A vida de São Sebastião, padroeiro do Rio, que virou protetor dos gays
Edison Veiga
É uma história impressionante a de São Sebastião (256-286), como convém às hagiologias, sobretudo as do princípio do cristianismo, quando os registros históricos eram parcos e, assim, as lendas sedimentadas com o passar dos séculos contribuíram para consolidar um imaginário ainda mais milagroso.
Cristão que se tornou soldado com a ideia de ser uma espécie de agente-duplo, ou seja, para ajudar outros cristãos condenados pelo Império Romano, acredita-se que ele tenha sido desmascarado e martirizado — não uma, mas duas vezes.
Da primeira, com as tais flechadas que acabaram se tornando características de suas representações sacras, acabaria sobrevivendo.
Recuperado, teria decidido tomar satisfações com o imperador. Que, novamente, determinou sua execução, operação esta que então se realizaria de forma exitosa.
Eternizado por relatos hagiológicos antigos, logo passou a ser venerado pelos cristãos. Acredita-se que populações se livraram de epidemias pelo menos três vezes graças a intercessão dele.
Em 1567, foi num dia de São Sebastião, 20 de janeiro, que portugueses expulsaram os franceses que dominavam a região do Rio de Janeiro. Daí o santo ter se tornado padroeiro do lugar.
Mais recentemente, o santo foi apropriado por comunidades LGBT, que o transformaram em uma espécie de ícone gay.
Quem foi?
Autor do livro São Sebastião: o Mártir Que Desafio o Imperador Ao Se Declarar Soldado de Cristo, o padre Jeferson Mengali explica que Sebastião foi “um dos muitos soldados romanos” que acabaram “martirizados por sua fé em Jesus”. “É uma pena que tudo o que temos sobre esse santo é o que está nas atas de seu martírio, escritas dois séculos mais tarde”, lamenta ele.
“Conta-se que os escribas tinham ordens de colocarem nessas atas detalhes do martírio, dando pouca ênfase a história do martirizado. E isso acontecia para assustar os cristãos, pois essas atas eram colocadas na cidade onde ocorria no martírio, para que todos pudessem conhecer as histórias e, assim, fosse desestimulada a adesão ao cristianismo” , explica o sacerdote.
Mengali conta que há três documentos antigos que fundamentam o que se sabe a respeito da vida de Sebastião: a ‘Legenda Aurea’, o ‘Martirologio’— em registro que teria sido feito no ano de 354 — e as ‘Acta Santorum’.
Nesses textos, afirma-se que Sebastião teria nascido no ano de 250 em Narbonne, cidade do império romano situada no atual sul da França. “[Diz-se também que ele] tinha feito muitos atos de amor e caridade para com os irmãos cristãos”, enfatiza o padre biógrafo.
Conforme pontua Mengali, “os detalhes do martírio de Sebastião foram elaborados” posteriormente. A primazia do relato é atribuída a Aurélio Ambrósio (340-397), influente religioso que foi arcebispo de Mediolano, atual Milão.
Atribui-se a Ambrósio a autoria de um texto registrado como sermão de número 20, em que ele analisa o Salmo 118 e inclui a narrativa da morte de Sebastião.
“Sebastião foi um dos soldados romanos mártires e santos, cujo culto nasceu no século 4o. e atingiu seu auge por volta dos séculos 14 e 15”, afirma Mengali. “Embora os seus martírios possam provocar algum ceticismo junto aos estudiosos atuais, certos detalhes são consistentes com atitudes de mártires cristãos seus contemporâneos.”
Ele teria se alistado ao exército romano no ano de 283, quando vivia onde hoje é MIlão. “Ascendeu na carreira militar até se tornar capitão da guarda do imperador”, conta o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
Segundo Maerki, a “finalidade do ingresso no exército era justamente ajudar os cristãos que vinham sendo aprisionados”. “Ele trabalhava para auxiliar os perseguidos que estavam presos e se tornariam mártires”, comenta o pesquisador. “A fama de santidade de Sebastião começou a partir disso.”
Era um período em que ser soldado significava muito em termos de status social. “Ele se tornou uma espécie de modelo de soldado cristão, com uma ética, uma moral verdadeira no auxílio aos perseguidos e, numa atualização contemporânea, auxílio àqueles que sofrem”, analisa Maerki.
As hagiografias antigas atribuem ao imperador Diocleciano (244-311) a descoberta da fé de Sebastião e sua condenação à morte. “Segundo a ata do martírio do santo, escrita entre os século 4o. e 5o., Diocleciano teria afirmado algo como ‘eu o tive entre os grandes no meu palácio e você agia contra mim'”, relata Maerki. “Sebastião escondia isso, que era cristão, do imperador. Ele ajudava os cristãos prisioneiros às escondidas.”
Duplo martírio
Os documentos antigos narram que a sua condenação teria sido morrer por flechadas. “A história é que o imperador mandou que ele fosse pendurado em um poste de madeira para ser torturado com flechadas até a morte”, diz o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma.
“Daí vem a imagem popular até hoje, de um santo com as flechas pelo corpo”, acrescenta ele.
“A imagem de São Sebastião, tão conhecida de todos nós, revela um momento importante do martírio deste grande santo”, complementa Mengali. “A reprodução do martírio de São Sebastião, amarrado a uma árvore e atravessado por flechas, é uma imagem milhares de vezes retratada em quadros, pinturas e esculturas por artistas de todos os tempos.”
É possível traçar uma analogia, portanto, com a própria crucificação de Jesus. Nesse sentido, Sebastião teria sofrido também uma “paixão”, como se diz no meio religioso – isto é, um sofrimento que deveria resultar em morte. “Mas ele não morreu nessa tortura”, conta Domingues.
“O suplício das flechas não lhe tirou a vida, resguardada pela fé em Cristo. As flechas de São Sebastião nos revelam a primeira fase das torturas que o santo enfrentou. Tendo como carrasco seus companheiros de exército, São Sebastião suportou várias flechadas em seu corpo sem renegar a fé”, diz ainda o padre Mengali. “Quando todos pensaram que ele estivesse morto, deixaram-no amarrado para ser devorado pelos animais e aves de rapina.”
Mas, fato ou lenda consolidada pelo cristianismo, o soldado teria sobrevivido. “Irene de Roma [uma mulher cristã que depois também se tornaria santa] acabou recolhendo seu corpo com a finalidade de sepultá-lo. Mas ela percebeu que ele ainda estava vivo”, narra Maerki.
“Ela o levou para a casa e começou a cuidar dele, tratando as feridas. E ele foi curado, uma cura considerada milagrosa”, diz o pesquisador.
Sebastião foi então aconselhado por seus amigos a fugir de Roma. “No entanto, ele decidiu procurar o imperador para reafirmar sua fé”, relata. “Acabou condenado novamente, desta vez para ser açoitado até a morte. Foi um santo que sofreu muito, praticamente um duplo martírio.” Isso teria ocorrido em 20 de janeiro de 286, daí a data que passou a ser celebrada pelo cristianismo.
Domingues afirma que, para ter certeza de que desta vez ele seria morto, Diocleciano ordenou que o corpo dele fosse jogado na chamada cloaca máxima, o sistema de esgoto de Roma. “A tradição diz que isso foi feito mas que o corpo teria ficado preso numa parte específica e, depois, recuperado pelos cristãos, acabou enterrado nas catacumbas fora do centro da cidade, onde costumavam sepultar alguns cristãos”, conta o vaticanista.
“Pouco antes do martírio, São Sebastião teria dito que ‘antes de ser oficial do imperador, sou um soldado de Cristo'”, diz Maerki. “A frase revela coragem, bravura. Mas é importante ressaltar que assim como a história de muitos mártires dessa época, sua vida está repleta de lendas que se misturam com os fatos e dados verídicos.”
Protetor contra epidemias
“Há toda uma construção [de sua biografia]. Há quem diga, por exemplo, que ele nunca sofreu flechadas, mas sim que a morte teria ocorrido por espancamento. Outras versões atestam que ele morreu já na primeira das condenações. É muito difícil afirmar o que é verdade e o que é lenda”, prossegue o hagiólogo. “Há muitas controvérsias.”
O vaticanista Domingues vê uma importância no simbolismo do ocorrido frente à própria evolução urbanística de Roma. “Segundo a tradição, ele foi martirizado no Palatino, que naquela época era o centro de Roma, a colina onde ficava o palácio do imperador”, comenta. “Hoje ali estão as ruínas do império e uma igreja dedicada a São Sebastião, ainda em pé.”
“Ou seja: de um lado, o fim daquele poder romano, de outro, a Igreja que resiste por causa do sangue de seus mártires”, compara o vaticanista.
Por conta de sua hagiografia, Sebastião é visto hoje como “um defensor da Igreja, um proclamador da fé”. “Justamente por ter sido insistente: teria sobrevivido à primeira tentativa de martírio, voltou e não fugiu, veio de novo defender aquilo em que acreditava”, argumenta Domingues.
Mais tarde, foi à devoção a São Sebastião que cristãos apelaram para sobreviver a epidemias.
“Venerado pelos fiéis desde a Antiguidade, muitos milagres são atribuídos a ele, mesmo enquanto ele era vivo”, pontua padre Mengali. “No ano de 680, quando suas relíquias [seus restos mortais] foram transportadas solenemente para uma basílica, construídas por Constantino [imperador romano], cidadãos romanos sofriam com uma peste. A epidemia teria desaparecido na hora da transladação das relíquias, e esta é a razão porque os cristãos veneram em São Sebastião o grande padroeiro contra a peste.”
Há relatos semelhantes ocorridos em Milão, em 1575, e em Lisboa, em 1599, momentos em que, segundo Mengali, “outras epidemias foram debeladas a partir de quando o povo suplicou por sua intercessão”.
“Ele tem essa marca. Talvez devêssemos pedir ajuda para ele para sair de nossa situação atual”, comenta Domingues.
Rio de Janeiro
O santo seria considerado padroeiro e protetor do Rio de Janeiro por conta de um episódio histórico do Brasil colonial. Quando franceses ocupavam a baía de Guanabara e se tornaram aliados dos índios tupinambás, colonizadores portugueses começaram a articular uma maneira de expulsá-los.
“Em 1567, os portugueses e seus aliados, o grupo indígena rival dos tupinambás, os temiminós, destruíram a colônia francesa”, diz Mengali.
“Segundo a lenda espalhada oralmente, já que não existe nenhum registro a respeito, São Sebastião foi visto de espada na mão entre os portugueses, mamelucos e índios temiminós, lutando contra os franceses calvinistas e indígenas tupinambás, durante a batalha final que expulsou os franceses que ocupavam o Rio”, conta o padre.
Batalha esta, vale frisar, que ocorreu no dia dedicado ao santo, 20 de janeiro de 1567.
A devoção, então, cresceria por lá. No mesmo ano, o militar e governador-geral Estácio de Sá (1520-1567), considerado o fundador da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, mandou erguer uma igrejinha a ele, junto ao Morro Cara de Cão, atual bairro da Urca. Era pequena e simples. De taipa, coberta de sapé.
A igreja dedicada ao padroeiro seria feita entre 1578 e 1598. “Em 1922 a Igreja de São Sebastião foi transferida para uma nova Igreja na Tijuca, a Igreja de São Sebastião dos Frades Capuchinhos”, conta padre Mengali. “Para lá também foram transferidos em 1931 os restos mortais de Estácio de Sá, o marco de fundação da cidade, além do relicário com um fragmento do osso do mártir São Sebastião, juntamente com a imagem do santo trazida de Portugal.”
O biógrafo do santo explica que São Sebastião “sempre foi o padroeiro do Rio” e isso justifica seu “culto carinhoso por parte dos cariocas”. “Nos tempos coloniais e nos da monarquia, a festa de São Sebastião era celebrada com muito entusiasmo. Havia salva de tiros das fortalezas e dos navios, parada de tropas em grande gala, cerimônias religiosas com missa solene, repiques de sinos, foguetórios, danças populares em plena rua”, conta. “Atualmente, o povo do Rio comemora com missas e procissões a data que às vezes é confundida com a criação da cidade, em 1o. de março.”
O vaticanista Domingues comenta que essa ligação entre o mártir cristão e a cidade brasileira é visível inclusive em Roma. “Existe uma tradição de o arcebispo do Rio de Janeiro [atualmente, d. Orani Tempesta] celebrar na basílica de São Sebastião [em Roma] em ocasiões especiais”, recorda. “É uma coisa bonita, porque um lanço concreto e visível com o santo romano, com a igreja romana.”
Ícone LGBT
Publicado em livro, o ensaio ‘Losing His Religion: San Sebastian As A Contemporary Gay Martyr’ apresenta o santo como um ícone LGBT. O autor, o pesquisador norte-americano Richard Kaye, PhD pela Universidade de Princeton e professor no Hunter College de Nova York, apresenta-o como um soldado “muito amado” pelos imperadores romanos de seu período, que o queriam sempre por perto.
O autor insinua que o santo poderia ter sido, mais do que guarda pessoal, amante dos imperadores.
A iconografia sacra, sobretudo a partir do Renascimento, passou a representá-lo como um jovem atlético — faz sentido, posto que ele era soldado e foi executado com apenas 30 anos. E, no imaginário, mostrado com as flechadas em seu corpo, retratado sempre praticamente nu.
Kaye analisa que essa iconografia cristã “sustenta um ideal homoerótico”, com o personagem “em êxtase”, tal e qual um símbolo da “natureza supostamente sadomasoquista do erotismo masculino”.
Na contemporaneidade, ativistas LGBT também viram no santo a representação de um ideal de luta e persistência — ele era um cristão que não teve medo de se assumir, assim como homossexuais hoje muitas vezes precisam ter coragem para se assumir.
O pesquisador Kaye chega a firmar que os “gays de hoje em dia viram imediatamente em São Sebastião tanto o anúncio cálido do desejo sexual como um exemplo de gay no armário que foi torturado”.
Para Maerki, é importante ainda pontuar que São Sebastião “é o santo masculino mais retratado na história da arte”. “E a imagem clássica de seu corpo, seminu, resplandecendo beleza, se tornou símbolo. Historiadores e especialistas como Kaye veem nesse imaginário o corpo sendo retratado com um erotismo, uma espécie de propaganda do desejo homossexual”, analisa.
Segundo ele, os relatos de que Sebastião mantinha “uma espécie de vínculo emocional com seus oficiais” e textos que o apresentam como “muito amado pelos imperadores” reforçam essa interpretação.
“Talvez tenha sido a junção de tudo isso que fez com que a comunidade LGBT acabasse o escolhendo como uma espécie de mártir gay. E uma analogia é possível: se São Sebastião foi defensor dos que eram perseguidos, os cristãos perseguidos daquele tempo, que eram torturados e mortos, ele também desponta na nossa sociedade como um símbolo de luta por outra causa”, compara Maerki. “Sabemos que a comunidade LGBT muitas vezes é perseguida. Ele surge como um símbolo de defesa, de proteção.”
Padre Mengali lembra que a imagem do santo martirizado por flechas é uma construção posterior. “Diferente do que as pinturas mostram, São Sebastião não foi morto por flechas. Ele foi resgatado por Santa Irene e espancado até a morte a mando do imperador Diocleciano, que jogou seu corpo ferido nos esgotos de Roma”, enfatiza. “A imagem de seu corpo seminu perfurado por flechas e aguardando o martírio foi estabelecida pelos pintores do Renascimento. A propagação dessa imagem despertou a imaginação de vários artistas, fazendo de São Sebastião o santo masculino mais retratado na história da arte.”
Para o biógrafo, contudo, a coragem que ele teve ao assumir frente ao imperador sua posição como cristão é o que permite um paralelo com os homossexuais de hoje em dia, que muitas vezes também enfrentam dificuldades semelhantes para declarar sua orientação sexual.
Ele percebe, contudo, um curioso ponto consagrado pelo imaginário sacro. “Por que São Sebastião, tendo sido também soldado e guerreiro, não possui a mesma simbologia de virilidade e machismo que o Santo do Dragão?”, pergunta ele.
“Olhando para a imagem de Sebastião, vemos uma imagem de fragilidade, passividade; um homem forte, mas indefeso, amarrado a uma árvore e cheio de flechas”, explica Mengali. “São Sebastião é aquele que ganha as pessoas com a palavra, aquele que convence com o diálogo, a conversa, não convence com a luta, como São Jorge. São Sebastião, se observarmos suas biografias antigas, tem poder de persuasão, para animar cristãos indecisos e converter pagãos. Nesses tempos de negação da fé e de valores espirituais, religiosos, humanos e sociais, São Sebastião torna-se um grande modelo de ajuda para todos nós.”