1982, pela PUC Minas. É mestre em ciências jurídico-políticas pela Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e doutora em direito constitucional pela UFMG. Atuou na advocacia, foi procuradora federal (1º lugar no concurso para a AGU em 1985). Trabalhou na Câmara dos Deputados, no TSE e na Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência. Leciona na pós-graduação em direito da UniCEUB, em Brasília.
Fabio Victor/Folhapress