30 anos da queda do muro de Berlim: os ativistas que ajudaram a derrubar a Alemanha Oriental
Ninguém tinha um telefone celular ou rede social para mobilizar apoiadores em 1989.
Mas os alemães orientais, fartos do comunismo, invadiram as ruas de Leipzig enfrentando as fortes restrições à liberdade pessoal vigentes na época.
“Nós não tínhamos telefone em casa. Não era permitido, e mesmo que fosse eles estariam ouvindo tudo”, relembra Katrin Hattenhauer, uma das organizadoras das mobilizações em Leipzig, segunda maior cidade da então Alemanha Oriental.
Realizada em 9 de outubro, uma grande manifestação à luz de velas foi o ponto de virada: uma multidão de 70 mil pessoas no centro da cidade — e pela primeira vez nas proximidades do quartel-general da polícia secreta Stasi. “Nós somos o povo”, cantavam os manifestantes.
Quase 6.000 policiais armados e agentes à paisana da Stasi acompanharam o ato, mas precisaram recuar ante a dimensão do movimento.
O controle da propaganda comunista sobre o comportamento das pessoas havia se quebrado. Mas alemães orientais e ocidentais ficaram surpresos com a queda do muro de Berlim apenas um mês depois.
Qual foi o estopim?
Já estava difundido à época um sentimento de frustração e raiva na Alemanha Oriental, conhecida oficialmente como República Democrática Alemã (DDR, na sigla em alemão). A insatisfação escalou até 1989.
Milhões de alemães orientais viam secretamente a colorida televisão da Alemanha Ocidental, mesmo que fosse ilegal. Eles acompanhavam os luxos do Oeste, os bens de consumos, mas tudo isso estava fora do alcance deles. A comunista DDR sofria com a escassez.
Opositores do regime comunista eram espionados e acossados pela Stasi, que costumava interferir nas escolhas pessoais sobre educação e carreira.
O líder comunista Erich Honecker, doente e com 77 anos, resistia a reformas, enquanto vizinhos como Polônia e Hungria passavam por transições democráticas.
O “Grande Irmão” (ou Big Brother), a União Soviética, era liderada pelo reformista Mikhail Gorbachev. Sua política de “glasnost” (abertura), incentivada pelo Ocidente, permitia que dissidentes e cidadãos sob o domínio soviético confrontassem uma série de crimes acobertados pelo regime.
“Gorbi, Gorbi” se tornou um slogan popular entre alemães orientais que cobravam um reformismo parecido em seu país.
No verão de 1989, a Hungria retirou o arame farpado de sua fronteira com a capitalista Áustria, criando uma rota de fuga para alemães orientais que miravam o Ocidente. Diversos cidadãos costumavam viajar para a Hungria, em razão das restrições às férias em outros locais.
O êxodo virou uma multidão; milhares também se refugiaram na embaixada da Alemanha Ocidental na Tchecoslováquia, e famílias foram separadas.
Gorbachev visitou Berlim Oriental em razão do aniversário de 40 anos da DDR em 7 de outubro e cobrou Honecker por reformas, afirmando que “a vida pune aqueles que chegam tarde demais”.
A DDR argumentava que havia libertado o povo da exploração capitalista: a construção do comunismo significava garantia de emprego, moradia barata e bem-estar coletivo.
Por que Leipzig foi peça-chave no colapso da Alemanha Oriental?
Ao longo de diversos anos, o pastor Christoph Wonneberger liderou “orações pacíficas” todas as segundas-feiras na Igreja Protestante de São Nicolau (ou Nikolaikirche, em alemão), local que se tornou um porto seguro para dissidentes políticos.
A década de 1980 foi marcada por anos de protesto contra a instalação de mísseis nucleares na Europa. O armamento dos Estados Unidos na Europa Ocidental foi alvo de uma série de protestos, e o líder da Alemanha Oriental, Erich Honecker, permitiu pequenos atos pacíficos em seu país contra os mísseis nucleares da União Soviética na DDR.
“A São Nicolau era conhecida em Leipzig como um lugar livre. Nós sabíamos que a Stasi estava na igreja, mas nossas atividades não podiam ser proibidas, porque se chamavam ‘orações pacíficas’, e não protestos”, relembra a ativista política Katrin Hattenhauer, que tinha 20 anos à época.
“Grupos de solidariedade estavam se fortalecendo, e o ‘verão da fuga’ (via Hungria) nos ajudou muito. Muitas pessoas se juntaram a nós tomadas pelo desespero, porque tinham perdido familiares. As pessoas buscavam lugares para compartilhar suas histórias, para decidir como levar a vida adiante”, afirmou à BBC.
A feira internacional de Leipzig em 4 de setembro daquele ano ofereceu uma rara oportunidade para a oposição anticomunista: jornalistas ocidentais receberam autorização para ir à cidade.
Hattenhauer e outros dissidentes mudaram de estratégia de olho no evento. “Nós tivemos de levar as pessoas para fora da igreja, para se tornarem visíveis e dar rosto ao movimento.”
Eles exibiram faixas e cartazes com os slogans “liberdade de reunião” e “por um país aberto com pessoas livres”. A Stasi imediatamente os reprimiu, mas a brutalidade do Estado foi filmada pela TV da Alemanha Ocidental.
Vendo essas imagens, outras pessoas “puderam ver que o governo mentia sobre nós, já que não parecíamos criminosos contra-revolucionários”, afirmou Hattenhauer.
O também dissidente Uwe Schwabe afirmou à BBC que “as pessoas eram informadas pela DDR, vivendo constantemente sob mentiras e propaganda”. “A realidade é que Leipzig estava em um estado terrivelmente poluído. O ar era horrível, fedia.”
Ele promoveu uma longa campanha por mudanças ambientais na Alemanha Oriental. O principal problema de poluição de Leipzig era uma das consequências das minas de carvão.
Por que 9 de outubro foi um ponto de virada?
Em outubro de 1989, havia diversos grupos de oposição, e segundo a então dissidente Kathrin Mahler Walther, o pastor Wonneberger era um dos coordenadores do movimento.
“Muitas pessoas decidiram que não poderiam ser jornalistas ou advogados livres (na DDR), então estudaram teologia para ficarem livres do Estado, e havia críticos entre eles”, explica Schwabe.
Mas religiosos ativistas eram uma pequena minoria na Igreja Protestante de Leipzig. E a Igreja Católica evitava ativistas.
O pastor Wonneberger, a ativista Walther e outros dissidentes criaram uma rede em Leipzig, permitindo que a manifestação de 9 de outubro tivesse um grande impacto.
Foi a primeira das Manifestações das Segundas-Feiras que se tornou um movimento de massa.
Muitos pensavam que havia uma mudança em curso naquele dia, apesar do medo de que a polícia pudesse abrir fogo contra a multidão, como o governo chinês havia feito pouco antes no Massacre da Praça da Paz Celestial.
Então a multidão em Leipzig também clamava “Sem violência!”, e os líderes dos protestos pediam que os manifestantes não dessem motivos para a polícia agir.
“Havia pessoas de todas as idades, ainda que as pessoas mais velhas tentam tentado impedir que as crianças fossem”, relata Schwabe.
Cronologia da derrocada da Alemanha Oriental em 1989
– Agosto-Setembro: Milhares de alemães orientais fugiram para o Ocidente a partir da fronteira da Hungria com a Áustria; outros escaparam pela Tchecoslováquia;
– 9 de outubro: Uma multidão de 70 mil pessoas, algo sem precedentes, participou de ato no centro de Leipzig pedindo liberdade;
– 18 de outubro: Líder comunista Erich Honecker renuncia, e é substituído por Egon Krenz;
– 7 de novembro: O governo e o Politburo renunciam;
– 9 de novembro: Queda do Muro de Berlim;
– 3 de outubro de 1990: Reunificação da Alemanha.
Tempos depois veio a público a informação de que as autoridades alemães haviam ordenado que os hospitais de Leipzig montassem mais leitos e separassem o suprimento de sangue.
Dois ativistas, Aram Radomski e Siegbert Schefke, tinham uma câmera de vídeo, mas precisavam de um lugar seguro para filmar os protestos. E o pastor os deixou subir na torre da igreja.
“Eu não ousei filmar no nível da rua”, afirmou Schefke à BBC.
“Depois eu encontrei o repórter do veículo Spiegel (da Alemanha Ocidental), Ulrich Schwarz, num hotel e entreguei minha gravação, que ele levou consigo naquela noite.”
O protesto pacífico de 70 mil pessoas foi transmitido na televisão da Alemanha Ocidental no dia seguinte. E o movimento foi irrefreável. Uma semana depois se reuniram 100 mil pessoas no centro de Leipzig, e os protestos se espalharam pela Alemanha Oriental.
“Hoje, eu tenho 60 anos. Eu vivia atrás do arame farpado, mas agora eu já passei mais tempo vivendo em liberdade do que sem ela. Eu fui aprisionado por 30 anos”, diz Schefke.
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