Os idiomas que sobreviveram ao colapso das civilizações
Sophie Hardach
Sumérios, maias e outros povos antigos criaram textos que duraram centenas e até milhares de anos — e nos ensinam a criar mensagens imortais para os leitores de um futuro distante.
Há mais de 2.000 anos, em um templo na cidade de Borsippa, na antiga Mesopotâmia (onde hoje fica o Iraque), um estudante fazia sua lição de casa. Seu nome era Nabu-kusurshu e ele estava estudando para ser o cervejeiro do templo.
Suas atribuições incluíam não só a produção de cerveja para oferendas religiosas, mas também aprender a manter registros administrativos em tábuas de argila em escrita cuneiforme, além de preservar os hinos antigos fazendo cópias das tábuas já desgastadas.
Essas tarefas diárias, aliadas à sua devoção à produção de cerveja, à escrita e ao conhecimento, fizeram com que ele se tornasse parte de um legado literário extraordinariamente duradouro.
A escrita cuneiforme já existia há cerca de 3.000 anos quando Nabu-kusurshu empunhou pela primeira vez seu estilete de junco. Ela foi inventada pelos sumérios, que a usaram inicialmente para registrar as rações de alimentos — e também de cerveja — pagas aos trabalhadores ou fornecidas para os templos.
Ao longo do tempo, os textos sumérios ficaram mais complexos. Eles registravam belos mitos e canções, incluindo uma em celebração à deusa da cerveja, Ninkasi, e seu habilidoso uso do “barril de fermentação, que faz um som agradável”.
Quando o idioma sumério começou a ser gradualmente abandonado e substituído pelo acadiano, mais moderno, os escribas inteligentemente escreveram longas listas de símbolos nos dois idiomas, criando essencialmente os primeiros dicionários, para garantir que a sabedoria das tábuas mais antigas fosse sempre compreendida.
A geração de Nabu-kusurshu — que teria falado acadiano ou talvez aramaico na sua vida diária — foi uma das últimas a usar a escrita cuneiforme. Mas ele provavelmente acreditava que era apenas um jovem escritor comum em uma longa linhagem de escritores, preservando a escrita cuneiforme para muitas outras gerações, sob o olhar benevolente de Nabu, o deus da escrita e “escriba do universo”.
Ele copiava fielmente as tábuas antigas, anotando, por exemplo, que um sinal sumério pronunciado como “u” podia significar presente de casamento, ladrão ou nádegas. Ele escrevia nas tábuas que fazia as cópias “para seu próprio estudo”, talvez como treino ou trabalho escolar, e as colocava no templo como oferenda.
“Ele está aprendendo a escrever, aprendendo essas listas, entre outras coisas, e dedicando seu trabalho ao deus Nabu e ao templo”, afirma Jay Crisostomo, professor de civilizações e idiomas do Oriente Próximo da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
Crisostomo estudou profundamente as tábuas de Nabu-kusurshu. E foram suas humildes listas, silenciosamente escritas na sombra de um enorme zigurate — um templo em forma de pirâmide com degraus —, que fizeram com que Nabu-kusurshu se tornasse imortal.
Muitos de nós sonhamos em escrever uma mensagem que possa ser lida daqui a milhares de anos, talvez para compartilhar poesia com as gerações futuras ou para avisá-los sobre os riscos escondidos nos resíduos nucleares.
Ocorre que este não é um mero exercício intelectual. Houve, no passado, pessoas que criaram mensagens imortais — ou pelo menos, que duraram por muito tempo — com sucesso. E algumas dessas pessoas, como Nabu-kusurshu, chegaram a nos deixar uma chave para civilizações inteiras.
No século 19, os estudiosos lutavam para decifrar um idioma misterioso encontrado em tábuas carbonizadas e rachadas, nas ruínas de templos e palácios da Mesopotâmia cobertos por areia: o sumério, completamente perdido e esquecido.
A maior dificuldade desse desafio foi o fato de que o sumério não tem relação com nenhum outro idioma conhecido. Mas os estudiosos haviam recentemente decifrado o acadiano, graças às suas similaridades com idiomas vivos, como o árabe e o hebraico. E também encontraram as listas de palavras em sumério e acadiano elaboradas em argila pelos antigos escribas, que podiam ser usadas como dicionário.
Entre elas, um conjunto de tábuas se destacou pela sua preservação impecável e “boa e distinta escrita”: as tábuas de Nabu-kusurshu. Elas foram encontradas perto de tijolos e pilares quebrados quando os arqueólogos abriram os salões, há muito tempo enterrados, do templo de Borsippa, perto de 1880.
“Muito do que sabemos sobre os sumérios deve-se a esse homem, Nabu-kusurshu”, afirma Crisostomo. Ele acredita que o jovem escriba, que teria cerca de 20 anos de idade, tenha produzido quase um quarto de todas as cópias conhecidas de uma lista de sinais bilíngues que foi fundamental para decifrar o idioma.
Para dar uma ideia da sua importância, suas listas ajudaram a decifrar registros de três milênios de história dos sumérios, incluindo seu uso pioneiro da roda e da hora com 60 minutos.
Ao todo, há mais de um milhão de textos em escrita cuneiforme do antigo Oriente Próximo em diferentes idiomas, que hoje podem ser lidos graças às indicações imortais deixadas por escribas comuns, como Nabu-kusurshu.
O que ajudou essas mensagens a sobreviver e preservar seu significado por tanto tempo? E como podemos usar esse conhecimento para preparar nossas próprias mensagens para os leitores do futuro?
A maior parte das ideias e dos pensamentos expressos pelos seres humanos raramente sobrevive ao momento presente. A história é repleta de referências ao que se perdeu — não apenas mensagens individuais, mas idiomas inteiros. E, com eles, foram-se as recordações das sociedades que os falavam.
Quem se lembra do gútio, um idioma do mundo antigo, por exemplo?
Milhares de anos atrás, alguém deu a um tradutor gútio um pagamento de cerveja, segundo um recibo sumério de argila. E isso é tudo o que sabemos sobre os gútios. Todos os sentimentos do povo gútio, tudo o que eles queriam contar para o mundo — tudo foi perdido. Permanecem apenas algumas descrições pouco elogiosas, feitas pelos sumérios.
Por outro lado, existem mensagens que resistiram a séculos de guerras, invasões e desastres naturais. Embora os espanhóis tenham destruído montanhas de livros dos maias, por exemplo, sua escrita sobreviveu em raros manuscritos em cascas de árvores e monumentos de pedra, mantendo vivos os mitos e as profecias antigas.
Qual o segredo dessa extraordinária longevidade literária? Fiz esta pergunta a três especialistas em alguns dos textos e idiomas mais antigos do mundo e também perguntei como eles escreveriam suas próprias mensagens para o futuro, com base nas suas percepções.
Todos eles mencionaram, é claro, certos aspectos materiais. A argila e a pedra são mais duráveis que o papel ou os métodos de gravação digital. O clima e o ambiente correto também ajudam na preservação: as tábuas em escrita cuneiforme, na verdade, eram muitas vezes cozidas e endurecidas pelo fogo de cidades sendo atacadas.
Mas as percepções mais fascinantes dos especialistas foram sobre os próprios escritores.
Quando falamos sobre os escritos de um passado distante, é tentador retratá-los como uma espécie de conjunto acidental de fragmentos históricos. O legado de Nabu-kusurshu, por exemplo, pode parecer um acaso da história — as tábuas do cervejeiro que se tornaram uma espécie de Pedra de Rosetta.
Mas os estudiosos indicam que nem tudo se deve à sorte e à coincidência. Existem certos hábitos, valores e decisões que podem não garantir exatamente a imortalidade literária, mas, pelo menos, aumentam as suas possibilidades.
É claro que a melhor forma de testar esses fatores seria realizar um experimento controlado, com diferentes escritos sendo expostos a desafios — como o colapso da civilização — para vermos qual deles sobrevive. Não temos nada parecido com isso na história, mas temos algo que se aproxima desta situação.
O povo que esqueceu como se escreve
Imagine duas ilhas no mar Mediterrâneo, na Idade do Bronze, com ovelhas pastando pacificamente entre os olivais. Nas duas ilhas, há pessoas ocupadas, escrevendo em tábuas de argila.
Uma dessas ilhas é o Chipre, perto da costa do Oriente Próximo. A outra é Creta.
Na ilha de Creta e na Grécia continental, existe uma elite: são os micênicos. Eles escrevem em grego, usando uma escrita chamada Linear B.
Tudo vai bem até que, perto do ano 1400 a.C., um desastre atinge os micênicos. Primeiro, o seu palácio em Creta é destruído. E, cerca de 200 anos mais tarde, os palácios no continente têm o mesmo destino.
O Chipre também é atingido por uma catástrofe e os historiadores até hoje discutem exatamente o que aconteceu. A ilha sofre alguma espécie de colapso econômico, cidades são abandonadas e novos grupos de pessoas chegam do exterior.
No Chipre, mesmo com a vida se alterando dramaticamente, os moradores locais continuam a escrever e experimentar novas técnicas, tomadas emprestadas de diferentes culturas vizinhas que também praticam a escrita.
Mas, em Creta e na Grécia continental, agora sem os palácios, as pessoas param de escrever. A escrita morre. Não apenas a Linear B, mas também o conhecimento fundamental da escrita parece desaparecer. É como se toda uma sociedade esquecesse como se escreve.
Isso é particularmente surpreendente porque foi em Creta que surgiram os escritos mais antigos da Europa, datados de até pelo menos 1800 a.C. Mas todo aquele legado histórico é varrido com o colapso da elite micênica.
E, quando as pessoas começam a escrever de novo na Grécia, séculos depois, elas usam uma escrita totalmente diferente – o alfabeto, importado do exterior. Sua própria tradição mais antiga é perdida para sempre.
“Na Grécia, após a perda dos palácios micênicos, simplesmente parece não ter havido escrita nenhuma por algum tempo”, afirma Philippa Steele, coordenadora de pesquisa em estudos clássicos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e especialista nos antigos escritos de Creta, Chipre e da Grécia.
“Entre 1200 [a.C.] e perto do século 8 [a.C.], não há nada, até onde sabemos. Enquanto isso, o Chipre seguiu escrevendo por todo aquele período”, explica Steele. Mas o que causou a diferença?
É claro que não sabemos ao certo. Mas Steele acredita que pode ter a ver com a forma como as duas comunidades trataram a técnica da escrita.
Rabiscos compartilhados
No Chipre, existem muitas evidências arqueológicas do que Steele chama de “reflexos de escrita”: rabiscos de pessoas comuns que adaptaram a escrita para seus próprios usos, como comerciantes para marcar suas vasilhas.
Steele indica que esses experimentos informais disseminados podem ter aumentado a resistência da escrita. Mesmo após convulsões, destruição e a chegada de novas pessoas, os moradores locais do Chipre continuaram a escrever sobre pequenas tábuas de argila que ofereciam aos seus deuses.
Mais tarde, eles também escreveram textos diferentes próximos uns aos outros — emparelhando, por exemplo, sua escrita silábica cipriota com a dos fenícios. Este processo acabaria ajudando a decifrar o idioma local.
Mas, em Creta e na Grécia continental, a escrita Linear B nunca se expandiu para o restante da sociedade, a julgar pelas descobertas arqueológicas, segundo Steele. Os escribas micênicos eram anônimos e sua arte não era particularmente valorizada.
“Não existe nenhuma ilustração de pessoas escrevendo, nem ilustrações de objetos envolvidos na escrita”, explica ela.
Também não havia grandes textos em Linear B escritos nas fachadas rochosas, nem nas paredes dos palácios, que pudessem ter lembrado às pessoas que existia essa ferramenta valiosa chamada escrita.
Ao contrário, a escrita Linear B vivia escondida no interior dos palácios. E, quando os palácios caíram, ela não tinha onde pudesse sobreviver.
Para Steele, “quando ler e escrever é algo restrito, o sistema de escrita pode desaparecer mais facilmente se o seu contexto de uso deixar de existir”.
Ela argumenta que estas percepções do passado podem nos ajudar a resolver problemas importantes no presente, como salvar os sistemas de escrita ameaçados dos dias atuais.
Mas o sistema Linear B teve uma sobrevida. Os estudiosos levaram um longo tempo para decifrá-lo, pois ele não foi escrito ao lado de nenhum texto remanescente. Mas eles acabaram conseguindo nos anos 1950. E, hoje, é possível ler grande parte desses textos.
Perguntei a Steele como ela escreveria uma mensagem para a eternidade. Ela me fornece não só uma resposta, mas uma mensagem real, na forma de uma tábua.
Ela é feita de argila, para maior durabilidade, “e, idealmente, deveria ser queimada”, embora ela usasse argila de modelagem seca naturalmente.
A mensagem é multilíngue, “para que haja maior possibilidade de que pelo menos um dos idiomas ainda seja falado no futuro distante — e uma mensagem multilíngue oferece mais indicações para os decifradores do futuro que uma mensagem em um único idioma”, explica Steele.
Quando falamos em multilíngue, queremos dizer que a mesma mensagem foi escrita em diversos idiomas lado a lado, como na Pedra de Rosetta e nas tábuas de Nabu-kusurshu.
A professora escolheu uma mensagem simples: “meu nome é Pippa Steele e escrevi isto em Cambridge no ano de 2022”.
Com a ajuda de alguns amigos, Steele escreveu em inglês, espanhol, chinês e árabe, que são os idiomas mais falados no mundo e também são bem representados localmente. “É claro que eu poderia ter acrescentado vários outros”, explica ela.
Mensagens dos maias, esperando para serem lidas
Uma possível lição das antigas civilizações de Creta e Chipre é que, para escrever uma mensagem que dure para sempre, uma boa ideia é começar garantindo que as pessoas possam entendê-la no presente.
Como ressaltam frequentemente as pessoas que trabalham em decifração, este foi o propósito original da maioria dos escribas: a comunicação. As civilizações antigas normalmente não pretendiam criar um código indecifrável, muito pelo contrário.
“Um código existe para que fique secreto e somente possa ser lido por alguns grupos”, afirma Christian Prager, especialista em maia clássico da Universidade de Bonn, na Alemanha. Ele faz parte de uma equipe que está compilando um dicionário e banco de dados online sobre a escrita maia.
“Com a escrita maia, que era tão presente para o público nas estelas [grandes pilares de pedra com inscrições] e construções, acontece o contrário. Ela estava ali para ser compreendida”, afirma ele.
A escrita maia foi usada por cerca de 2.000 anos. Os idiomas dos maias ainda são falados no México, Belize, Honduras e Guatemala.
Os primeiros hieróglifos maias datam de cerca de 250 a.C. As pessoas continuaram a escrever em segredo mesmo depois da conquista espanhola e até o final do século 17.
Atualmente, cerca de 60% dos hieróglifos foram decifrados — o suficiente para entender a essência de todos os textos, segundo Prager.
O processo para entender cada símbolo pode ser lento e trabalhoso, mas os estudiosos modernos são auxiliados por escribas maias mortos há séculos, que acrescentaram pequenos marcadores aos seus símbolos para oferecer uma indicação do seu significado.
Recentemente, um desses marcadores — o que significa “pedra” — ajudou Prager e seus colegas a descobrir o símbolo de “esculpir uma nova estela”. A relação com os idiomas maias vivos também contribuiu muito para decifrar este símbolo.
Embora poucas pessoas no mundo maia soubessem escrever, Prager acredita que um número relativamente grande de pessoas conseguia entender mensagens básicas, como o retrato de um rei e seu nome exibidos em uma estela na praça do mercado.
“Tenho certeza de que eles conseguiam dizer ‘este é o nome do rei'”, afirma Prager. “Quando damos cursos sobre a escrita maia hoje em dia, em questão de três dias você consegue ler a escrita maia. Talvez não os detalhes linguísticos específicos, mas você consegue reconhecer sequências de símbolos.”
Esculpir o seu nome em uma pedra grande, idealmente ao lado de um autorretrato, parece ser um formato realmente atemporal, com significado permanente, não apenas no mundo maia. Os nomes dos reis e a palavra “rei” são frequentemente as primeiras a serem descobertas em escritos não decifrados.
Organismo vivo
A escrita maia pode ser imortal, não apenas de forma figurativa, mas também literalmente. Para os maias, ela tinha vida própria.
“A escrita era um organismo próprio”, explica Prager. “Você pode ver isso quando examina os hieróglifos, existe algo animado neles. Os maias clássicos consideravam animados muitos objetos do dia a dia, incluindo a escrita. As estelas recebiam nomes individuais. Isso diz muito sobre o valor que elas tinham e o quanto elas eram, e são, parte da cultura.”
De fato, quando uma estela deixava de ser usada, ela recebia rituais funerários. E essas crenças mais profundas têm consequências práticas úteis com relação à leitura de textos maias clássicos hoje em dia.
Os escribas maias mantiveram as formas dos símbolos exatamente iguais, desde as primeiras inscrições em pedra até os últimos livros em cascas de árvores, por exemplo. Prager acredita que, provavelmente, era o desejo dos escribas “usar um sistema de escrita inalterado, como fizeram seus ancestrais”.
“É impressionante, é algo que você encontra muito raramente [entre as escritas antigas]”, afirma o especialista. E é conveniente, pois significa que, se você souber a escrita, poderá ler documentos maias de todos esses períodos.
Quando perguntei a Prager como ele escreveria uma mensagem para que pudesse ser lida daqui a milhares de anos, ele respondeu com uma escala e ambição em nível maia: “A mensagem teria que ser monumental e feita de pedra, para suportar o vento, o clima e os seres humanos!”
Para ele, o melhor exemplo de uma mensagem duradoura é a Grande Muralha da China. Mesmo na época da sua construção, ela mostrava aos inimigos as fronteiras do domínio chinês e o poderio político e econômico de quem a construiu.
Para sua própria mensagem, Prager imagina “construções monumentais espalhadas por um terreno e que não possam ser apagadas”, com um texto inscrito em todos os idiomas modernos e antigos, gravado na megaconstrução a cada 100 metros. “Uma dessas mensagens sobreviverá às catástrofes futuras”, conclui ele.
A lista do cervejeiro
Na época em que Nabu-kusurshu, o jovem cervejeiro de Borsippa, estudava com suas listas perto de 450 a.C., muitos dos idiomas que dominaram o Oriente Próximo já haviam desaparecido, incluindo línguas antes poderosas, como o hurrita e o hitita.
Também o amorita, idioma falado pelos poderosos reis nômades da Síria antiga e mencionado em cartas antigas como tendo sido um idioma muito útil para se aprender, desapareceu sem deixar um traço de escrita.
E, enquanto isso, o sumério — considerado o menos prático de todos eles, já que havia caído em desuso no dia a dia – sobreviveu por muito mais tempo. A partir de cerca de 2000 a.C., “ninguém falava sumério, mas o idioma ainda era escrito. E isso é parte da minha extrema fascinação por ele”, afirma Jay Crisostomo. “O que fez com que ele continuasse?”
A resposta pode estar naqueles primeiros sinais cuneiformes, pressionados na argila pelos sumérios. Crisostomo explica que, desde o princípio, a escrita foi associada aos sumérios. Ao longo do tempo, foi mantida sua associação a uma cultura antiga e seus deuses, cidades e lendas, além do poder decorrente dessa cultura.
Sucessivos reis usaram esta associação para legitimar seu próprio poder, mesmo se eles próprios não tivessem antepassados sumérios. Eles chegaram a compor canções em sumério prevendo que suas palavras seriam valorizadas por pessoas “no futuro distante”.
E, colecionando tábuas, divulgando seu conhecimento sobre os sumérios, contratando escribas ou sendo retratados com um estilete no cinto, eles também se tornaram parte dessa linhagem imortal.
“A questão é de reivindicar a autoridade que remonta ao início da escrita e do conhecimento”, afirma Crisostomo.
Essa herança literária estava presente em toda parte, incluindo hinos e profecias, mas também em canções populares muito antigas. Como no mundo maia, a relação entre a escrita e o poder era anunciada com inscrições monumentais. As tábuas de Nabu-kusurshu eram mantidas e protegidas por toda uma cultura.
Mas talvez houvesse também um elemento de escolha individual. Nabu-kusurshu parece ter sentido orgulho pela sua escrita e tido o cuidado de aperfeiçoá-la, pois ela era excepcionalmente clara.
Crisostomo está vasculhando os museus do mundo em busca de mais tábuas de Nabu-kusurshu. Já foram descobertas cerca de 24 delas.
Ele estudou todos os detalhes da escrita do cervejeiro, desde como ele modelava seus sinais até o espaçamento das linhas. “São coisas como estas que fazem você começar a se sentir como se conhecesse aquelas pessoas”, segundo o professor.
Apesar do seu amor pela linguagem escrita, Crisostomo afirma que sua mensagem para o futuro provavelmente seria uma imagem, para que “pudesse transcender a necessidade do idioma” e evitar as armadilhas da decifração.
Criando mensagens ‘à prova de futuro’
Parece, então, que uma boa regra é fazer sua mensagem para o futuro suficientemente gigantesca para que não possa ser ignorada – ou tão pequena que possa deslizar pela história quase sem ser notada, talvez protegida pela sua aparente pouca importância.
Uma indicação visual ou contextual parece ajudar, seja acrescentando uma imagem ou colocando-a em algum lugar relevante para o seu significado, como um templo ou monumento.
E os estudiosos parecem achar óbvio o uso de um idioma existente, sem tentar criar um idioma artificial “à prova de futuro”. Afinal, os idiomas reais têm culturas que os amam e sustentam, fornecendo aos decifradores do futuro uma enorme quantidade de indicações e significados.
Nos dias atuais, a escrita cuneiforme vem experimentando um renascimento, com uma jovem geração de iraquianos aprendendo e experimentando essa escrita. E um sentimento similar vem dando nova vida aos hieróglifos maias. Falantes nativos dos idiomas maias usam os hieróglifos para fazer arte e construir novas estelas para celebrar eventos importantes.
Essa conexão e companheirismo entre seres humanos separados por longos períodos de tempo talvez seja a etapa final de uma mensagem criada para a eternidade. Não importa o quanto nos esforcemos, só podemos confiar que, no outro lado da linha, haverá no futuro outra pessoa, ouvindo nossa voz fraca e com disposição suficiente para prestar atenção no que estamos dizendo.
Crisostomo relembra frequentemente este ponto enquanto trabalha com as tábuas antigas, algumas marcadas pelas digitais dos escribas mortos milênios atrás.
“Às vezes, você se senta ali, coloca seu polegar exatamente no mesmo lugar e pensa ‘talvez esta pessoa estivesse segurando esta tábua desta mesma forma, 4.000 anos atrás, segurando e escrevendo — e eu estou aqui sentado, lendo o que eles escreveram’.”
Sophie Hardach é autora do livro “Languages are Good for Us” (“Os idiomas são bons para nós”, em tradução livre), sobre os estranhos e maravilhosos usos dos idiomas pelos seres humanos ao longo da história.