A ‘invasão’ dos famintos

Em 1877, cem anos depois da última seca prolongada no Ceará, praticamente não caiu água do céu entre janeiro e março. Sem gado e sem colheita, teve início um grande êxodo dos sertões em direção à capital, Fortaleza.

Ao contrário do que pregava parte dos intelectuais na capital do Império, o Rio de Janeiro, a chuva também não veio nos meses seguintes. E as fileiras de migrantes engrossaram com um exército de famintos.

Fotos de retirantes cearenses em Fortaleza durante a Grande Seca

Os refugiados eram fotografados em estúdio em Fortaleza; a Grande Seca foi a primeira registrada dessa maneira | Foto: Biblioteca Nacional

“Morria-se de fome, puramente de fome nas ruas da cidade, pelas estradas”, escreveu o médico cearense Barão de Studart.

Desesperados, os retirantes comiam o que encontravam pelo caminho — inclusive vegetais venenosos que lhes acabavam tirando a vida.

“Depois de alimentar-se de raízes silvestres (especialmente da mucunã), de algumas espécies de cactus (chique-chique, mandacaru) e bromélias (coroatá, macambira), do palmito da carnaúba e de outras palmeiras, das amêndoas e entrecasca do cocos, o faminto passara a comer as carnes mais repugnantes, como a dos cães, a dos abutres e corvos, e a dos répteis.”

Em dezembro de 1877, 80 mil haviam chegado a Fortaleza, número quatro vezes maior que a população da capital, 19 mil.

Uma multidão que ficava na rua, nas praças, sob a sombra dos cajueiros, como descrevem os livros da época.

O Ceará, além da província mais afetada, é também a que melhor manteve registros estatísticos da migração dos retirantes e do clima. Os únicos dados disponíveis sobre os índices pluviométricos do nordeste no período, por exemplo, vêm da estação climatológica de Fortaleza, diz a pesquisadora Deepti Singh.

No entanto, documentos e jornais da época contam como a seca prejudicou também as províncias vizinhas.

Os governos de Pernambuco e Alagoas, por exemplo, se desentenderam porque ambos julgavam não ter responsabilidade sobre um contingente de 9 mil retirantes concentrados na fronteira. Alagoas dizia que os migrantes só estavam ali porque tentavam chegar ao depósito de alimentos pernambucano instalado em Taracatu; Pernambuco alegava que, tecnicamente, as pessoas ainda estavam em solo alagoano.

O historiador Roger Cunniff, que esteve no Brasil na década de 1960 para pesquisar o tema, relatou este e outros episódios em The Great Drought: Northeast Brazil, 1877-1880 (“A Grande Seca: Nordeste do Brasil, 1877-1880”, em tradução livre).

Em outro trecho, ele narra o desespero de migrantes que cruzam o rio São Francisco de Pernambuco para a Bahia, menos afetada pela seca do que as demais, e invadiam as fazendas para pedir esmolas e roubar.

“Era uma crise de refugiados”, disse à BBC News Brasil Dain Borges, professor do departamento de História da Universidade de Chicago e pesquisador dos séculos 19 e 20 na América Latina.

Fotos de retirantes cearenses em Fortaleza durante a Grande Seca

As fotos dos famintos eram acompanhadas de poemas sobre a seca e se transformavam e cartões postais, para sensibilizar a população do sul | Foto: Biblioteca Nacional

Se tornaram emblemáticas as imagens chocantes de homens, mulheres e crianças esquálidas feitas dentro do estúdio do fotógrafo Joaquim Antonio Corrêa em Fortaleza.

Ele trabalhou na época com o jornalista José do Patrocínio, enviado pela Gazeta do Rio de Janeiro para o Ceará, de onde narrava a seca sob a rubrica “Viagem ao Norte”.

Segundo o professor do departamento de História da Universidade Estadual do Ceará (UECE) Gleudson Passos, essa foi a primeira vez que uma seca foi registrada em fotografias no Brasil.

A ideia de expor e explorar a miséria dos retirantes era sensibilizar a opinião pública e alertar para a gravidade dos fatos que se desenrolavam nas chamadas províncias do Norte, que parte dos brasileiros do sul do país achava ser exagero.

Os jornais contavam histórias de mulheres que se prostituíam por um prato de comida, de pais que vendem e até mesmo comiam os próprios filhos.

“Se bestializava os miseráveis nessas descrições, inclusive naquelas que querem criar empatia e misericórdia com o retirantes”, disse à BBC News Brasil a professora do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) Verónica Secreto.

Montagem de anúncios do jornal Gazeta de Notícias sobre bailes beneficentes e arrecadações para os afetados pela seca

Na capital imperial, a alta sociedade organizava bailes, peças de teatro e concertos em benefício aos afetados pela fome | Fotos: Biblioteca Nacional

A “campanha para sensibilizar finalmente a corte” deu certo. Na capital do Império e nas províncias do Sul, comitês passaram a organizar bailes e banquetes beneficentes em favor das “vítimas da seca”, que suplementassem o auxílio do governo.

A tragédia virou inclusive notícia na imprensa internacional. A Scribner’s Magazine de Nova York chegou a enviar um correspondente ao Ceará para cobrir a seca.

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