Dia da Consciência Negra: quem foi Luiz Gama, figura-chave no movimento abolicionista brasileiro
Edison Veiga
Faz 25 anos que a pesquisadora Ligia Fonseca Ferreira estuda a vida e a obra de uma figura singular da história brasileira: o abolicionista Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882). Ela debruçou-se sobre o personagem para sua tese de doutorado, iniciada em 1995 e concluída no ano 2000 na Universidade Sorbonne Nouvelle — Paris III. E descobriu um personagem muito mais dinâmico do que as poucas linhas que a historiografia consagrada lhe reservou.
Se nos últimos anos, o abolicionista vem sendo reconhecido como verdadeiro advogado — autodidata, soube utilizar as leis vigentes para conseguir, pela justiça, alforriar centenas de escravos — e figura-chave no movimento abolicionista brasileiro, Ferreira foi além. Professora de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela atentou para os talentos literários e jornalísticos de Luiz Gama.
Apenas 12 anos depois de ter aprendido a ler, Gama publicou, em 1859, seu único livro, Primeiras Trovas Burlescas. Foi assíduo colaborador de jornais da época, tendo escrito centenas de artigos para publicações tanto de São Paulo, onde morava, quanto do Rio, a capital federal de então.
Nascido em Salvador, Gama era filho de uma escrava liberta com um descendente de portugueses. Quando ele tinha 10 anos, seu próprio pai o vendeu como escravo. Então ele foi mandado para São Paulo. Conseguiu a alforria aos 17 anos, ainda analfabeto. Sem nunca ter tido aulas formais mas, provavelmente, frequentando a biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, tornou-se um estudioso das letras.
“Para a grandiosidade de Luiz Gama, o negro, o libertador de escravos, o uso da palavra é uma coisa que nem era inesperada. Ele se colocou nesse lugar da produção, na literatura e no jornalismo, depois na advocacia. São áreas que, sem o domínio da palavra escrita, ele não podia nem ser nem se definir”, afirma a pesquisadora.
Depois de organizar a edição crítica da obra poética integral do autor — publicada pela editora Martins Fontes, no ano 2000 — e de publicar a antologia Com a Palavra, Luiz Gama: Poemas, Artigos, Cartas, Máximas — pela Imprensa Oficial, em 2011 —, Ferreira está lançando Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, 1864-1880, pela Edições do Sesc. A obra, que traz 61 artigos escritos pelo abolicionista, é fruto de um trabalho de pesquisa e seleção de três anos.
Para ela, reconhecer o Gama escritor é fundamental para que sua biografia não seja reduzida a “um relato chapado, a umas poucas linhas na história do abolicionismo”. “Ele é dono de uma escrita bastante complexa, poderosa, literária. Naquele momento, a imagem precisava ser construída com a palavra e ele era o homem da imagem. Escrevia assumindo o foco narrativo, como se tivesse uma câmera”, afirma.
Um dos trechos que ele usa para destacar o estilo está no texto Emancipação, publicado pela Gazeta do Povo em 1º de dezembro de 1880. “Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam ; que esta cor convencional da escravidão, (…) à semelhança da terra, [a]través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade. Vim [lembrar ao] ofensor do cidadão José do Patrocínio por que nós, os abolicionistas, animados de uma só crença, dirigidos por uma só ideia, formamos uma só família, visando um sacrifício único, cumprimos um só dever.”
BBC News Brasil: Por que até pouco tempo atrás Luiz Gama mal era citado como um dos abolicionistas?
Ligia Fonseca Ferreira: Você sabia que [o abolicionista] José do Patrocínio [(1853-1905)] era negro? Talvez nos livros didáticos, quando se ensinava abolição, isso nem se falava…
BBC News Brasil: Sinceramente, não sei precisar se já tinha essa consciência ou se foi uma memória construída depois, já adulto… Mas por que Luiz Gama foi deixado de lado?
Ferreira: Ele era lembrado como o abolicionista Luiz Gama, tinha lá uma estátua de bronze. Mas realmente sua personalidade está sendo trazida agora, por isso meu propósito em identificar a grandeza de sua obra. Não temos a obra jornalística do Joaquim Nabuco, do José de Alencar, do próprio Machado de Assis? O Luiz Gama não foi coisa pouca. Havia uma lei de 1837 que proibia negros de irem à escola. Então o fato de ele escrever e optar por isso, ele deve ter sido um superdotado. Depois, ao escrever nos jornais onde estavam os homens brancos letrados, ele passou a ocupar uma instância de poder.
Esta sua pergunta eu também me fiz: por que Luiz Gama não está mais presente na história do abolicionismo? Porque a história da abolição, como nos chegou e foi perpetuada, bem, eu tenho algumas hipóteses. Ela foi contada pela República, que Luiz Gama não viu [ele morreu sete anos antes da Proclamação]. E era uma República madrasta que queria apagar logo essa coisa da escravidão. Mas isso em um período de crenças, de preconceito, de acreditar que a “raça negra” era inferior, isso de modo sistematizado e com ares científicos.
O próprio Luiz Gama brinca com isso em um versinho, no qual ele dizia “ciências e letras não são para ti; pretinho da costa não é gente aqui”. Luiz Gama era o contrário de tudo aquilo, ele era o negro que escrevia, o negro que lia. Ele era praticamente uma contradição. Numa república de ímpeto embranquecedor, a história foi contada tendo as grandes famílias, as famílias poderosas [nos papéis principais].
BBC News Brasil: Mas como se deu o resgate de Luiz Gama, essa figura um tanto esquecida, sobre quem pouco se falava até duas décadas atrás?
Ferreira: Esse resgate tem a ver com alguns trabalhos no campo da história e, sou obrigada a falar, também por causa das minhas pesquisas. O Luiz Gama foi ganhando as dimensões à medida que vamos conhecendo sua obra. Ele foi um intérprete do Brasil.
BBC News Brasil: No sentido do pensamento de Luiz Gama, o que os artigos do seu novo livro revelam de novo, além do que tem sido destacado nos últimos anos?
Ferreira: Ele já foi reconhecido como advogado, como abolicionista… Eu, por uma deformação profissional, quero mostrar o Luiz Gama homem da palavra escrita. Quero mostrar a figura do jornalista que teve grande audiência, grande influência, que escrevia nos principais jornais, criava polêmicas incríveis, denunciava, usava da força da liberdade de imprensa para se expressar como voz negra daquele momento.
Quem você colocaria no mesmo pé na história da imprensa? Quem conhecemos? Não são as crônicas do dia a dia do Machado de Assis. É diferente. Hoje você percebe que é preciso “provar” que o Machado era negro e se interessou pela abolição. Eu diria para você que o Luiz Gama não renegou em nenhum momento sua carapinha, não há dúvidas de que era um homem negro, não precisamos fazer campanha para enegrecer o Luiz Gama como foi feito para o Machado.
Ele estava lá, dizendo: “quero que o mundo me encarando veja um retumbante Orfeu de carapinha”. Aí você vai ler os artigos e ele diz que todo mundo sabe de seu passado, que “eu ombreio com os infelizes”, porque ele já tinha sido escravizado. E ele vai dizendo isso de várias formas. Luiz Gama tinha uma escrita que merece ser destacada. E ele não era um ativista que ia simplesmente denunciando. Era um formador de opinião com inteligência. Ele argumentava, coisa que no Brasil de hoje está muito difícil, né? Em seus textos, existe um diálogo crítico instaurado.
BBC News Brasil: De certa forma, percebe-se um raciocínio de jurista, não?
Ferreira: Mas ele levava a público, dizia que “o Brasil tem de saber”. Por isso ele trazia para a imprensa. Fazia todo um arrazoado, comentava, desconstruía. Dizia que tinha de mostrar “o modo extravagante como se administra a justiça no Brasil”. Acho que essa frase do Luiz Gama poderia valer para hoje, para os últimos tempos, para os dias de hoje. Mas ele era um homem da comunicação. Mais do que, digamos, só abolicionista. Luiz Gama foi um homem que preencheu uma cena, um momento, um lugar de ideias em São Paulo. E fez isso de maneira bastante intensa.
BBC News Brasil: Em artigo publicado no Correio Paulistano em novembro de 1871, ele escreveu: “Se algum dia […] os respeitáveis juízes do Brasil, esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica […].” Juntando-se a isso o fato de que ele conseguia alforriar escravos por meio da esfera judicial, podemos inferir que Luiz Gama defendia uma abolição que seria feita com respeito às leis? Ele era um legalista?
Ferreira: Legalista em defesa dos escravos. Uma coisa que ele fez foi desenterrar a bendita lei de 1831 [Lei Feijó, que proibia a importação de escravos para o Brasil], colocando na cabeça dos outros. Ele era um defensor dos direitos. Dizia “nós temos leis”. Pedia que as leis existentes fossem aplicadas. Então ele puxava as leis e pegava no pé dos juízes, lembrando que ele mesmo era filho de uma africana, que ele mesmo tinha sido escravizado. Ele sabia o que era ser africano. O que era ser escravo. Ele mexeu no vespeiro. Calculou que de 1831 até o fim da década de 1870, entraram no Brasil contrabandeados quase 750 mil africanos.
BBC News Brasil: Mas ele acreditava que a abolição viria somente do cumprimento dessas leis?
Ferreira: Não. Para ele, a escravidão teria de se encerrar. Ele era pela abolição, era abolicionista radical.
BBC News Brasil: Gama também era republicano, em um texto chega a chamar o governo de dom Pedro II de “imoral”. Como imaginava que seria feita a República? O que ele pensava de um Brasil republicano?
Ferreira: Ele não falava de programas ou de um programa republicano. Mas Luiz Gama não se chamava de súdito, e sim de cidadão. Naquele momento, isso era como dizer “eu sou democrata”. Ele afirmava uma identidade política: sou cidadão, não sou súdito de ninguém. E aquelas frases célebres: tenho um sonho sublime, um Brasil sem reis e sem escravos. Para o grupo dele, ter um monarca era outro tipo de escravidão.
Ele acreditava numa república com aquela tríade de garantias de igualdade, liberdade e fraternidade. Não podemos esquecer que era uma corrente progressista e alinhada aos ideais da Revolução Francesa. O programa para a república estava embutido no fato de eles serem abolicionistas e quererem um país de iguais. Ele também falava em um Brasil americano, no modelo dos Estados Unidos. Queria um modelo de república federativa.
BBC News Brasil: De que maneira seus textos ajudam a compreender o Brasil de hoje?
Ferreira: Ele escreveu que “no Brasil, ladrão que muito furta é protegido”. Pega esse Luiz Gama: ele está falando do Brasil de hoje, da rachadinha, parece que está falando dessas figuras presentes aqui. Tem um poema dele, chamado “Quem Sou Eu?” que é uma espécie de retrato, uma fotografia socio-racial do Brasil. Ele antecipa aquilo que anos mais tarde seria o movimento da negritude. Ele mostra que os negros e os afrodescendentes estão na sociedade brasileira inteira. Fala das camadas sociais, enfatiza que todos têm sua afro-ascendência. Essa que o Machado tentou calar, mas o Luiz Gama, não.
Ele sempre foi muito específico nessa questão. Nos textos jornalísticos ele deixava bem claro como era alvo de preconceitos e de racismos. Quando dizia “em nós até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem”, estava dizendo como nós negros somos vítimas do racismo. Ele denunciava que esse “defeito” inclusive impedia a entrada de negros no exercício de algumas funções. Mas uma coisa interessante é que Luiz Gama deixava claro que o abolicionismo e o projeto republicano não era um projeto só de negros, exclusivo.
E a gente comete alguns equívocos quando falamos da luta antirracista: não é um problema só nosso, mas uma coisa que precisa ser abraçada por negros e brancos, um conjunto de valores e princípios que devem ser comungados por todas as pessoas e não apenas por negros. O Brasil precisa redescobrir isso. O Luiz Gama interessa ao Brasil. O Brasil precisa saber que nós tivemos esse patrimônio. Quando eu olho para essa história, o Luiz Gama é o pico mais elevado do século 19. Ele é meu Everest, não dá para comparar, não dá para dizer que tudo é igual.