Saque ‘Viagem ao Fundo do Mar’ vira documentário
Jogar a bola para o alto, saltar, quebrar o pulso e golpeá-la quando ainda estiver acima do nível da rede. Nos treinos da Pirelli, em Santo André, essa era apenas mais uma brincadeira após o fim do treino. Batizada depois, pelo locutor Luciano do Valle, como “saque viagem ao fundo do mar”, essa forma de repor a bola em jogo, passados 30 anos, tornou-se padrão no vôlei, revolucionou o esporte e motivou o publicitário Giuliano Zanelato a filmar o documentário “Viagem – o Saque que Mudou o Vôlei”, que será lançado nesta terça-feira, na Sala Cinemateca, em São Paulo.
A brincadeira começou no início da década de 80 e foi utilizada em quadra na final do Campeonato Brasileiro de 81 ou 82 – ninguém mais lembra com precisão – contra o time da Atlântica Boavista, do Rio. O então técnico da seleção brasileira, Bebeto de Freitas, apostou na sua utilização como arma estratégica nos Jogos Olímpicos de 84, em Los Angeles. O Brasil acabou derrotado por 3 a 0 na final pelos Estados Unidos, o que deixou um gosto amargo até hoje. Mas o orgulho por transformar radicalmente o fundamento, reavivado pelo lançamento do filme, ainda estufa o peito de William, Renan e Montanaro, os criadores do saque.
Ninguém sabe ao certo quem jogou a bola para o alto pela primeira vez para sacar daquele jeito. Também é possível que alguém tenha tido antes a ideia de sacar saltando em algum lugar do mundo, mas a prática foi mesmo sistematizada pela chamada “geração de prata”, que chegou ao segundo degrau do pódio no Mundial de 82, na Argentina, e nos Jogos de 84.
“O grande segredo da nossa geração é que a gente sempre brincava muito depois dos treinos. Ficávamos inventando jogada, jogando a bola pra cá e pra lá, e sempre um querendo sacanear o outro. Uma dessas invenções foi esse saque”, recorda William, que era capitão da seleção brasileira naquela época.
O então técnico da Pirelli, José Carlos Brunoro – que hoje ocupa o cargo de diretor executivo do Palmeiras, autorizou os brincalhões a sacar saltando nos jogos oficiais, depois de muito insistir para que parassem, temendo o risco de que torcessem o pé. Mas foi Bebeto de Freitas que enxergou o valor estratégico daquela criação. “Quem assumiu o risco do saque viagem na seleção foi o Bebeto. A nossa equipe era muito baixa (média de altura de 1,87m em 84) perto dos times do Leste Europeu. Éramos menores até do que os asiáticos. Então ele achava que uma das forças que a gente tinha era não só o ‘viagem’ como ataques do fundo de quadra. Lembro que ele insistia pra gente arriscar bastante – e deu certo”, recorda William.
Criado por Bernard, o saque “jornada nas estrelas”, assim batizado também por Luciano do Valle, é o que mais chamava a atenção dos torcedores, que enlouqueciam quando o camisa 12 arregaçava as mangas compridas e ia ao fundo da quadra. Mas o “viagem” é que resistiu ao tempo, e hoje é usado praticamente por todos os atletas, e até por parte das jogadoras.
“O ‘jornada’ precisava de ginásios altíssimos. Era basicamente um balão lançado bem para o alto. O ‘Viagem’ se tornou muito mais efetivo”, diz Bernardinho, que era reserva de William na seleção e levantador do time da Atlântica.
William acredita que o “viagem” é hoje o fundamento que viabiliza o vôlei. “A regra hoje permite que se receba o saque com toque. Se a bola fosse apenas reposta, não haveria jogo, e a equipe que recebe o saque seria sempre beneficiada”.
Na Olimpíada, o Brasil derrotou os EUA por 3 a 0 na fase classificatória, e Karch Kiraly, hoje reconhecido como o melhor jogador de todos os tempos, reconhece que o saque brasileiro surpreendeu o sistema de recepção montado por Doug Beal.
Na final, infelizmente, o resultado se inverteu: 3 a 0 para os donos da casa. “Caiu a nossa eficácia. A gente também discutiu antes do jogo. Ficamos nervosos”, admite Montanaro.
“Foi difícil de digerir aquela derrota. Mas hoje vemos que, para alguém ser campeão olímpico, o projeto tem que estar maduro. Nossa campanha foi o ponto de partida”, diz Renan.