Quem foi Maria Felipa, a escravizada liberta que combateu marinheiros portugueses e incendiou navios
Evanildo da Silveira
“Nasceu escrava, mas depois de liberta colocou a liberdade como maior tesouro de sua vida, moradora da Ilha de Itaparica, negra, alta, desde cedo aprendeu a trabalhar como marisqueira, pescadora, trabalhadora braçal que aprendeu na luta da capoeira a brincar e a se defender, que vestia saias rodadas, bata, torso e chinelas, foi líder de um grupo de mais de 40 mulheres e homens de classes e etnias diferentes, onde vigiava a praia dia e noite a fortificando com trincheiras para prevenir a chegada do exército inimigo, e organizava o envio de alimentos para o interior da Bahia (recôncavo), atuando na luta pela libertação da dominação portuguesa.”
Este trecho do livro Maria Felipa de Oliveira – Heroína da Independência da Bahia, de Eny Kleyde Vasconcelos Farias, se refere a esta personagem no mínimo controversa da história baiana e brasileira.
Praticamente não existem registros ou documentos históricos que atestem a existência dela e de seus feitos. Mas 200 anos depois, ela continua viva na tradição oral de Itaparica e de cidades do Recôncavo Baiano e nas comemorações da independência.
De acordo com o historiador Milton Moura, professor de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a tradição popular situa Maria Felipa sempre ao lado das outras duas heroínas, Joana Angélica e Maria Quitéria.
“Nos cortejos cívicos e nos espetáculos que têm lugar por ocasião das comemorações da independência, as estampas com os seus rostos costumam ser vistos e muito bem apreciados”, afirma.
A segunda é Maria Quitéria de Jesus, a primeira mulher a ingressar nas Forças Armadas brasileiras e, que para isso, se disfarçou de homem — cortou o cabelo, amarrou os seios e vestiu roupas masculinas — e se alistou como soldado Medeiros.
O professor Gilberto Mendonça, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), tem dois hobbies: o estudo de história, sobretudo da Bahia, e colecionar álbuns de figurinhas, hábito que trouxe da infância.
“Durante a pandemia, os dois passatempos se mesclaram e, em colaboração com um grupo de amigos colecionadores, criamos um álbum de figurinhas sobre a história da Bahia”, revela.
“Foi na pesquisa para a confecção deste álbum que me aprofundei um pouco mais na história de Maria Felipa, uma das três heroínas da independência do Brasil.”
Para ele, sendo lenda ou realidade, Maria Felipa faz parte do imaginário popular, suas histórias são contadas e cantadas em todo recôncavo da Bahia.
Ela é retratada como uma mulher negra, marisqueira, que trabalhava na indústria baleeira, e sobretudo, uma das grandes heroínas da guerra da independência do Brasil e da Bahia, em 2 de julho de 1823, quando finalmente houve a rendição e fuga dos portugueses.
“Acima de tudo, é um ícone, um exemplo, um modelo de mulher, negra, trabalhadora e corajosa”, diz ele.
Maria Felipa teria nascido na Ilha de Itaparica em data incerta e morrido em 4 de julho de 1873. Chamada na época de Arraial da Ponta das Baleias, a ilha passou depois a ter o nome atual, que, em tupi, significa “cerca de pedra”, devido aos recifes de corais que a rodeiam. Ela tem 36 km de comprimento e uma superfície de 180 km², que abrigam 36 localidades.
Segundo conta Eny Kleyde em seu livro, baseado principalmente em depoimentos orais de ilhéus atuais e obras de autores que a precederam – entre os quais Ubaldo Osório Pimentel (1883-1974), avô do escritor João Ubaldo Ribeiro -, Maria Felipa, descendente de sudaneses, nasceu na Rua da Gameleira, no atual município de Itaparica. Ela morou na região de Beribeira e, depois, na Ponta das Baleias, num casarão chamado “Convento”.
Localizado próximo às principais edificações, o “Convento” era uma residência de trabalhadores, na qual se alojavam pescadores, carpinteiros, marisqueiros, entre outros, conta Eny em seu livro.
“Maria Felipa nasceu ‘provavelmente em 1799’, conforme registra Fernando Rebouças, em publicação do Informativo Assabita [Associação dos Amigos da Biblioteca de Itaparica].”
De acordo com o historiador Pablo Antonio Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), a personagem Maria Felipa apareceu pela primeira vez em letra de forma no livro A Ilha de Itaparica: História e Tradição, escrito por Pimentel mais de um século depois da guerra.
“É possível afirmar que personagens citados por ele, na referida obra, não possuem nenhum respaldo documental”, garante.
É o caso de certo impressor, que, com ouvidos apurados, teria interceptado informações militares junto ao editor português Inácio José de Macedo, que era contrário à independência, e alertado às autoridades em Itaparica da iminência de uma investida militar contra a ilha.
“Pode ser que tenham existido, permanecendo na memória, mas sem os devidos registros”, diz Magalhães.
De acordo com a tradição oral, no entanto, na guerra de independência da Bahia, Maria Felipa teria se destacado na defesa de Itaparica, quando os portugueses atacaram a ilha em 7 de janeiro de 1823.
Segundo Laurentino Gomes, em seu livro 1822, que não tem nenhuma referência à personagem, foi um grande ataque lusitano, com “40 barcas, dois brigues de guerra e lanchas canhoneiras contra a fortaleza de São Lourenço e o povoado”. Mas os baianos resistiram, no entanto, e depois de três dias de combates, derrotaram os inimigos.
O professor de história da América, Rodrigo Lopes, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), chama atenção para o fato de que a ilha era um local estratégico para portugueses e baianos, pois está no caminho entre a foz do Rio Paraguaçu e a Baía de Todos os Santos, por onde entrava a maior parte dos víveres que abasteciam a cidade de Salvador.
Por isso, ocupar Itaparica era condição indispensável para que os portugueses pudessem ter acesso a alimentos, que já não chegavam do sertão por terra, pois os baianos, liderados por Pedro Labatut, general francês contratado para comandar as tropas brasileiras, haviam formado uma barreira em Pirajá.
“A intenção era matar a ‘marotada’ de fome”, informa Lopes. A palavra “marotos” designava os portugueses colonialistas na época.
Foi neste contexto de guerra que Maria Felipa teria atuado e se destacado. Conta a tradição que ela se alistou na Campanha da Independência, que reunia índios, negros livres e escravizados — africanos e brasileiros e até alguns portugueses, que eram a favor da independência do Brasil, e que organizavam a resistência na ilha.
Segundo Eny Kleyde narra em seu livro, na Campanha havia as “vedetas”, no sentido de sentinelas ou vigias, que, dia e noite, vigiavam barcos próximos ou que vinham ao longe, com intenção de atacar a ilha.
“Maria Felipa de Oliveira era líder das ‘vedetas’, observando as praias, as matas, os caminhos e subindo em outeiros, principalmente o do Balaústre e o da Josefa, que ficavam próximos aos campos de guerra, para identificar os portugueses que desciam dos barcos para saquear”, diz a escritora em sua obra.
Mas Maria Felipa também teria entrado em combate direto, durante a batalha de 7 de janeiro.
“Ao contrário do que acontece com relação a Joana Angélica e Maria Quitéria, não dispomos de documentos de arquivo que atestem a existência e atuação dela”, ressalva Moura.
“A tradição popular vem, assim, completar a lacuna dos arquivos. Maria Felipa é situada principalmente em dois eventos, sempre acontecidos na beira do mar”.
O primeiro, continua Moura, é a surra de cansanção (Jatropha urens), uma planta urticante que produz uma coceira intensa e que, com golpes vigorosamente desferidos, pode produzir queimaduras muito dolorosas, que Maria Felipa e suas companheiras teriam dado nos soldados portugueses.
“A narrativa fala de um grupo de mulheres que começaram a dançar na praia, de modo insinuante”, conta o historiador.
“Quando os portugueses se aproximaram, elas teriam se lançado sobre eles com os molhos de cansanção ocultados sob os arbustos.”
Há outras versões sobre como elas esconderam os galhos da planta. Segundo uma delas, Maria Felipa e suas companheiras aproveitavam suas roupas largas para ocultar armas, principalmente peixeiras (facas), que usavam em seu trabalho. Elas também misturavam folhas de cansanção junto a flores e outros ramos comuns, que faziam com que parecessem apenas enfeitadas. Mas na verdade, estavam vestidas para matar.
O segundo episódio citado por Moura é o incêndio de navios portugueses causado por tochas, lançadas de uma canoa conduzida por Maria Felipa e suas companheiras, impondo assim perdas às tropas inimigas.
O quadro Alegoria ao 7 de Janeiro, de autoria de Mike Sam Chagas, professor da Escola de Belas Artes da UFBA, pintado em 2019, retrata a batalha de 7 de janeiro de 1823.
Na obra, reproduzida acima, a personagem Maria Felipa aparece no centro, com uma blusa clara que deixa os ombros à mostra e uma tocha acesa em uma das mãos.
“À sua esquerda, outra mulher empunha um ramo de ervas — justamente o cansanção”, descreve Moura.
“Veem-se personagens índios, negros e brancos. No canto superior esquerdo, o Forte de São Lourenço, onde está guardado o quadro. No canto superior direito, os navios portugueses.”
O problema é que não há provas históricas destes dois episódios.
“Não há registros sobre a tal ‘sedução’ com dança”, diz o pesquisador independente itaparicano Felipe Peixoto Brito.
“Além do mais, considerando o clima de beligerância, e profundo preconceito das tropas europeias (até mesmo contra brancos nascidos no Brasil), jamais dariam lugar a tal cena. A narrativa me parece recente, e fruto de um sexismo, em que uma mulher só poderia vencer homens em um confronto se valendo do desejo do seu corpo, de traição ou de veneno.”
No caso dos navios portugueses incendiados, Brito diz que, de fato, alguns foram queimados e destruídos pelas forças itaparicanas, entrincheiradas ao longo de mais de 8 km entre a Praia do Mocambo, o povoado de Itaparica, e a praia de Amoreiras.
“A ilha foi atacada por mais de 40 navios armados de diferentes tamanhos”, conta.
“Apesar da grande perda de soldados e marinheiros portugueses (cerca de 200, entre mortos e feridos), sabemos que o incêndio de todos eles não ocorreu, sendo fruto do exagero ou de confusão narrativa, pois isso representaria um massacre vergonhoso e de grandes proporções para época.”
Com outras palavras, é o que também diz Magalhães. Ele observa que, se uma única embarcação tivesse sido destruída, seria necessário fazer os competentes relatórios. Destruir dezenas delas colapsaria a marinha portuguesa da época, e os responsáveis por uma falha dessa natureza deveriam responder aos superiores ou comissão militar.
“Uma única canhoneira causou imensa comoção ao atacar a vila de Cachoeira, em junho de 1822”, lembra.
“Considerado o estrago que dezenas de barcos poderiam realizar, deve-se ponderar o que representaria, à época, a mítica ação de incendiá-los. Alguém teria que responder pelo fiasco.”
O historiador Jaime Nascimento é mais radical sobre a existência de Maria Felipa.
“Ela não existiu”, garante. “É uma personagem de ficção criada pelo escritor itaparicano Ubaldo Osório, avô de João Ubaldo Ribeiro, que foi apropriada por segmentos do ‘Movimento Negro’ e transformada em ‘Heroína da Independência’ de forma bizarra e desonesta com a história.”
De qualquer forma, os estudos continuam e a percepção sobre Maria Felipa vem mudando nos últimos anos.
No primeiro caso, Magalhães diz que algumas novidades têm aparecido, “fruto da investigação do pesquisador independente Felipe Peixoto Brito, possivelmente quem mais conhece a documentação de Itaparica atualmente”.
“Certa Maria Felipa é mencionada em documentos de 1832 e 1834”, afirma.
No primeiro, ela está registrada como solteira e no segundo, tem uma filha.
“Então, é possível que exista alguém, para além do mito, que pode ser melhor compreendida por meio de exaustiva busca em velhos papéis”, acredita Magalhães.
O próprio Brito diz que isso prova apenas a existência dela, não de episódios atribuídos a ela.
Em relação à percepção sobre a personagem, isso pode ser notado nas comemorações da independência.
“Nos cortejos do 2 de julho, em Salvador, e de 7 de janeiro, em Itaparica, há sempre pelo menos uma mulher — jovem ou menina — caracterizada como Maria Felipa”, observa Moura.
Neste ano, no cortejo do 2 de julho, em Salvador, um pequeno grupo de um Candomblé Angola trazia, na frente, uma mulher corpulenta, de torço e blusa branca com os ombros à mostra.
“Enfim, é uma personagem que se consagrou no repertório das comemorações”, diz Moura.
“Em escolas de Itaparica, a personagem é entusiasticamente encenada em atividades com crianças e adolescentes.”
Seja lenda ou real, para muitos estudiosos Maria Felipa não deixa de ter importância histórica.
“Não é difícil compreender o entusiasmo da população de Itaparica em torno de sua grande personagem feminina, que se difundiu e intensificou nos últimos quinze anos”, diz Moura.
“Uma mulher do povo, negra, marisqueira, transpõe o limite de sua condição de subalternidade e se constitui como sujeito político proeminente.”
Para Brito, Maria Felipa é “um símbolo maior das classes oprimidas, na disputa eterna que é o passado”.
“Reconhecer a participação dela e da ‘gente comum’ do Recôncavo Baiano nessa luta, é fundamental para a construção de um país que quer superar o racismo e a misoginia”, defende.
“Os questionamentos acerca disso jogam luz sobre o ceticismo, a acomodação e o desinteresse da historiografia clássica, pela memória dos oprimidos, ao mesmo tempo que revelam novos caminhos, criam sonhos e orgulham aqueles que se sentiam à margem desse processo, como eu, um jovem pesquisador, negro e filho de Itaparica.”
O historiador André Carvalho, especialista em história da Bahia e ex-diretor do Museu Memorial da Câmara Municipal do Salvador, pensa de maneira semelhante. De acordo com ele, durante muitos anos a trajetória dessas mulheres negras baianas, a exemplo de Felipa, permaneceram anônimas na história da Bahia e do Brasil.
“Eram lembradas apenas nos conteúdos escolares por referências negativas, quando citadas como baderneiras, arruaceiras e bandidas, criando assim uma identidade indissociável da mulher negra ao crime”, critica.
“Uma imposição racista histórica, que leva a figura feminina negra a ter suas características estéticas marginalizadas e riscadas da existência.”
Ele acredita que Maria Felipa timidamente hoje em dia vem sendo inscrita na história e nos espaços da sociedade. Ela também vem sendo inserida não só nas comemorações oficiais do 2 de julho, como também no 7 de setembro.
“Como o desfile do Grito dos Excluídos, reconhecendo que ‘muitas surras de cansanção’ e queima de navios ainda serão necessárias para se lembrar das heroínas negras na proclamação do 2 de julho, a verdadeira independência do Brasil”, avalia.
Tendo existido ou não, e mesmo com a história praticamente desconhecida, Maria Felipa de Oliveira foi declarada, em 26 de julho de 2018, Heroína da Pátria Brasileira pela Lei Federal nº 13.697, tendo seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, que se encontra no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.