Os efeitos emocionais da crise política

Dilma virou o “Judas”, diz psicólogo Aurélio Melo, professor da Mackenzie, durante entrevista na qual enumera os impactos da corrupção na vida emocional dos brasileiros. Aurélio Melo possui graduação em Psicologia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (1990), mestrado (1999) e doutorado (2013) em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

Aline Moura

Para psicólogo, as pessoas têm de reagir à tentação de ceder e repetir o erro do outro, faltando com a ética e o respeito. Uma das saídas para os sintomas emocionais é se conhecer melhor e exercer a cidadania

A crise política não causa apenas uma baixa na popularidade da presidente Dilma Rousseff (PT) e nervosismo no mercado. Tem efeitos no inconsciente coletivo dos brasileiros, provocando um tipo de doença emocional generalizada. As notícias frequentes sobre a corrupção têm impactos variados sobre o emocional das pessoas. Estimulam que ajam de forma antiética e faltem ao respeito com o próximo. Ainda deixam o indivíduo com baixa autoestima e mais agressivo. Essa é a análise feita pelo psicólogo Aurélio Melo,  professor da Mackenzie (SP).  Ele ainda sugere algumas alternativas para que o indivíduo não se desespere e não se espelhe no exemplo negativo do outro. Veja os principais trechos da entrevista que ele concedeu ao Diario, por telefone.

Temos visto agressões do mundo virtual se transformarem em realidade? Como a crise política está atingindo o inconsciente coletivo?
Um cidadão pensa no país como a casa dele. Uma casa maior, uma família. Se ele se decepciona com quem governa, com quem decide, é como se decepcionasse com ele mesmo. Então, no mínimo, a gente perde um pouco da autoestima, da moral, começa a falar mal das nossas coisas, perde o orgulho… Eu diria que o maior prejuízo é perder o respeito e, aí, a pessoa começa a comprometer a ética e a conduta. A rigor, não deveria ser assim. A ação do outro não justifica a minha ação. Mas, psicologicamente, é assim que funciona. Se o pedágio é abusivo, por exemplo, se o dinheiro é desviado, até que ponto você não fica tentado a desviar o pedágio, entrar pelo acostamento? Isso é o maior prejuízo da questão política: a gente começa a banalizar a corrupção.

Na vida pessoal, as pessoas se sentem levadas a serem menos ética?
Sim. As pessoas estão permeadas pelo social, principalmente nas condutas. A rigor, uma má ação não deveria justificar outra, mas, psicologicamente, isso enfraquece as pessoas. Você passa a perder o respeito e você fica mais tentado a agir de maneira errônea. Se o imposto que você paga não tem um determinado fim, então você pensa: “Por que eu não devo tirar vantagem?” É claro que têm pessoas quase impermeáveis. Elas não abrem mão da ética, pelo contrário, elas podem até se fortalecer e dizer: “Isso é mais um motivo para agir corretamente, porque eu sou um dos poucos”.  Mas eu diria que a grande maioria tende a ceder e dizer: “Eu estou jogando o jogo errado, é cada um por si, é um vale tudo”.

psiquiatra
Professor analisa que a banalização da corrupção causa perda da autoestima e do orgulho, levando os indivíduos a se considerarem “bobos” e acreditar que estão num “vale tudo”
Você tende a se achar um trouxa?
Exatamente. Você se sente lesado, você é o bobo, isso é muito ruim. Estamos passando por um momento onde as instituições estão muito enfraquecidas e a baixa autoestima é uma coisa complicada. Você valoriza o que vem de fora, passa a fazer uma generalização, a esquecer as coisas boas… Deixa de brigar pelas coisas que são suas.

A gente pode comparar esse momento a um casamento muito desgastado, no qual o respeito começa a faltar?
Pode ser uma metáfora. Na relação conjugal, isso é muito comum. Quando um falta o respeito, o outro tende a revidar de forma pior. A gente vive como se fosse um contrato social. Se uma das partes quebrar o contrato, a outra não se sente obrigada a seguir. Assisti a uma palestra em Portugal na área de organização de empresas, onde se sistematizou que existe um contrato psicológico. Se você trabalha numa empresa e a empresa começa a destratar você, a sua relação com ela muda. Aquele contrato psicológico, aquela relação que havia desde o início começa a se modificar. O indivíduo passa a ver as coisas diferentes. Isso não está escrito, é uma moral de cada um.
Está acontecendo isso no campo político. Estamos perdendo o respeito e tolerando cada vez menos, sem falar que existe o fenômeno da generalização, de falar que nenhum político presta, que toda empresa pública é corrupta, todo funcionário público é ocioso, vagabundo.

Temos visto muito nas redes sociais o seguinte: “Ah, você votou em Dilma, então você também é corrupto”
Ah, que é isso? Aí, eu daria uma explicação puramente psicológica. Por uma questão econômica, a gente generaliza, por preguiça de pensar. Generalizar é mais fácil. Economicamente é mais viável não ter o trabalho de pensar como a realidade é complexa e a gente não consegue lidar. A realidade é complexa e a gente não sabe lidar com isso. Me mandaram um Whatsapp no qual um bandido que foi preso, recentemente, diz que a culpa é da Dilma!!! E ele falou sério isso. Quer dizer: A Dilma está sendo criticada de maneira muito pessoal e isso mostra o esvaziamento da política. Há uma personificação, mas ela uma personagem do jogo, de uma grande engrenagem. E acaba virando o Judas. É muito pobre, é muito pessoal. O pensamento é preguiçoso, é econômico.
A memória tem uma função perniciosa. Sempre que a gente pode, a gente lembra (do que aconteceu) para não pensar. Ao invés de você pensar que tudo é novo, que você tem que pensar de novo, você lembra: “Ah, esse cara é parecido com o que eu conheci. Ele não presta”. Pensar dá trabalho, você fica cansado, você não assimila a realidade.

Como podemos comparar o momento do Brasil com outro que aconteceu no mundo?
A gente pode pensar até num elemento mais radical que foi o Hitler e muita gente fala: “Aquele monstro”. Mas, na Alemanha, muita gente apoiou Hitler. Ele era extremamente popular. É importante que as pessoas entendam que uma pessoa só não tem o poder de fazer uma coisa, ela está respaldada. Hitler era alguém amado pela Alemanha, foi apoiado pela burguesia francesa, que achava que ia se dar bem, ganhar dinheiro com ele. O Vaticano fechou os olhos para Hitler e metade do mundo estava apoiando ele. Até que ele realmente começou a incomodar e a turma deu um jeito nele. É como o Estado islâmico. Tudo bem, ninguém ama o Estado Islâmico, mas não faz nada. Porque (o Estado Islâmico) não começou a bater na sua porta.

Como é que se muda isso na política?
Eu penso que a mídia deveria fazer mais contrapontos, como este. Mostrar que não é tão simples assim. Mostrar aspectos que fogem do senso comum. Uma coisa que a esquerda fez, que se tornou senso comum, por exemplo, foi romancear os pobres. A s classes mais pobres são vistas como vítimas, oprimidas, mas, na minha opinião, a classe mais pobre se tornou extremamente conservadora e reacionária para manter alguns valores. É uma contradição.
Isso é uma coisa muito antiga, quem está em baixo, admira quem está em cima. É preciso mexer nas leis para que haja um equilíbrio maior de forças, mudar a engrenagem, porque as pessoas estão a serviço da engrenagem. O PT cresceu, conseguiu vencer, mas começou a fazer política igual a todos outros porque a engrenagem é a mesma.

O brasileiro era considerado muito gente boa, bem-humorado. Era só uma máscara?
São muitos mitos. É verdade que somos muito sorridentes, muito simpáticos…Agora, a simpatia já é diferente do bom humor, que vem diminuindo. As pessoas vivem vidas muito difíceis e mecânicas. A gente está cada vez mais parecido com as máquinas. As coisas não podem dar errado que você já fica irritadíssimo. Se você perder uma hora do seu dia, perde o seu dia. Antigamente, se uma coisa não dava certo, você tentava de novo. Hoje, cada minuto conta, cada hora conta. Hoje, se um caminhão na sua frente quebrou, você chega no trabalho e diz: “Um caminhão estragou meu dia”.

As pessoas estão menos resilientes?
Muito menos. Elas não têm tolerância nenhuma. O brasileiro sempre foi conhecido por essa tolerância, talvez tenha mais do que outros povos. Mas a vida está muito difícil e a gente está funcionando mais como uma engrenagem. E ai explode:  toda hora você vê pessoas tendo um dia de fúria. Acho que somos simpáticos, mas estamos bem menos humorados. O Brasil não é pacífico, é violentíssimo. Ao mesmo tempo que a gente gosta de samba e carnaval, temos um país violento, uma desconfiança absurda… As pessoas te olham de maneira estranha e o outro é sempre um suspeito.

No Uruguai, aqui, perto de nós, você não sente isso…
Aqui, não temos aquela palavra nósoutros. O outro virou um estranho.

Mas isso também é fruto dessa crise política?
Eu diria que isso é fruto da modernidade, que começa no século XVI, mas piora com a crise. Estamos numa pós-modernidade, a todo vapor, e as pessoas estão num super individualismo, tornando-se estranhas umas com as outras, o que importa é a individualidade. O mundo está sendo fabricado para você viver sozinho, mas é uma ilusão. Você tem a impressão que precisa menos dos outros, porque fica dentro do quarto e faz tudo de dentro do seu quarto. E você tem a ilusão de que não precisa de ninguém.
A coisa está num nível em que as pessoas dizem assim: “Eu gosto tanto de mim que eu não gosto de mais nada”. Bateu no meu carro, é como se tivesse batido na minha perna, isso é um excesso de individualidade. Essa coisa (individualismo), que tem direito nos Estados Unidos, tem aqui no Brasil também. Eu sou grande leitor da “modernidade líquida”, de Zygmunt Bauman. As relações estão se transformando muito e a política vai a reboque, o que não anula a especificidade do que estamos vivendo hoje. Estamos vivendo muita a banalização (da corrupção). Isso tarda uma mudança qualitativa. Mas, vamos torcer para que a gente bata no fundo do poço e começe a subir.

Esses efeitos no inconsciente coletivo causam impactos no físico?
Eu diria, talvez, que é difícil estabelecer uma relação direta, porque você tem outras variáveis. Tem outras coisas juntas. Não dá para dizer que uma pessoa adoeceu por causa disso, porque tem o trânsito, tem o desemprego, isso contribui para o estresse, para o mau humor e principalmente para o medo. Cria o medo na gente e isso nos enfraquece. É importante sentir algum medo, mas o medo em exagero paralisa as pessoas. A síndrome do pânico é isso, um medo absurdo, a ponto de você não sair de casa, você tem medo de tentar coisas novas. Esse momento está aumentando o medo, mas (os reflexos no físico) dependem das características de personalidade.

No governo Fernando Henrique, 170 bancários se mataram (segundo dados da dissertação Patologia da Solidão, de Marcelo Augusto Finazzi, da UNB)…
É difícil estabelecer uma relação, mas, se a atual crise se intensificar, a gente pode observar uma coisa que a gente nunca observou…

Hoje, por exemplo, um dos temas que causa mais polêmicas e estresses nas redes sociais é a política pública de cotas.
Essa coisa das cotas acirra o ânimo entre as pessoas, você entra em competição com as pessoas, o outro se sente injustiçado. Diz: “eu estudei, tentei, fiz melhor, mas outro entrou no meu lugar..”

Mas, e se pensarmos que o outro que não teve a mesma oportunidade…
Você tem situações, realmente. O professor da USP, Demétrio Magnoli (sociólogo) fala sobre a questão das cotas, que ela cria identidades. Uma coisa são as origens étnicas das pessoas…A dificuldade de um indivíduo tem haver com a história dele, é uma corrida, tem pessoas que saem na frente. Dependendo da família que você nasce, você já nasce na frente. Mas as cotas criam identidade do tipo “eu sou isso, eu sou aquilo” e começa a segregar as pessoas, que começam a disputar  entre si. Fica aquela coisa: “Você não conseguiu de verdade”. O melhor jeito, todo mundo acha idealismo, mas seria investir em boas escolas públicas, acabar com as escolas de grife onde os alunos mandam nos professores porque pagam.

Como cada um de nós pode reagir, sair disso?
Eu penso que as pessoas devem procurar sempre a informação, sempre se esclarecer, devem manter uma atitude mais correta, não por vaidade, mas porque (os valores) são seus. É importante não se tornar uma pessoa tão vulnerável ao momento. Você poder preservar os seus valores, ao invés de andar conforme a onda. Precisa procurar se esclarecer, acompanhar, ler, estudar, procurar saber o que o candidato fez depois de receber seu voto. Precisamos resgatar a cidadania. O exercício da cidadania, psicologicamente, nos faz bem. Só para dar um exemplo: Eu participo do condomínio, é uma micropolítica. Lá, no condomínio, tem várias coisas, várias vontades. Não é um exercício fácil, mas eu me sinto bem por estar cuidando da minha casa.

Fonte: Diário de Pernambuco

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