Qual a origem do inferno no Cristianismo e em outras religiões

Hades griego.
Ilustração de Hades segundo crença grega — submundo para onde iriam almas depois da morte

Por: Alejandro Millan Valencia

“Por mim se vai das dores à morada,

Por mim se vai ao padecer eterno,

Por mim se vai à gente condenada. […]

No existir, ser nenhum a mim se avança,

Não sendo eterno, e eu eternal perduro:

Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”

Essa inscrição encontra-se na parte superior da porta que leva ao inferno segundo o relato imaginário do escritor e poeta florentino Dante Alighieri (1265-1321) em sua obra-primaA Divina Comédia (os versos acima fazem parte da tradução de José Pedro Xavier Pinheiro).

O relato do famoso escritor italiano é uma expressão simbólica da crença cristã de que o inferno é um lugar horrível onde os pecadores são severamente punidos.

O mais curioso é que na Bíblia quase não há menção ao inferno como um lugar de castigo e tortura.

Em vez disso, a ideia de inferno como o conhecemos é uma combinação de diferentes tradições e lendas que vão desde o conceito da vida após a morte que os egípcios tinham até a de Hades dos gregos e aos mitos fundadores dos babilônios.

“O inferno como um lugar cheio de fogo e demônios que castigam os pecadores é um conceito exclusivo da tradição judaico-cristã, mas se forma a partir da sistematização de histórias e ideias que surgiram no que conhecemos como Crescente Fértil”, explica Juan David Tobón Cano, historiador e teólogo da Universidade San Buenaventura, na Colômbia, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

Tobón assinala que a ideia de inferno surge conforme o ser humano tem dificuldade de explicar o caos.

“Na observação do Universo, começaram a ser percebidos fenômenos compreensíveis — tempestades, terremotos, etc. — e começaram a vincular isso ao submundo”, diz.

Todas essas ideias culminaram em crenças na vida após a morte nas civilizações egípcia e mesopotâmica, então adotadas pelos primeiros hebreus.

Nuvens amarelas e pretas
‘Na observação do Universo, começaram a ser percebidos fenômenos compreensíveis — tempestades, terremotos, etc. — e começaram a vincular isso ao submundo’, explica teólogo Juan David Tobón Cano

Sean McDonough, professor no Instituto Teológico Gordon-Conwell, nos Estados Unidos, explica que “nas primeiras versões da Bíblia hebraica, essa noção de um lugar para onde vão os mortos tem um nome: Sheol. Mas esse é um lugar para onde vão os mortos, nada mais acontece”.

“Aos poucos, o conceito absoluto de Sheol vai mudando. De local de mortos, passou a ser considerado um local temporário”.

“Depois de um tempo ali, os mortos que haviam sido justos e cumpriram a lei iam para a presença de Deus, ao passo que os que não o fizeram iam para um lugar repleto de fogo purificador, conhecido como Gehena.”

Esse ponto é fundamental para se entender as diferenças que vão surgindo nas percepções sobre a vida após a morte.

Segundo Tobón, “uma das grandes diferenças entre o judaísmo e as outras religiões é que eles acreditam que Deus faz uma aliança com eles e faz isso por meio de uma lei, que são os dez mandamentos”.

“Isso cria o conceito de recompensa e punição ‘divinas’. Aqueles que obedecem à lei serão recompensados ​​e aqueles que não o fizerem serão punidos. Isso não era tão evidente em outras culturas.”

McDonough destaca que o próprio Jesus enfatiza o inferno como lugar de punição.

“Jesus menciona uma ‘fornalha ardente’ onde os ímpios sofrerão tristeza e desespero e onde haverá ‘choro e ranger de dentes'”, descreve McDonough.

“Essas palavras serão fundamentais para o conceito de inferno que veremos na Idade Média e que continua até hoje.”

Dante, o inferno total

Ilustração de várias 'camadas' do inferno
Inferno retratado por Dante em A Divina Comédia uniu visões medievais sobre submundo

Os especialistas esclarecem que a palavra latina infernum começa a aparecer nas primeiras traduções do hebraico e do grego para o latim.

A palavra passa pouco a pouco a substituir termos como Sheol e Hades, que são claras referências de civilizações antigas ao submundo.

Tobón explica que os primeiros cristãos incorporaram na nova religião o pensamento grego.

“Um elemento que eles incorporam é o conceito platônico de que o ser humano é composto de corpo e alma — e esse será o princípio que [resulta na ideia de que] as almas deverão ir para algum lugar após a morte”, afirma.

Começa então uma discussão teológica que, por volta do século 6, acaba consolidando a ideia de que o inferno é um lugar onde as almas impenitentes sofrem castigo por toda a eternidade.

“Deve ficar claro que, segundo [a interpretação dos] os teólogos, o principal castigo é não estar na presença de Deus. O fogo e a tortura são algo mais simbólico”, diz McDonough.

E esse conceito de um lugar cheio de horrores acaba se disseminando com a obra de Dante Alighieri no século 14.

“Não é que Dante defina o que é o inferno, mas sim que ele reúne de forma magistral todas as noções que existiam naquela época sobre esse lugar e digamos que estabelece um lugar-comum: é um lugar onde se sofre eternamente”, explica Tobón.

Com o tempo, e como resultado da reação dos fiéis e da influência de diferentes correntes teológicas, a definição de inferno foi se transformando.

O Catecismo da Igreja Católica, por exemplo, diz: “A doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, ‘o fogo eterno’.”

Outras crenças

Grande lagoa azulada dentro de caverna
Cenotes, enormes poços presentes no México, eram considerados porta de entrada para submundo maia

Os especialistas entrevistados pela BBC News Mundo avaliam que as versões do submundo em outras religiões e culturas correspondem mais a um lugar onde as almas descansam do que a um lugar de punição.

Por exemplo, no budismo existe um lugar conhecido como Naraka — um submundo e lugar de tormento.

Mas geralmente não são lugares definitivos, e sim um espaço transitório.

No Islã, o Alcorão fala em um “lugar de fogo” em diferentes ocasiões, e existe uma tradição de que almas infiéis irão para Jahannam, uma versão do inferno.

Tobón lembra também de exemplos vindos de povos nativos do continente americano, como o Xibalbá, o submundo maia a que se chega por meio de enormes poços de água conhecidos como cenotes.

“É o submundo, onde há tormento, mas não é um castigo por não se cumprir a lei de um deus, é o lugar para onde vão todos os homens após a morte”, explica.

“Já para os muíscas (ou chibchas), que viveram na Colômbia, o submundo era um lugar belo — na realidade, ele é descrito como um lugar ‘tão verde como a cor das esmeraldas’.”

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