Xokleng: o povo indígena quase dizimado em Santa Catarina que protagoniza caso histórico no STF

João Fellet

Bugreiros, mulheres e crianças indígenas Xokleng
Em pé, bugreiros posam com mulheres e crianças do povo Xokleng capturadas após ataque a acampamento.

As tropas se deslocavam pelas trilhas à noite, em silêncio. Os homens, entre 8 e 15, evitavam até fumar para não chamar a atenção.

Ao localizar um acampamento, atacavam de surpresa.

“Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão”, relatou Ireno Pinheiro sobre as expedições que realizava no interior de Santa Catarina até os anos 1930 para exterminar indígenas a mando de autoridades locais.

Pinheiro era um “bugreiro”, como eram conhecidos no Sul do Brasil milicianos contratados para dizimar indígenas (ou “bugres”, termo racista que vigorava na região naquela época).

O relato está no livro Os Índios Xokleng – Memória Visual, publicado em 1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos.

“O corpo é que nem bananeira, corta macio”, prossegue o bugreiro na descrição dos ataques. “Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança”, completou.

Poucas etnias foram tão combatidas pelos bugreiros quanto os Xokleng, de Santa Catarina. Nesta quarta-feira (30/06), o povo terá seu destino definido num dos julgamentos mais importantes da história recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil.

O caso mobiliza as atenções de grupos ruralistas e terá repercussão para dezenas de povos indígenas brasileiros.

Criança Xokleng em acampamento na floresta, em 1963
Criança Xokleng em acampamento na floresta, em 1963

Questão do ‘marco temporal’

A corte vai avaliar se a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ — habitada pelos Xokleng e por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani — deve incorporar ou não áreas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina e pelos ocupantes de propriedades rurais.

Em jogo está a tese do chamado “marco temporal”, princípio defendido por entidades ruralistas e segundo o qual só podem reivindicar terras indígenas as comunidades que as ocupavam na data da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988.

O governo passou a encampar formalmente essa tese em 2017, quando Michel Temer era presidente, o que na prática paralisou as demarcações no país.

O princípio, no entanto, faz parte do léxico ruralista desde pelo menos 2009, quando o então ministro do STF Ayres Britto propôs sua adoção ao julgar um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Os indígenas, por outro lado, são contrários à aplicação do marco temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988.

É esse o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a sair do território que hoje tentam retomar.

Jovens Xokleng durante apresentação sobre o primeiro contato entre indígenas e brancos.
Jovens Xokleng durante apresentação na Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ

“Não tínhamos fronteiras, andávamos por todo aquele espaço. Mas éramos tutelados, não tínhamos como responder por nós. Mal sabíamos falar português, imagine nos defender”, diz à BBC News Brasil Ana Patté, jovem liderança Xokleng integrante da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e assessora parlamentar da deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP).

Patté afirma que o território em disputa era usado pelos Xokleng para a caça, pesca e coleta de frutos, especialmente o pinhão. A Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ foi demarcada em 1996 e, em 2003, mais que triplicou de tamanho, passando de 15 mil para 37 mil hectares.

A área hoje em disputa integra a parte incorporada em 2003 e está parcialmente ocupada por plantações de fumo — atividade que, segundo Patté, fez o solo e os rios da região se contaminarem com agrotóxicos.

Ela diz que, se o STF julgar que o pleito da comunidade procede, a área em disputa será reflorestada, o que trará benefícios não só para os Xokleng mas para todos que dependem dos rios que cruzam aquelas terras.

Já o governo de Santa Catarina afirma que essa área era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19.

Mapa da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ após a ampliação de 2003
Mapa da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ após a ampliação de 2003

Políticos ruralistas catarinenses apoiam a posição do governo estadual. Em 2008, os então deputados federais Valdir Colatto e João Matos, ambos do MDB, elaboraram um decreto legislativo anulando a ampliação da terra indígena.

Eles afirmaram que, na área englobada pela ampliação, havia 457 pequenas propriedades agrícolas, com média de 15 hectares cada.

“Nunca houve, e nem há, critérios seguros para se demarcar áreas indígenas, ficando a sociedade à mercê do entendimento pessoal do antropólogo que se encontra fazendo o trabalho num determinado momento”, argumentaram os deputados ao justificar o decreto.

O Estado de Santa Catarina também disputa com os Xokleng 3.800 hectares onde há sobreposição entre a terra indígena e reservas biológicas estaduais.

Em 2019, o STF decidiu que o julgamento sobre a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ tem repercussão geral — ou seja, a decisão aplicada ali valerá para outros casos semelhantes.

Se a corte se opuser à tese do marco temporal, o governo federal em tese será obrigado a retomar os processos de demarcação que foram travados com base nesse princípio.

‘Potencial de conflagração’

Essa possibilidade tira o sono de associações ruralistas. Em maio de 2020, um advogado da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) disse no STF que a rejeição do princípio do marco temporal traria “um enorme potencial de conflagração do país e retorno a uma situação muito grave que se vivia no Brasil antes de 2009 (ano da decisão do STF sobre o caso Raposa Serra do Sol)”.

Já uma decisão favorável ao estabelecimento de um marco temporal tende a dificultar novas demarcações.

Indígenas em carro à frente de posto do SPI
Posto do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) dedicado aos Xokleng no fim dos anos 1920

Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há 245 processos de demarcação de terras ainda não concluídos. Em muitos desses casos, os indígenas reclamam territórios de onde dizem ter sido expulsos antes de 1988.

Há ainda muitas demandas por demarcação que nem sequer foram analisadas pelo governo — o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Igreja Católica que atua em prol dos povos indígenas, conta 537 casos desse tipo.

Em 11 de junho, o relator do processo sobre os Xokleng no STF, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do “marco temporal”.

O julgamento foi suspenso após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. É possível que novos pedidos de vista posterguem uma decisão.

A retomada do caso se torna ainda mais relevante porque avança na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 490, que, entre outros pontos, estabelece 1988 como marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Se a corte derrubar a tese no julgamento sobre os Xokleng, é provável que os congressistas tenham de mudar o texto do PL sob o risco de terem a proposta invalidada pela corte.

Em 2018, num outro julgamento sobre a demarcação de territórios quilombolas, o STF rejeitou o princípio do “marco temporal”.

Indígenas protestam e são observados por policiais
Indígenas protestam em Brasília contra o governo Jair Bolsonaro e propostas legislativas que consideram nocivas, como o PL 490

Colonização europeia

Após perder dois terços de seus membros no século passado, a população Xokleng voltou a crescer. Hoje, a etnia soma cerca de 2,3 mil integrantes.

O julgamento no STF em questão não é a primeira ocasião em que um fato relacionado a esse povo redefine as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas.

Em 1908, o etnógrafo tcheco Albert Vojtech Fric discursou em um congresso em Viena, na Áustria, sobre o impacto da imigração europeia nas populações indígenas do Sul do Brasil.

Segundo Fric, a “colonização se processava sobre os cadáveres de centenas de índios, mortos sem compaixão pelos bugreiros, atendendo os interesses de companhias de colonização, de comerciantes de terras e do governo”.

Anos antes, Fric havia sido convidado por um grupo de políticos, humanistas e intelectuais de Santa Catarina para servir à Liga Patriótica para a Catequese dos Silvícolas.

Enquanto poderosos locais defendiam exterminar os indígenas, esse grupo propunha uma abordagem mais “light”: cristianizá-los e incorporá-los à força de trabalho nacional.

Fric havia sido encarregado de liderar a “pacificação” dos Xokleng – termo usado na época para designar a aproximação com indígenas que mantinham relação conflituosa com a sociedade envolvente.

Indígenas sentados em pedaço de madeira
Comunidade Xokleng após o contato com os brancos (data desconhecida)

A presença dos Xokleng era vista como um entrave à colonização da região. Eram comuns relatos de furtos ou ataques de indígenas a trabalhadores que avançavam sobre seu território tradicional.

Mas Fric acabou deixando o Brasil antes de cumprir a missão.

Em Os Índios Xokleng – Memória Visual, o antropólogo Silvio Coelho dos Santos (1938-2008) diz que Fric foi retirado do posto provavelmente por causa de pressões de companhias de colonização alemãs que atuavam em Santa Catarina e não concordavam com sua abordagem.

O antropólogo afirma, porém, que o discurso de Fric em Viena teve grande repercussão na imprensa europeia e estimulou o governo brasileiro a agir para mostrar que se preocupava com os povos nativos.

Em 1910, durante a presidência de Nilo Peçanha, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), precursor da atual Funai.

Inspirado por ideais positivistas, o órgão dizia ter como objetivo “civilizar” os indígenas e incorporá-los à sociedade brasileira — postura enterrada pela Constituição de 1988, que reconheceu aos indígenas o direito de manter seus costumes e modos de vida.

Mesmo após a criação do SPI, as expedições de bugreiros contra povos como os Xokleng continuaram a acontecer por décadas.

Em seu livro, Silvio Coelho dos Santos entrevista um bugreiro que diz ter participado de uma expedição para matar indígenas no governo Getúlio Vargas (1930-1945), ao menos 20 anos após a criação do órgão.

As missões para aniquilar povos nativos aconteciam enquanto, na Europa, Adolf Hitler punha em marcha seu plano de exterminar os judeus.

Ou enquanto artistas brasileiros passavam a valorizar a participação indígena na formação nacional, influenciados pela Semana de Arte Moderna de 1922.

Mulheres e crianças Xokleng
Mulheres e crianças Xokleng capturadas por bugreiros e entregues a freiras em Blumenau; duas mulheres e duas crianças conseguiram fugir, voltando à floresta.

Crianças assassinadas

A proximidade temporal dos ataques aos Xokleng ainda provoca dor na comunidade.

Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, Brasílio Pripra, de 63 anos e uma das principais lideranças Xokleng, chora ao falar de um massacre ocorrido em 1904 contra seus antepassados.

“As crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele dia, 244 indígenas foram covardemente mortos pelo Estado”, afirma.

O episódio foi descrito no jornal já extinto “Novidades”, de Blumenau, citado em artigo do jurista Flamariom Santos Schieffelbein na revista eletrônica argentina Persona, em 2009.

“Os inimigos não pouparam vida nenhuma; depois de terem iniciado a sua obra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das crianças que estavam agarradas ao corpo prostrado das mães. Foi tudo massacrado”, relata o jornal.

Pripra diz ter crescido ouvindo histórias como essa.

“Eu choro, me emociono. Sou neto de pessoas que ajudaram a trazer a comunidade ‘para fora’, a fazer o contato (com não indígenas). É por isso que luto.”

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