Zema repete discurso de separatistas paulistas de 1932, diz historiadora americana
Uma vaca gorda que definha enquanto é puxada e sugada por 19 crianças. A imagem, uma alegoria elaborada em 1932 por separatistas paulistas que fizeram parte da Revolução Constitucionalista, representa São Paulo como a vaca e as 19 crianças como os demais Estados da recém-instituída República Federativa do Brasil.
A charge traz uma imagem muito semelhante ao que foi dito pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), ao defender, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que o Sul e o Sudeste se unissem para contrapor o poder político do Nordeste.
“Então Sul e Sudeste vão continuar com a arrecadação muito maior do que recebem de volta? Isso não pode ser intensificado, ano a ano, década a década. Se não, você vai cair naquela história, do produtor rural que começa só a dar um tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. Daqui a pouco as que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento”, afirmou Zema, no contexto da discussão da reforma tributária e da distribuição dos fundos federais.
Para a historiadora americana Barbara Weinstein, professora da New York University e especialista em História do Brasil, os claros paralelos entre a ilustração de 1932 e as opiniões de Zema, em 2023, não são mera coincidência.
Weinstein argumenta que a Revolução Constitucionalista marca a consolidação de uma identidade paulista — e que se estende a porções do Sudeste e do Sul do Brasil — baseada na branquitude, na masculinidade e no desenvolvimentismo. E marca oposição aos demais Estados brasileiros — vistos nessa interpretação como vagões vazios a serem puxados pela “locomotiva paulista”.
Em sua obra A Cor da Modernidade (Edusp), Weinstein mostra como o auge da economia cafeeira — e o início da industrialização de São Paulo — coincide com a política de branqueamento da população, com o estímulo a migração europeia, e gera condições para que São Paulo pleiteie para si mais recursos de impostos.
As condições políticas também eram favoráveis ao pleito, já que o Império, um governo centralizador, havia sido substituído por uma República que abria oportunidades de rediscussão do destino dos tributos recolhidos no país. Hoje, discussão semelhante está em pauta: a reforma tributária, já aprovada na Câmara, deve implicar em mudanças não só no recolhimento dos tributos mas também no modo como esses recursos são distribuídos.
“Este raciocínio de Romeu Zema é óbvio, uma coisa muito conhecida, insistindo que o cidadão do Nordeste não deve ter tantos direitos quanto o cidadão do Sul, já que o cidadão do Sul supostamente sustenta o Nordeste. Mas o governo nacional existe justamente para poder lidar com esse tipo de desigualdade, negar isso é de certa forma perder qualquer noção da importância da nação”, afirma Weinstein.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Weinstein, concedida à BBC News Brasil via videochamada, e editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil – Há alguns dias, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, disse que os Estados do Sul e Sudeste deveriam se unir para reclamar politicamente mais peso que o Nordeste e comparou o Brasil a um fazendeiro que dá mais cuidados às vacas que produzem menos leite (em referência ao Nordeste) do que às que mais produzem (Sul e Sudeste). À luz dos seus estudos sobre formação da identidade paulista, como interpreta a fala do governador?
Barbara Weinstein – O momento que ele lançou esta ideia do Nordeste ser um empecilho, um impedimento ao progresso do Brasil, é justamente o início da nova gestão Lula. Não é uma grande surpresa que este tipo de fala de repente surja, e certamente Zema não é o único a pensar que o Nordeste é a parte que menos contribui para a grandeza do país. E num momento em que a política social do governo federal tem como prioridade lidar com o problema do desenvolvimento desigual no Brasil e a maior pobreza no Nordeste do que no Sul do país, depois de 4 anos do governo (Jair) Bolsonaro, que não tinha qualquer preocupação com isso, políticos do Sul e Sudeste aproveitam a situação para fazer estas manifestações de que não faz sentido injetar dinheiro no Nordeste porque é o Sudeste a locomotiva do país.
E politicamente esse discurso funciona e tem um longo histórico, data do finzinho do século 19, da Primeira República. Depois de 1889, nota-se uma insistência tanto de Minas quanto de São Paulo em se retratar como locomotiva do país. Esta palavra ‘locomotiva’ não surge imediatamente, mas, com o tempo, se torna uma expressão comum até no Nordeste, onde pessoas dizem que São Paulo é a locomotiva do país.
Mas Minas tem uma parte que todo mundo reconhece como Nordeste (a região do Vale do Jequitinhonha), com todas as características e os problemas que o Nordeste tem. Minas não é São Paulo, embora tenha a parte sul do Estado bastante identificada com os paulistas, então é um pouco irônico que essa afirmação tenha partido de Zema, que nem reconhece essa característica sobre seu próprio Estado.
BBC News Brasil – Em seu livro ‘A cor da modernidade’, a senhora estuda a construção de uma identidade paulista que é branca, masculina e desenvolvimentista, em contraposição a outras regiões do País. Essa identidade pode ser extrapolada também ao restante do Sudeste e do Sul do país?
Barbara Weinstein – Tranquilamente podemos estender essa identidade ao resto do Sul do país. Mesmo durante a Revolução Constitucionalista de 1932, o Estado do Paraná foi um aliado de São Paulo e muitos paranaenses vieram ao Estado combater o governo getulista ao lado dos paulistas.
Há inclusive um episódio em que os paulistas se encontram com um batalhão de gaúchos e a conversa deles é na linha de que ‘somos irmãos e devemos estar unidos contra o governo de Getúlio, que é um governo do Nordeste’. E São Paulo, na verdade, esperava que o Rio Grande do Sul e Minas Gerais se juntassem (à Revolução Constitucionalista) contra o Governo Vargas, o que acabou não acontecendo. Mas a ideia é que haveria uma aliança natural entre eles.
BBC News Brasil – Essa ideia continua animando as elites políticas e econômicas dessas regiões?
Weinstein – Acho muito difícil essa ideia não continuar porque por muitos anos os contrastes entre o Sul/Sudeste e o Nordeste do país eram tão gritantes que o governo federal toma a decisão de canalizar impostos para melhorar a situação do Nordeste. Mas para parte dos políticos sulistas e sudestinos é muito mais fácil levar em conta apenas os interesses de seus Estados e assumir a posição de que ‘o Nordeste não tem jeito’ ou de que ‘é uma perda de dinheiro’ gastar para tentar melhorar a situação ali. Esse contraste hoje, no entanto, já não é mais tão gritante quanto era ao longo do século 20.
De certa forma, houve momentos na história quando essa questão se torna um tema quente na política brasileira, mas, em geral, não é esse discurso que está alimentando a desigualdade no Brasil. É uma justificativa para a desigualdade. Na maioria do tempo, o aprofundamento da desigualdade acontece mesmo que sem qualquer justificativa política. Esse assunto só aparece quando Sul/Sudeste sentem que precisam insistir que merecem mais recursos do que os demais, é um discurso que tenta naturalizar uma situação econômica desigual.
BBC News Brasil – Como essa identidade paulista/sulista se define e como ela é construída?
Weinstein – Primeiro, temos que levar em conta que São Paulo surgiu como o Estado líder do Brasil justamente no momento em que, no mundo ocidental, havia uma ideologia do chamado racismo científico. E São Paulo se torna o mais rico do Brasil nesse contexto, não porque fosse uma economia super moderna e industrializada, mas por causa da exportação de café, que é uma economia muito parecida com a do açúcar no Nordeste no período colonial.
Mas é um período de muitas possibilidades, especialmente quando o Brasil deixa de ser um Império, um governo mais centralizado, e passa a ser uma República Federativa. Então, São Paulo percebe que poderia guardar seus impostos para as suas próprias necessidades.
São Paulo queria e usava os recursos para subvencionar os migrantes da Europa que tomavam o lugar dos ex-escravos e houve todo um raciocínio de que esse deveria ser o projeto: desenvolver o Estado por meio da economia do café e ir expandindo pra outras atividades econômicas, intensificando a industrialização.
Então era um momento perfeito para criar uma identidade de São Paulo como uma locomotiva e o resto do Brasil no segundo plano. Este momento histórico foi muito importante para entender como São Paulo se tornou o Estado mais poderoso, as várias condições: o auge da economia do café, a transição para uma república federativa, e o Estado visto como aquele que mais merece a renda nacional.
BBC News Brasil – A declaração de Zema ocorre no momento em que se discute a reforma tributária e a distribuição de recursos da União para os Estados.
Weinstein – Justamente. E, historicamente, quais eram as justificativas para que a renda de São Paulo não fosse dividida? Uma justificativa era que São Paulo não era só o Estado produtor do café e indutor da industrialização, mas que São Paulo tinha uma população mais apta a obter o crescimento econômico, porque São Paulo era mais branco que outros Estados.
Em termos estatísticos, isso era bastante discutível, porque havia uma população grande de ex-escravos e descendentes de africanos na região. Mas com a migração europeia havia todo esse discurso de que São Paulo estava chegando a um perfil populacional de um Estado moderno e progressista que podia se juntar às demais regiões do mundo ocidental.
Então a branquitude virou uma explicação para entender porque São Paulo se tornou um Estado líder do Brasil. E este momento do Governo Lula é um momento perfeito para renovar o discurso do Nordeste como caso perdido e o Sudeste e o Sul como as regiões que contam no Brasil.
BBC News Brasil – A manutenção das desigualdades regionais é fundamental para que essa mentalidade e essa identidade permaneçam vivas?
Weinstein – Para uma certa tendência política dos Estados do Sul e Sudeste, há uma necessidade de reproduzir esse discurso para manter uma posição decisiva no uso da renda federal e das despesas do governo.
E há algo a ver com a própria identidade das pessoas, especialmente da classe média do Sul e do Sudeste que quer pensar ‘eu estou na classe média porque eu trabalho, eu estudo, etc, eu sou uma pessoa moderna, esforçada’ e isso, obviamente, não é uma característica só do Brasil. Em qualquer lugar, as pessoas que sobem um pouco na vida criam um discurso de que elas merecem esses privilégios, esses padrões de vida porque trabalham e estudam enquanto os pobres não querem trabalhar nem estudar.
Em geral, os estados que contribuem mais para o governo federal acham que têm mais direitos do que os Estados pobres, que ‘nós que sustentamos o Nordeste devemos ter mais peso no governo que eles, que dependem de nós’. Então este raciocínio de Romeu Zema é óbvio, uma coisa muito conhecida, insistindo que o cidadão do Nordeste não deve ter tantos direitos quanto o cidadão do Sul/Sudeste, já que o cidadão do Sul/Sudeste supostamente sustenta o Nordeste. Mas o governo nacional existe justamente para poder lidar com esse tipo de desigualdades, negar isso é de certa forma perder qualquer noção da importância da nação.
Um dado curioso é que nos Estados Unidos, os Estados mais ricos são também os mais democratas, que costumam votar por mais distribuição de renda, o que é contraintuitivo e o oposto do que têm ocorrido no Brasil.
BBC News Brasil – A partir da eleição presidencial de 2006, começamos a ver uma divisão política mais clara entre Nordeste e Sul/Sudeste, com o Nordeste votando mais à esquerda e o Sul e Sudeste mais à direita. Você acha que essa diferença tem incentivado releituras dessa perspectiva histórica de suposta superioridade sudestina/sulista?
Weinstein – Isso é muito interessante. Apresentei um trabalho justamente sobre o ressentimento regional eleitoral. E você olha para o mapa eleitoral do Brasil, nas duas eleições de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a maioria dos Estados, com raras exceções, deu a vitória a ele. Mesma coisa com o Lula em 2002, o único Estado que não deu a ele a maioria naquele ano foi Alagoas, um Estado nordestino.
Já em 2006, começa o padrão que vai se manter até hoje, uma divisão entre os Estados do Nordeste e o Sul e o Oeste. Então agora Lula ganha as eleições, mas não consegue a maioria em vários Estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Isso já estava claro nas eleições de Dilma (Rousseff) também, que a força do PT estava localizada no Nordeste, e o PSDB ganhava no Sul e Sudeste.
Não é que isto seja uma divisão natural, já que não existia nas primeiras eleições do período democrático recente. Mas acontece quando Lula deixa claro que uma grande preocupação do seu governo vai ser aumentar o apoio aos pobres do Nordeste.
E aí se vê que o maior apoio dos nordestinos a Lula produzia o efeito contrário no Sul/ Sudeste e se espalham aquelas mensagens nas redes sociais: ‘faça um favor a um paulista e mate um nordestino’, uma coisa muito violenta, brutal. Isso foi obviamente uma reação extrema, mas eu acho que houve um consenso entre certas camadas da sociedade brasileira de que Lula privilegiará as necessidades do Nordeste em detrimento do Sul e do Sudeste.
BBC News Brasil – A senhora mencionou as reações em redes sociais e mais uma vez vimos surgir manifestações separatistas no estilo ‘O Sul é o meu país’ ou ‘Muro já’ depois das declarações de Zema. Como interpreta isso?
Weinstein – Houve uma facção do movimento de 1932 que era separatista mesmo, mas era uma minoria entre as lideranças de 32 em São Paulo. Porém, essa pequena minoria tinha muita influência no discurso. Muitas das imagens que os separatistas criaram acabaram adotadas pelos líderes.
O cartão postal dos separatistas de São Paulo era essa imagem da vaca que estava emagrecendo porque os bebezinhos, que eram os outros Estados, estavam mamando na vaca paulista.
BBC News Brasil – É uma imagem bem próxima à usada pelo governador Zema.
Weinstein – Não há nada de novidade no discurso dele. A essa altura do século 21, a gente gostaria de imaginar que seria impossível publicamente um governador de um Estado do Brasil dizer algo assim. Isso é que é triste, não que seja novo, mas que ele pudesse articular essa imagem ainda hoje.
Ao fazer isso, como governador de Minas, ele está insistindo na identidade sulista de Minas, como uma extensão de São Paulo — ignorando a parte nordestina do seu Estado. E também creio que ele esteja pensando em uma futura candidatura presidencial, em garantir o apoio do Sul e do Sudeste a seu nome.
BBC News Brasil – De que maneira as mulheres se encaixam neste discurso político?
Weinstein – Eu não quero exagerar, mas a ideia de uma mulher que é uma boa cidadã, boa mãe de família, vem muito das imagens da classe média brasileira. Por exemplo, pegue o Bolsa Família — muito previsível que o pessoal no Sul vá dizer que as mulheres nordestinas vão ficar grávidas só para receber mais benefícios, em contraste com a imagem da mulher de classe média, disciplinada, boa mãe de família do Sul/Sudeste do país.
De certa forma, isso vira um discurso que tem a ver com ideologia de gênero. Quem é a mulher que merece respeito e quem é a mulher que não merece respeito? Não quero exagerar a conexão entre o discurso anti-nordestino e o discurso sobre a mulher, mas existe dentro desse discurso uma noção do Nordeste como uma sociedade problemática e dentro deste problema existe a mulher nordestina, que é aquela que não sabe se controlar, não sabe limitar o tamanho da família, não sabe educar os filhos, fazer a família progredir.
BBC News Brasil – Na entrevista que deu ao Estado de S. Paulo, o governador Zema também disse que os Estados do Sul e do Sudeste nunca tiveram peso político equivalente a sua importância econômica. É um erro histórico factual. Mas há um senso de injustiça neste discurso?
Weinstein – Primeiro, é um absurdo. Especialmente durante a Primeira República, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul foram os três estados que realmente controlavam o governo. Ponto. E durante o governo Vargas, de 1930 a 1945, apesar de Vargas ter vários projetos para incorporar o Nordeste na economia do país, a preocupação com a industrialização e o fato de São Paulo estar bem posicionado para ser o centro industrial do país, a política do Vargas acabou beneficiando mais São Paulo que os outros Estados da União.
Então esta ideia do Sul/Sudeste não ter um peso político igual ao seu papel na economia, pode ser verdade, mas a democracia não funciona com base na produção econômica. A democracia se baseia na ideia de uma pessoa, um voto, não importa a renda. Então esse é um discurso profundamente anti-democrático, dizer que o Estado deve ter mais poder simplesmente por ser mais rico que o outro.