No fim dos anos 1960, os militares elaboraram ambiciosos planos de integração nacional. A rodovia BR-174 foi uma das concebidas à época, para conectar a Amazônia ao resto do país, e hoje é a única ligação de Roraima ao Brasil.
Ao longo de 123 quilômetros, seu trajeto passa por dentro da terra indígena Waimiri-Atroari, na fronteira com o Amazonas, com postos de controle de tráfego em Presidente Figueiredo (AM) e Rorainópolis (RR).
Foi no trecho que fica em Roraima que, em 28 de fevereiro, o deputado Jeferson Alves vandalizou, com alicate e motoserra, o bloqueio que impede o acesso à terra indígena entre 18h e 6h.
No ato, transmitido pela internet, Alves diz que vai livrar seu Estado da corrente, que restringe o acesso entre as cidades de Manaus (AM) e Boa Vista (RR).
“Se depender de mim essa corrente nunca mais vai deixar meu Estado isolado”, afirma no vídeo. São os indígenas que fazem a manutenção diária do bloqueio, necessário para evitar acidentes com animais e pessoas dentro da reserva.
As hostilidades entre poder público e a etnia, entretanto, datam de muito antes. Segundo o Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, a região contém centenas de vítimas da ditadura enterradas clandestinamente.
Os Waimiri-Atroari quase desapareceram durante a abertura da rodovia BR-174: de pouco mais de 3.000 indivíduos nos anos 1960, segundo dados da Funai, a população caiu drasticamente para 332 indígenas em 1982, de acordo com Stephen Baines, que percorreu todas as aldeias no início da década.
Hoje, são 2.009, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA).
Na década de 1970, o posto do Jundiá, em Rorainópolis, era parte de uma região conhecida como “Terraplanagem” — graças à técnica usada ali na construção da BR-174.
Manoel Paulino foi chefe de campo da Funai durante a abertura do trecho: suas memórias revelam o que a BR-174 esconde no local.
“Eu vi corpos dos índios trazidos em uma caçamba e serem jogados no buraco da terraplanagem [em Jundiá, Rorainópolis]. Vi cinco caçambas com índios. Eu vim embora porque adoeci e pedi para ir embora”, disse Paulino ao Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, em 2012.
O comitê teve acesso a relatórios da Funai que reforçam a hipótese. Só entre 1972 e 1975, na primeira fase das obras, pelo menos 10 aldeias Waimiri-Atroari teriam desaparecido entre Santo Antônio de Abonari e as margens do rio Alalaú.
Até o fechamento dessa reportagem, tanto o Exército quanto a Polícia Federal não responderam à BBC News Brasil sobre o envio de homens à região. O deputado Jeferson Alves também não respondeu à reportagem.
Em nota, a Funai afirmou que, “por meio da Frente de Proteção Etno Ambiental Waimiri Atroari, atua permanentemente no local prestando apoio ao indígenas da região, em constante contato com a Polícia Rodoviária Federal e com a Polícia Federal”.
Da ‘pacificação’ às incursões armadas
A relação dos Kinja — modo como os Waimiri-Atroari se denominam — com não indígenas nunca foi das melhores. Desde o século 19, eles batalharam com invasores interessados nas riquezas de suas terras.
A reserva tem mais de 2,5 mil hectares oficialmente demarcados, mais que o dobro do município de São Paulo, com castanhais, espécies de madeiras nobres e, acima de tudo, muitos minérios estratégicos como cassiterita, nióbio e pedras preciosas.
Por resistirem, os Kinja foram tachados de agressivos e hostis. A má fama serviu para legitimar abusos, como revela o indigenista José Apoena Soares de Meireles. Ele foi um dos que conduziu os trabalhos da Funai durante a construção da BR-174.
Apoena escreveu uma carta à presidência da autarquia em 1975, relatando dificuldades. Nela, diz: “índios bandoleiros, maus, perversos, assim são hoje vistos os Waimiri-Atroari. Mas a verdade é que nós os tornamos assim aos olhos da opinião pública para justificarmos uma série de erros”.
Era um momento de forte tensão entre os Kinja e os militares.
O episódio mais grave ocorreu em novembro de 1974, quando o sertanista Gilberto Figueiredo e outros três servidores federais morreram no posto avançado de Santo Antônio de Abonari.
A partir dali, os militares subiram o tom: acionado, o 1º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS) foi encarregado de abrir caminho a qualquer custo.
Hoje professor na Universidade de Brasília (UnB), o antropólogo Stephen Baines foi um dos que testemunharam os conflitos. Ele foi à região em 1975 seguindo a trilha do rio Alalaú, interessado no que acontecia durante a abertura da rodovia.
À BBC News Brasil, o professor lembra que havia uma política de “portas fechadas” em relação a civis, afastando-os dos pontos por onde o 1º BIS passava.
“Era muito difícil conseguir autorização para acompanhar [os Waimiri-Atroari]. Chefes da Funai e dos batalhões me criaram muitos problemas, tive até de sair do Brasil, e só voltei à região em 1982, quando os Waimiri-Atroari haviam quase desaparecido”, afirma Baines.
À época, o 6º Batalhão de Engenharia de Combate (BEC) e outros trabalhadores aguardavam enquanto o 1º BIS abria caminho.
Raimundo Pereira da Silva foi um dos que trabalhou na área, de 1971 a 1977. Ao Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, relatou: “Um dia, vi passando 43 carros do [1º] BIS, cheio de soldados, jipes, carros camuflados. Lembro que eram 43 porque contei. Passaram dois aviões do BIS”.
“Eu fiquei impressionado porque, antes do Exército entrar, a gente viu muito índio. Depois que [o BIS] entrou, nós não vimos mais índios”, disse Silva.
O Comando Militar da Amazônia, responsável pelos batalhões que atuaram ali durante a abertura da rodovia, também não se posicionou sobre os possíveis crimes cometidos nos anos 1970.
Bombardeios
O depoimento de Viana Womé Atroari, um dos sobreviventes da repressão, narra também bombardeios feitos pelo 1º BIS na região.
“Foi assim, tipo bomba, lá na aldeia. O índio que estava na aldeia não escapou ninguém. Ele veio no avião e de repente esquentou tudinho, aí morreu muita gente”, disse Viana no documentário AmazôniAdentro, exibido pela TV Brasil.
Os indigenistas Dorothy e Egydio Schwade, logo no início dos anos 1980, também ouviram relatos parecidos. O casal foi pioneiro na alfabetização dos Waimiri-Atroari, utilizando métodos inspirados em Paulo Freire, por meio dos quais conheceram detalhes dos bombardeios.
“Tão logo tiveram confiança em aula, as perguntas se sucediam: ‘Por que kamña (civilizado) matou Kiña (Kinja, os Waimiri-Atroari)?’, ‘O que é que kamña jogou do avião e matou Kiña?'”, disse Egydio ao Comitê Estadual da Verdade do Amazonas.
À BBC News Brasil, o indigenista conta que os militares e a Funai dificultavam o acesso ao território. “Assim que soubemos dos massacres, documentamos tudo que pudemos, mas nossa presença deixou de ser bem vinda”, afirma Egydio.
Ao divulgarem suas descobertas, os dois foram expulsos da reserva pela Funai, em dezembro de 1986.
Os relatos ao longo dos anos levantaram suspeitas, nunca comprovadas, da utilização da arma química napalm (um conjunto de líquidos inflamáveis, conhecido após seu uso durante a Guerra do Vietnã) contra os indígenas.
Décadas depois, a jornalista Memélia Moreira revelou mais detalhes. Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, narrou sua viagem pelos igarapés amazônicos até o posto de Santo Antônio do Abonari, nos anos 1970.
“Eu vi que tinha uma coisa não natural, boiando… não era bem um tubo, mas parecia que era de napalm. E eu vi a marca, eu conhecia a marca de um dos fabricantes de napalm, era Tordon”, afirmou a jornalista.
“Peguei e botei na minha mochila e vim-me embora, não troquei uma palavra sobre, porque em 1974 a gente já sabia que eles [militares] tinham usado napalm no Vale do Ribeira, na Guerrilha do Araguaia, e nos Nambikwaras”, disse Memélia à Comissão da Verdade paulista.
Pela gravidade das denúncias, o Ministério Público Federal intercedeu. O MPF no Amazonas entrou com uma ação civil pública contra o Estado brasileiro pelos crimes contra os Waimiri-Atroari. Em 1ª instância, a Justiça Federal reconheceu, em decisão liminar, os crimes contra os indígenas.
A decisão ainda determinou que a União enviasse cópias de arquivos do 6º Batalhão de Engenharia de Construção e do 1º BIS “que digam respeito aos fatos discutidos no processo, relativos ao período de 1967 a 1977”.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região derrubou esta primeira decisão e mandou o caso de volta à 1ª instância. O processo está em andamento na 3ª Vara Federal do Amazonas, com a convocação de testemunhas, coleta de provas e oitivas com os indígenas, sem nova sentença pela Justiça.
Procurada pela BBC News Brasil, a Funai disse que a Advocacia-Geral da União (AGU) é quem responde ao caso. A AGU, por sua vez, disse que a União e a Funai ainda não foram intimadas no processo.
A espera por um desfecho se soma ao recente caso de agressão contra a etnia, pelo deputado Jeferson Alves. A Justiça Federal determinou o envio de reforço do Exército e da Polícia Federal às terras Waimiri-Atroari, para proteção dos indígenas.