Santa Clara: quem foi santa que, conforme a tradição, acalma chuvas em troca de ovos

Edison Veiga

Imagem de Santa Clara feita por Simone Martini
Imagem de Santa Clara feita por Simone Martini (1312-1320), que fica na basílica de São Francisco em Assis. Itália

Naquela que foi a primeira viagem internacional de seu pontificado, papa Francisco fez um pedido um tanto inusitado ao prefeito carioca Eduardo Paes. A chuva não dava tréguas há quatro dias e causava transtornos aos participantes da Jornada Mundial da Juventude, ocorrido no Rio em julho de 2013.

Francisco apegou-se a uma antiga tradição católica popular. Orientou Paes que mandasse uma cesta de ovos a uma freira, para que esta colocasse aos pés de Santa Clara.

“Isso realmente foi feito, a informação foi confirmada pelas [religiosas] clarissas. Um assessor da prefeitura levou a cesta e fez a oferta à Santa Clara”, diz o jornalista Victor Hugo Barros, membro da Academia Brasileira de Hagiologia.

“E ao que tudo indica, deu certo, já nos dias finais [do evento] o sol clareou. Pelo jeito Santa Clara deu um jeito com São Pedro lá no céu…”, comenta Barros. “Mas a gente pode ver que até o papa Francisco é adepto dessa tradição popular de ofertar ovos para a santa.”

Coincidência ou não, realmente no dia seguinte ao episódio, o tempo limpou no Rio. Mas o fato ilustra como a fama dessa jovem em uma pequena cidade da península itálica no século 13 segue sendo grande, seja nos altares católicos, seja nas simpatias populares.

Autor do livro ‘Os Santos de Cada Dia’, o escritor e pesquisador J. Alves explica a origem da tradição de se oferecer ovos para a santa. “A versão mais difundida hoje é aquela em que as galinhas poedeiras do convento [onde vivia Clara] foram dizimadas por uma peste”, narra ele.

Ocorre que os ovos eram especialmente úteis porque com eles as freiras preparavam doces para vender — com o dinheiro arrecadado, faziam suas obras sociais. Clara então implorou ajuda a Deus. “Chegou então no mosteiro uma caravana de moradores de uma vila devastada por uma tempestade. Santa Clara os acolheu e os abrigou”, conta Alves.

“Em forma de gratidão, eles ofereceram suas galinhas e ovos. Feliz e agradecida, Santa Clara pediu a Deus que parasse a chuva naquela região, o que lhe foi concedido”, prossegue o escritor. “Assim nasceu a tradição de levar ovos caseiros para um convento de Clarissas, a fim de obter um bom tempo.”

Barros acrescenta que, segundo essa antiga história, Clara teria avisado os viajantes que o sol faria a enchente de seu povoado “desaparecer em 15 dias”. “E se voltasse a ocorrer, bastava jogarem ovos no telhado e fazerem uma oração a Deus, pensando no convento [das clarissas]”, pontua ele. “Isso deu origem a essa lenda de que Santa Clara seria uma grande protetora contra chuvas.”

O costume disseminou-se principalmente entre noivas preocupadas em ter um tempo bom no dia do casamento. “As que não querem chuva no grande dia levam ovos para um convento regido pelas irmãs clarissas. Mas a entrega tem de ser feita por uma pessoa do sexo feminino e os ovos deixados no altar de Santa Clara um dia antes da cerimônia. Isso garantiria que o sol esteja brilhando na festa”, conta Barros.

Ao longo da história, há registros de que ela era invocada por navegadores, principalmente os portugueses, para acalmar tempestades.

Na MPB, Jorge Ben Jor rendeu-se à tradição. Em 1981, lançou ‘Santa Clara Clareou’, justamente apoiado por essa ideia. “Santa Clara, clareou/ E aqui quando chegar vai clarear/ Os meus caminhos”, diz trecho da canção.

Igreja da Porciúncula, erguida no século IV em Assis
Igreja da Porciúncula, erguida no século IV em Assis. Era nela que os primeiros franciscanos se reuniam para rezar. Hoje a igrejinha está dentro de uma igreja maior, construída de forma a protegê-la

Antes, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) também havia citado essa característica de Clara em seu poema ‘Oração para Aviadores’. “Santa Clara, clareai/ Estes ares./ Dai-nos ventos regulares,/ de feição./ Estes mares, estes ares/ Clareai. // Santa Clara, dai-nos sol.”, diz trecho.

Oficialmente, Santa Clara é reconhecida pela Igreja como a padroeira da televisão — reconhecimento concedido pelo papa Pio 12 (1876-1958) em 1958. E essa curiosa propriedade, mesmo ela tendo vivido sete séculos antes do advento de tal tecnologia, também encontra lastro em uma narrativa popularizada na época.

“No final da vida, ela desejava muito participar da missa de Natal na igreja, mas por causa da saúde [ela estava acamada], não poderia estar presente”, relata frei Francisco Lopes Neto, da Ordem dos Frades Menores. “Pediu para estar presente espiritualmente.”

E então teria a cerimônia teria aparecido a ela, como uma projeção miraculosa, em uma das paredes de seu quarto. “Foi uma espécie de televisão espiritual, séculos antes da invenção da televisão”, comenta Barros. “Quando as demais irmãs retornaram ao convento, a própria Santa Clara teria feito questão de narrar tudo o que havia ocorrido na missa, com os pormenores que só quem estivesse no templo seria capaz de fazê-los.”

Caetano Veloso, em 1991, inspirou-se na história para sua música ‘Santa Clara, Padroeira da Televisão’. “Santa Clara, padroeira da televisão/ Que a televisão não seja o inferno interno, ermo/ Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada)/ Que a televisão não seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo que ela é/ De poesia.”, diz uma das estrofes.

A seguidora de Francisco

Clara de Assis (1194-1253) foi uma mulher de família nobre que, encantada com o radicalismo de Francisco (1181 ou 1182-1226), decidiu seguir seu exemplo: abandonar a vida de posses e entregar-se ao cuidado com os pobres.

Segundo relatos antigos, era um moça muito bonita e vinha sendo preparada, por sua família, para arranjar um bom casamento — que garantiria a ela uma vida de riqueza e, aos seus parentes, o pagamento de um dote excelente.

Santa Clara em imagem na Igreja da Gruta de N.Sra de Lourdes, em Guaramiranga
Santa Clara em imagem na Igreja da Gruta de N.Sra de Lourdes, em Guaramiranga

Mas, ainda adolescente, ela teria ouvido algumas pregações de Francisco e seus companheiros pelas ruas de Assis. Às escondidas, passou a apoiar o grupo, doando alimentos e ajudando-os naquela missão.

A partir de 1211, ela passou a se encontrar assiduamente com Francisco, enxergando nele um pai espiritual, um mentor. Aos 18 anos, ela decidiu sair de casa. “Tinha 18 anos quando fugiu e foi ao encontro de Francisco”, narra J. Alves.

“Tornaram-se amigos. Naquele mesmo dia, Clara deixou que Francisco raspasse sua cabeça e se consagrou totalmente a Deus, para uma vida de absoluta pobreza. Além de amigo fraterno, Francisco tornou-se seu mestre e guia espiritual, seu inspirador.”

O ato de raspar a cabeça significava o despojamento na mudança para a nova vida. “Clara escolheu Francisco como mestre de caminhada, um diretor espiritual”, salienta Barros. “Ele disse para ela se entregar a Deus completamente.”

A fuga da casa da família ocorreu, segundo os relatos antigos, pela “porta dos mortos”. Trata-se de uma saída dos fundos, comuns em casarões de nobres daquele tempo, que só era utilizada para a retirada de defuntos. “Isso indica que ela tomou uma posição radical, de deixar para trás a segurança que ela tinha na vida abastada”, interpreta Barros.

Seus familiares não aceitaram tranquilamente a decisão No dia seguinte tentaram resgatá-la junto aos religiosos, mas ela, abrigada dentro de uma igreja, teria se agarrado às toalhas do altar para que não fosse dali retirada.

Uma ordem feminina, com regras femininas

Acabou vivendo em diversos conventos femininos até criar a sua própria instituição. “Seguindo os passos de Francisco, ela abandonou a vida confortável e abraçou a pobreza evangélica absoluta, fundando a chamada inicialmente Ordem das Damas Pobres”, pontua J. Alves. “Como Francisco de Assis, Clara arrastou atrás de si, não apenas familiares, como irmã, mãe e prima, mas também muitas jovens das famílias mais importantes de Assis, desejosas de um novo sentido para suas vidas.”

“Ela e suas companheiras passaram a viver do trabalho de suas mãos e das esmolas que recebiam e distribuíam aos pobres e indigentes”, afirma Alves.

Frei Lopes Neto ressalta a personalidade forte de Clara. “Em um período em que a mulher era tão colocada de lado, desprezada, ela precisa ser reconhecida”, ressalta o religioso.

Ela acabou sendo a fundadora do ramo feminino da ordem franciscana, a Ordem de Santa Clara ou Ordem das Clarissas. Que se expandiu rapidamente. “Em 1228, já eram 24 os mosteiros que seguiam o carisma de Santa Clara, segundo levantamento da época”, cita Barros. No ano da morte de clara, em 1253, o número havia saltado para 111.

Basílica de Santa Clara, em Assis, construída entre 1257 e 1265. É ali que está sepultada a santa
Basílica de Santa Clara, em Assis, construída entre 1257 e 1265. É ali que está sepultada a santa

“Depois da morte de Francisco [em 1226], Clara continuou a obra fransciscana”, afirma Barros. Lopes Neto compara a importância de Clara para o fransciscanismo ao papel que teve São Paulo para a difusão do cristianismo. “Foi ela quem deu carne, sustento, brigou, batalhou e deu testemunho de vida para que a Igreja, a hierarquia e o movimento eclesial, não se esquecesse do legado de Francisco”, diz.

“Sua insistência e sua força às vezes destoam da imagem feminina que às vezes o cinema nos faz ver [ao retratá-la]. Ela era uma mulher muito forte, de fibra, que sabia dizer não, sabia dizer sim. E, por isso mesmo, foi uma grande mãe, a grande sustentadora do carisma franciscano”, completa Lopes Neto.

Em um gesto que parecia muito à frente de seu tempo, ela tomou para si a tarefa de escrever a “forma de vida” da ordem que havia fundado. Ou seja: o conjunto de regras que deveria nortear o dia a dia de todas aquelas que escolhessem aderir a um convento das clarissas.

“Ela entrou para a história por ter sido a primeira mulher na história da Igreja a escrever uma regra de vida, esse conjunto de diretrizes e ensinamentos para a comunidade religiosa”, frisa Barros. “Foi um gesto bastante ousado, porque o primeiro esboço havia sido escrito pelo papa Gregório 9º [(1145-1241)]. Ela assumiu o trabalho e lutou até o fim da vida para que a regra fosse aprovada pela Igreja.”

Isso teria ocorrido apenas em 9 de agosto de 1253. Dois dias antes de sua morte.

“Seu funeral teve a presença do papa [Inocêncio 4º (1195-1254)] e de cardeais, algo pouco usual naquela época”, comenta Barros.

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