Vale se beneficiou de violações contra povo indígena Gavião pela ditadura para construção da Estrada de Ferro Carajás

No aniversário de 27 anos de privatização da empresa, reportagem do BdF relata impactos de obra sobre indígenas do Pará

Pedro Stropasolas – Brasil de Fato
 
Estrada de ferro Carajás, no Maranhão
Estrada de ferro Carajás, no Maranhão – Reprodução

No dia 28 de fevereiro de 1985, o trem da Companhia Vale do Rio Doce passou pela primeira vez dentro da Reserva Indígena Mãe Maria, no sudeste paraense. Dos 892 quilômetros de extensão da Estrada de Ferro Carajás, 17 estão dentro do território dos três subgrupos do povo Gavião: Kyikatejê, Akrãtikatêjê e Parkatêjê.

Cortando terras indígenas e quilombolas, além de vinte e duas unidades de conservação, a ferrovia foi construída no início dos anos 1980 dentro do projeto Grande Carajás, lançado no governo de João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar.

A linha liga a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo, em Carajás (PA), ao Porto de Ponta da Madeira, em São Luís (MA). Sob concessão da Vale até 2057, a estrada de ferro até hoje causa transtornos para os 700 indígenas que vivem em Mãe Maria.

“Aqueles pozinhos do minério, que passa dentro da nossa terra, na ferrovia, aqueles pozinhos contaminou o lago, os frutos. Quando a gente tira fruto, ele tá poluído. Existem muitas mulheres doentes. Dez mulheres que fizeram cirurgia do útero, tiraram tudo. Minha prima tirou tudo. Ela ficou muito triste. Ela queria ter filhos e não pode mais. A gente acredita que vem disso, porque a gente se alimenta dos frutos, dos animais, e estão todos contaminados”, coloca Adilene Aikrepeiti Ribeiro Airompokre, cacica da aldeia Airompokrejõkri.

“Isso impactou muito na nossa saúde, na nossa alimentação, e na nossa própria terra. Perdemos muitas árvores, parte das nossas florestas foram derrubadas. Tudo aconteceu dentro da nossa terra indígena Mãe Maria”, completa.

No dia em que se completam 27 anos do leilão em que a empresa foi privatizada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1997, o Brasil de Fato lança uma série sobre sobre a expansão da Companhia Vale do Rio Doce durante o regime militar e os impactos para povos indígenas que tiveram seus modos de vida destruídos pela repressão, invasão de fazendeiros e deslocamento forçado. Esta primeira reportagem traz a luta do povo Gavião, no sudeste do Pará, contra os impactos ocasionados pela Estrada de Ferro Carajás (EFC).

Além da estrada de ferro Carajás, a Terra Indígena Mãe Maria foi alvo de outros projetos de integração do governo militar, como a construção da rodovia BR-222 e da linha de transmissão de energia de Tucuruí, da Eletronorte, cujos impactos também são sentidos até os dias de hoje.

“Hoje existem atividades culturais que a gente não pratica mais, como a nossa pesca cultural. Não existe mais lagos. E com a chegada da Eletronorte veio a energia, veio a tecnologia. Então hoje o canto das mulheres hoje a gente não pratica mais. Porque a gente praticava em noite de luar, a luz da lua batia no pátio da aldeia. E as mulheres se reuniam. E a gente cantava. Hoje isso não acontece mais. Porque hoje a aldeia já está toda iluminada. Então, mais ninguém senta no meio do pátio. Hoje as mulheres não se reúnem mais. Por causa da tecnologia que tem na Aldeia, televisão, celular, internet”, completa Airompokre.

O projeto Carajás

O projeto Grande Carajás, criado por Figueiredo, deu seguimento a grandes projetos de interiorização iniciados pelo presidente Castelo Branco, que nos anos 1965 e 1966, lançou a Operação Amazônia e a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia.

Com o lema “integrar para não entregar”, o Plano de Integração Nacional, editado em 1970, também estimulou a ocupação da região, vista pelos militares como um “vazio populacional”.

Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, a construção de estradas na região, como a Transamazônica, provocou a morte de 8 mil indígenas somente no governo do general Emílio Garrastazu Médici, entre 1969 e 1973.

O professor da Universidade de Viçosa (UFV) Tádzio Coelho aponta que a instalação efetiva do projeto Grande Carajás na segunda metade da década de 1970 é um marco na reinserção do país como primário exportador, processo já estimulado pela instituição do Marco Regulatório da Mineração, em 1967.

“Esse processo de desindustrialização já estava em curso ali nos anos 1970, quando tem a instalação do projeto Grande Carajás. E disso nós temos diversos impactos e diversos danos causados por essa reinserção. A gente está discutindo aqui a questão territorial. Eu acho que é fundamental a gente pensar como essas pessoas foram desterritorializadas durante esse período”, explica o docente.

“Não são só populações indígenas, mas também populações tradicionais no sudeste paraense. Em termos internacionais, de inserção soberana, a gente percebe uma inserção subordinada do Brasil na cadeia produtiva global a partir desses grandes projetos da ditadura civil militar”, completa Coelho.


A estrada de ferro Carajá tem 892 quilômetros de extensão e impacta comunidades rurais e territórios indígenas no Pará e Maranhão / Marcelo Cruz / MAM

Do quase extermínio a luta contra à Vale

Os Parkatêjê são os mais numerosos entre os povos da TI Mãe Maria. O contato com não indígenas ocorreu durante a década de 1950, ocasionando a morte de mais de 70% da população.

Antes de serem transferidos para a Terra Mãe Maria na década de 1970, o povo liderado pelo “capitão” Krohokrenhum, como era conhecido, precisou resistir à escravização na coleta de castanha pelo Serviço de Proteção ao Índio e posteriormente pela Funai, já comandada por militares.

Hoje, a batalha do povo Gavião é contra a duplicação da ferrovia construída na ditadura. Em novembro de 2012, o Ibama concedeu Licença de Instalação para o projeto de expansão da mineração da Vale S.A. na Floresta Nacional de Carajás.

De 2013 a 2017, foram duplicados 575 quilômetros da estrada de ferro no Pará e no Maranhão. A duplicação aumentou a capacidade anual de transporte da Vale para 230 milhões de toneladas de minério de ferro.

“A Vale hoje está com um segundo linhão, e a gente vê isso como um desastre ambiental. E não é desde agora, é uma luta que vem de muito antes. Hoje eles falam de estudos ambientais, mas porque não tiveram esse estudo antes de construir. O local de caçada, onde pescava, tudo secou. Foi um impacto tanto social, como ambiental. E a gente não sabe como vai ficar daqui pra frente, porque era só uma linha e agora são duas”, avalia a educadora Jopramre Parkatêjê, neta de Krohokrenhum.

O pagamento de um “pedágio” mensal, de caráter vitalício, para a passagem de mais de 10 mil vagões e 217 locomotivas da Vale pelo interior do território foi uma conquista de Krohokrenhum e do povo Gavião ainda antes da inauguração da estrada de ferro, nos anos 1980. Na época, os indígenas não aceitaram apenas a indenização de 56 milhões de cruzeiros paga pela mineradora em 1982 em razão da destruição da floresta nativa repleta de castanhais.

O convênio que garante o repasse às associações indígenas do povo Gavião chegou a ser rompido em 2015 pela Vale, que passou a não cumprir parte dos pagamentos mensais às 21 aldeias em Mãe Maria. Afetados pela crise da covid-19, os indígenas precisaram ceder à pressão da mineradora.


Líder Kokrenhum assina acordo com a Companhia Vale do Rio Doce autorizando a passagem da Estrada de Ferro Carajás no território Mãe Maria / Cynthia Brito

O repasse, em tese, garante aos indígenas acesso a assistência, saúde, educação, fomento às atividades produtivas, vigilância e proteção territorial.

“Eu acredito que a Vale ela tenta de alguma forma tirar nossos direitos pouco a pouco, mesmo negociando. Porque nós temos o convênio com a saúde. A Vale tem o recurso mensal que passa pras associações, e tem o convênio da saúde. Mas é muita coisa cortada. O tratamento odontológico não é completo, é básico, de extração e obturação. Então assim são coisas básicas, você vai na Sesai, que atende também aqui ao povo indígena você também encontra. Como a Vale é uma empresa de grande porte ela tem que ter um tratamento maior para a gente, porque os vagões dela quando passam aqui é extenso, você não vai vê o fim”, coloca Jopramre.

No período de novembro de 2004 a maio de 2016, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) registrou a morte de 26 pessoas e 124 acidentes ao longo da Estrada de Ferro Carajás (EFV).

“Quanto mais duplicar, mais minério vai tirar e passar pelo nosso território. Ela é uma ‘parceira’ entre aspas, porque se ela dá o recurso, ela passa aqui dentro, então não é parceria, é dever dela passar. Se ela não passasse ela ia dar o recurso para a gente? Não ia dar”, completa.

“Hoje dentro da nossa terra tem vários povos que têm medo de um dia a Vale acabar. E como é que eles vão viver? Como é que vão ficar? Porque já estão acostumados. Com recurso. Mas, nós que entendemos, nós sabemos que [a gente] consegue sobreviver sem a Vale. Porque a gente sobreviveu desde muito tempo. Então pra mim a Vale não tem significado nenhum não”, complementa a cacica Adilene.

Acionistas se beneficiaram de estrutura de Carajás

A descoberta de Carajás potencializou uma transição da estrutura produtiva da então Companhia Vale do Rio Doce, com a instituição da mineração a céu aberto, perfuratrizes de dimensões mais amplas, escavadeiras e utilização de dinamite. Tudo isso foi substituindo a força de trabalho predominantemente manual, como se observava em Minas Gerais na década de 1950.

Em maio de 1997, a maior parte da então estatal Companhia Vale do Rio Doce foi adquirida por acionistas por R$ 3,3 bilhões. O professor Tadzio Coelho explica que o capital privado se beneficiou de diversas políticas públicas de infraestrutura de extração, transporte e beneficiamento levadas pelo governo militar com o projeto Grande Carajás.

O endividamento do Estado brasileiro causado pelos investimentos no Projeto Carajás, segundo ele, foi além do período da ditadura e adentrou também a redemocratização do país. Foi apenas em meados dos anos 1990, quando estava prestes a ser vendida, que a Vale  se tornou superavitária com a exploração em Carajás.

“Não é mais exatamente uma empresa brasileira, é uma multinacional com sede no Brasil. E isso significa dizer que maneiras de controle, de influência no funcionamento da empresa são ainda mais restritas, mais limitadas ainda do que já eram. Então você tem por um lado essa essa privatização dos ganhos gerados pelo investimento público e num segundo momento a diminuição das formas de controle da empresa. Ela se torna uma multinacional que não diz respeito mais aos interesses nacionais, de soberania, de autonomia do país. E ainda ela passou por uma, vamos dizer, segunda privatização a partir do governo Temer, quando foi possibilitado um novo acordo dos acionistas”, explica Coelho.


Vale detém o domínio da maioria das empresas terceirizadas em atuação na região portuária e Estrada de Ferro Carajás. / Divulgação

“A Vale hoje tem uma estrutura acionária extremamente pulverizada e nós temos a presença de grandes fundos de investimento como é o caso da BlackRock que controla boa parte das ações da empresa. Então, hoje a Vale diz mais respeito a esses fundos de investimento internacionais do que à população brasileira e ao governo brasileiro”, completa.

Atualmente, é a expansão da operação em Carajás que garante o posto da Vale entre as cinco maiores mineradoras do mundo. Nos últimos anos, a empresa bateu recordes seguidos de lucro: foram R$ 95,9 bilhões em 2022 e R$ 121 bilhões em 2021. Em 2023, o lucro líquido da Vale somou US$ 39,94 bilhões.

No 2º trimestre de 2023, a produção de minério de ferro da Vale cresceu 6% na comparação com o mesmo período de 2022. O aumento, segundo a mineradora, foi impulsionado pelo recorde na produção do complexo Carajás, que cresceu 2,9 milhões de toneladas métricas.

Uma exploração que não foi interrompida nem na maior das crises sanitárias da história do país. Durante a pandemia, Canaã dos Carajás, no coração da exploração da Vale, registrou índices mais altos de infecções por covid-19 que muitas capitais do país, principalmente entre os trabalhadores.

“Hoje a gente encontra um modelo de mineração brasileiro extremamente antipopular e prejudicial a ao meio ambiente, destruidor das populações e dos seus modos de vida. Esse modelo tem várias características e feições que são herdadas da ditadura civil militar do Brasil”, finaliza Tádzio Coelho.

Outro lado

A reportagem do Brasil de Fato procurou a Vale para um posicionamento a respeito dos fatos relatados. Em nota, a mineradora afirmou que “o processo de licenciamento do Projeto de Expansão da Estrada de Ferro Carajás, que é vizinha à Terra Indígena por 18 km, respeitou todos os normativos vigentes e compromissos da empresa, dentre eles a realização de consulta livre, prévia e informada, com a produção de forma participativa do Estudo de Componente Indígena (ECI) e seu Plano Básico Ambiental (CI-PBA)”, ambos em execução.

Afirmou ainda que “colabora com a saúde dos integrantes da Comunidade Indígena Gavião da TI Mãe Maria mediante fornecimento de serviço complementar de saúde, cuja responsabilidade primária é do Poder Público”. Essa colaboração se dá por meio de “uma operadora privada baseada na autogestão”, mantém rede de profissionais para a prestação de serviços odontológicos. “Esse atendimento é regulado pelo poder público, representado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que define uma lista de consultas, exames e tratamentos, denominada Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que os serviços complementares de saúde são obrigados a oferecer”, diz a nota.

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