Do picadeiro ao cinema: a história de Benjamim de Oliveira, o palhaço negro do Brasil
Numa manhã de 1889, Antônio Freitas, o palhaço Freitinhas, acordou doente. Sem condições de apresentar seu número, teve que ser substituído. Um dos donos do circo, Albano Pereira, não pensou duas vezes. Diante da desistência de outros possíveis candidatos, que preferiram pedir demissão a serem escolhidos para fazer graça, declarou: “Já sei! O moleque Benjamim vai fazer o palhaço!”.
O tal Benjamim, coitado, tremeu da cabeça aos pés. “Se não fosse preto, teria ficado pálido”, recordou, em entrevista ao livro Esses Populares Tão Desconhecidos (Raposo Carneiro, 1963), do jornalista Brício de Abreu (1903-1970).
O jovem Benja, como era chamado, ainda tentou convencer Frutuoso, o sócio da companhia, de que não era a escolha certa para arrancar gargalhadas do público. De nada adiantou. Logo em sua primeira noite como palhaço, recebeu vaias e assobios. Na noite seguinte, foram ovos e batatas…
“Não foi vaiado porque era negro. Foi vaiado porque era sem graça!”, revela Ermínia Silva, doutora em História Social da Cultura pela Universidade de Campinas (Unicamp) e autora dos livros Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil (Atlanta, 2007) e Respeitável Público… O Circo em Cena (Funarte, 2009).
“Hoje em dia, cada artista tem um número específico, mas, naquele tempo, todo mundo fazia de tudo. De noite, ganhava o aplauso do público, mas, de dia, limpava bosta do cavalo. Não havia privilégios”.
Circo de horrores
Benjamim de Oliveira, nome artístico de Benjamim Chaves, nasceu em 11 de junho de 1870, em uma fazenda de Pará de Minas, a Fazenda dos Guardas, a 86 quilômetros de Belo Horizonte (MG).
Era o quarto filho de um capitão do mato, Malaquias Chaves, com uma escrava doméstica, Leandra de Jesus. Ao todo, o casal teve nove filhos, “todos alforriados ao nascer”, segundo o próprio Benjamim.
Sua infância, de engraçada, não teve nada: levava surra do pai “quase que diariamente”. Tantas que, quando tinha 12 anos, resolveu fugir com o primeiro circo que apareceu: o Sotero.
Bem, circo é força de expressão. O Sotero era, na verdade, uma pequena caravana de artistas que se locomovia pelo interior de Minas em carroças e carros de boi.
Lá, aprendeu seus primeiros números de trapézio e acrobacia, e permaneceu por quase três anos. Mas, como o dono do circo, Sotero Ricardo Ferreira Villela, também lhe batia, fugiu de novo.
Chegou a viver com uma trupe de ciganos liderada por um velhote chamado Marcos. Um de seus filhos, Trajano, decidiu vender Benjamim como escravo ou, então, trocá-lo por um cavalo. Foi salvo por Jandira, filha de Marcos e irmã de Trajano, que contou tudo a Benjamim.
Com pena do rapaz, a cigana bolou um plano para salvá-lo. Quando tossisse duas vezes, era sinal de que o pai e o irmão estavam dormindo. Nisso, Benjamim conseguiu escapar.
Até ser contratado por Frutuoso e, finalmente, estrear como palhaço, Benjamim de Oliveira passou por altos e baixos. Mais baixos do que altos. Foi preso algumas vezes. E precisou escapar outras tantas. Numa delas, foi capturado por um fazendeiro que achou que ele tivesse fugido de alguma senzala. Para provar que não era escravo, improvisou um número de acrobacia. Deu certo.
O sobrenome de Benjamim era Chaves, o mesmo de seu pai. O Oliveira é uma homenagem que prestou a Severino de Oliveira, artista circense que lhe ensinou boa parte de seus números circenses.
O palhaço e o marechal
Benjamim de Oliveira não é o primeiro palhaço negro do Brasil. Houve outros antes dele. Como Eduardo Sebastião das Neves (1874-1919), o Diamante Negro. E depois também.
Mas, foi, certamente, um dos mais versáteis: soltava a voz, tocava instrumentos, sabia dar saltos, cambalhotas e piruetas e, ainda, dançava maxixe, lundu e modinhas, entre outros ritmos…
Por essas e outras, começou a receber cartas, convites e telegramas para trabalhar em outros circos. Em 1890, foi contratado pela companhia de Antônio Amaral por um salário inicial de 4 mil réis por dia. Em apenas dois anos, já ganhava quase oito vezes mais: 30 mil réis por dia.
Benjamim de Oliveira não parava quieto em um mesmo circo por muito tempo. Logo, se transferiu para a companhia de Manuel Gomes, o Comendador Caçamba.
Em setembro de 1893, depois de uma apresentação em Cascadura, subúrbio do Rio, o Comendador Caçamba recebeu a visita de um espectador que, entre outros elogios, enalteceu o número do palhaço e, em seguida, lhe deu uma nota de 5 mil réis. O dono do circo ficou tão agradecido com a doação que, no calor da emoção, nem reconheceu o presidente Floriano Peixoto (1839-1895).
Uma curiosidade: o caçula do “Marechal de Ferro”, José Floriano Peixoto Filho, depois de se apaixonar por uma bela trapezista, também fugiu com o circo. Mais que isso. Entre 1915 e 1940, Zeca Floriano chegou a dirigir o próprio circo, o Pavilhão Floriano. Benjamim se apresentou lá, com seu violão, no dia 27 de julho de 1921.
Em pouco tempo, Benjamim de Oliveira conquistou outros admiradores famosos: do escritor Artur Azevedo (1855-1908), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL); ao ator Procópio Ferreira (1898-1979), um dos grandes nomes do teatro brasileiro, que o apelidou de “Mestre de Gerações”.
Como dramaturgo, Benjamim escreveu peças, como O Colar Perdido, O Punhal de Ouro e Os Bandidos da Rocha Negra, e adaptou outras, como A Viúva Alegre, do compositor austríaco Franz Lehár (1870-1948).
“À princípio, Artur Azevedo não aceitava a participação de artistas circenses em produções teatrais. Dizia que o teatro estava sendo invadido por saltimbancos. No entanto, se rendeu ao talento de Benjamim e elogiou sua atuação”, explica o pesquisador Daniel Lopes, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do portal Circonteúdo — O Portal da Diversidade Circense.
Por volta de 1896, quando estava em Ribeirão Preto (SP), conheceu e se apaixonou por Victória Maia, a filha de um lavadeira. Os dois se casaram em 1914.
Muito além do picadeiro
Benjamim de Oliveira morreu em 3 de maio de 1954, aos 84 anos. “Quase na penúria”, escreveu o escritor e acadêmico Antônio Torres em O Circo no Brasil (Funarte, 1998).
A historiadora Ermínia Silva rebate essa informação. “Benjamin de Oliveira não morreu na miséria. Morreu na casa da filha, onde era muito bem tratado. É um equívoco achar que todo artista tem que morrer na miséria”, protesta.
Ermínia Silva, aliás, é da quarta geração de uma família circense. Seu pai, Barry Charles Silva (1931-2012), foi domador, palhaço e trapezista. “Passava minhas férias escolares sob a lona do circo”, recorda.
A primeira vez que Ermínia ouviu falar de Benjamin de Oliveira foi durante sua pesquisa de mestrado.
“Não saberia dizer se o fato de ele ser negro contribuiu para seu esquecimento. Acredito que o fato de ser circense pesou mais. Sempre houve preconceito e discriminação. À noite, os artistas lotavam o circo. Mas, de dia, eram vistos como vagabundos e prostitutas. Fugir com o circo, aliás, era sinônimo de viver em liberdade. Isso criou a falsa ideia de que artista de circo não trabalha”.
Foram muitas as viagens até Pará de Minas — a primeira delas em 2000. Na terra natal de Benjamim de Oliveira, Ermínia conheceu e fez amizade com Jaçanan Cardoso Gonçalves e Juyraçaba Santos Cardoso, netos do palhaço, e Jaciara Gonçalves de Andrade, sua bisneta.
Não satisfeita, ainda pesquisou em jornais e revistas de época, desde 1870, quando Benjamim de Oliveira nasceu, até 1954, data de sua morte.
Sua tese de doutorado, As Múltiplas Linguagens na Teatralidade Circense — Benjamim de Oliveira e o Circo-Teatro no Brasil, No Final do Século XIX e Início do XX, virou livro, Circo-Teatro: Benjamin de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil, lançado originalmente pela Editora Atlanta em 2007 e relançado em 2022 pela Martins Fontes.
“O Benjamim de Oliveira foi muito além do picadeiro. Gravou discos, escreveu peças, atuou em filmes… Até organizar um campeonato de capoeira em 1913, quando era proibida por lei, ele organizou”, explica Ermínia.
“Quanto à questão racial, Benjamim não levantava bandeiras, mas era um ativista. Chegou a montar um espetáculo em homenagem a João Cândido, o Almirante Negro.”
O maior espetáculo da Terra
As homenagens ao “maior palhaço do Brasil”, como descreveu um jornal da época em seu obituário, não pararam por aí. Benjamim de Oliveira já foi tema de dois desfiles de escola de samba: O Beijo Moleque da São Clemente, do carnavalesco Mauro Quintaes, em 2009, e O Rei Negro do Picadeiro, do carnavalesco Alex de Souza, em 2020.
A São Clemente terminou o desfile em quarto lugar e a Acadêmicos do Salgueiro, em quinto.
O título do samba-enredo da São Clemente, aliás, se refere a um de seus muitos apelidos: “Moleque Beijo”.
Depois de ser representado no desfile do Salgueiro pelos atores Aílton Graça e Nando Cunha e pelo humorista Hélio de La Peña, Benjamim de Oliveira deverá ser interpretado no cinema por Leandro Firmino.
Famoso por dar vida ao bandido Zé Pequeno no filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, o ator é o mais cotado para protagonizar o longa-metragem de Luís Lomenha.
Ainda não há previsão de estreia, mas o roteiro já está quase pronto. O título provisório é Mister Benjamim.
“Nós, negros, nascemos livres. Mas, não sabemos se continuaremos livres até o fim de nossas vidas. Temos visto, pelo Brasil afora, exemplos assustadores de trabalho escravo: na lavoura, garimpo, futebol…”, adianta o diretor Luís Lomenha que está desenvolvendo o roteiro em parceria com Igor Verde e Bruna Maciel e pretende adaptá-lo aos dias de hoje.
“Mais do que um palhaço, foi um empreendedor. Revolucionou o jeito de fazer circo no Brasil.”
Entre outras homenagens, o mais importante palhaço negro do Brasil ganhou livro infantojuvenil, Benjamim, o Filho da Felicidade (FTD, 2007), escrito por Heloísa Pires Lima; estátua em sua cidade natal, esculpida pelo artista plástico Alexandre Pinto; e exposição cultural, a Ocupação Benjamim de Oliveira, organizada pelo Itaú Cultural, que reuniu 120 peças, entre fotos, vídeos e documentos.
“Quando morreu, Benjamim de Oliveira não estava na miséria ou em situação precária. Romantizam muito a morte dele. No entanto, morreu sem o reconhecimento que merecia. Pela importância que teve, morreu no esquecimento. Precisamos dar mais valor aos artistas de circo”, afirma o pesquisador Daniel Lopes.