A surpreendente descoberta que muda o significado de uma obra de um dos maiores artistas da história
Dalia Ventura
Foi um presente. Em 1742, pela compra de 30 pinturas da coleção particular do príncipe de Cariñena em Paris para o acervo do príncipe da Saxônia e rei da Polônia Augusto, o Forte, ele foi presenteado com uma pintura… e que pintura: nada menos do que um Rembrandt!
Assim a obra foi apresentada ao secretário saxão encarregado da transação e identificada ao chegar a Dresden, hoje na Alemanha.
Era um quadro primoroso que mostrava uma jovem loira, banhada pela luz que entrava por uma janela, entregue a um dos atos mais íntimos: a leitura de uma carta.
Apesar de ter invadido a privacidade da moça, o pintor a protegeu, inserindo uma mesa e tirando do cômodo quem se intrometera, obrigando o observador a ficar atrás de uma cortina aberta. A partir dessa distância segura, se certificou de que todos compartilhassem o momento que capturou sem que ninguém interferisse em seu encanto.
Era evidentemente a obra de um gênio, mas talvez não aquele considerado o artista mais importante da história da Holanda.
Quando apareceu pela primeira vez em um inventário, em 1747, o quadro foi descrito como uma pintura “ao modo Rembrandt” e, posteriormente, atribuído a outros artistas da escola do mestre holandês e da cidade de Delft. Passariam séculos até que a verdade fosse revelada.
Por quê?
Simplesmente porque, após sua morte, Johannes Vermeer havia, em grande parte, caído no esquecimento, principalmente fora da Holanda.
A verdade é que Vermeer nunca havia alcançado grande fama, embora tenha tido um sucesso moderado e fosse admirado pelo tratamento magistral da luz em suas pinturas. Mas ele era apenas um dos muitos artistas da chamada Idade de Ouro Holandesa, em que as Províncias Unidas dos Países Baixos vivenciaram uma extraordinária prosperidade política, econômica e cultural.
Se destacar entre tantos era difícil, sobretudo para um pintor que trabalhava devagar: especialistas estimam que Vermeer não concluiu mais de 60 obras ao todo, um número insignificante para os padrões do século 17. Seu contemporâneo Rembrandt, ao contrário, produziu centenas de pinturas, além de incontáveis gravuras e desenhos.
Após sua morte em 1675, aos 43 anos, o nome de Johannes Vermeer foi desaparecendo da história. O fato de mal ter sido mencionado no principal livro de referência sobre a pintura holandesa do século 17, o condenou a ser omitido nas versões posteriores da história da arte por mais de um século.
A ‘Esfinge de Delft’
Finalmente, na década de 1790, o principal negociante, crítico e conhecedor de arte francês, Jean-Baptiste Pierre Le Brun, escreveu: “Esse Van der Meer, sobre quem os historiadores não falaram, merece atenção especial.”
A opinião dele apareceu em Galerie des peintres flamands, hollandais et allemands, um informe abrangente de pintores de escolas do norte publicado para orientar os amantes e colecionadores de arte.
Mas, acima de tudo, o desejo de Le Brun era reivindicar os mestres desconhecidos cujos nomes haviam sido esquecidos. E “Van der Meer”, ou Vermeer, o cativou como nenhum outro.
Seu respaldo foi transformador. A obra do artista falecido há mais de cem anos passou a ser apreciada como nunca. E ainda mais quando, no século 19, o influente historiador de arte e crítico francês Théophile Thoré entrou em cena, escrevendo sob o pseudônimo de William Burger por razões políticas.
Desde o seu primeiro encontro com Vista de Delft no Museu de Haia, na Holanda, por volta de 1842, o “quadro estranho” com “uma paisagem soberba e incomum” o surpreendeu tanto que ele deu início a um tour espetacular pelas coleções de arte europeias, com o objetivo de analisar pinturas que pudessem ser atribuídas ao artista enigmático que cada vez mais o seduzia.
Seus esforços para recuperar a obra daquele que apelidou de “Esfinge de Delft” — pelo pouco que se sabe sobre ele — foram combinados com a acolhida da boemia parisiense, entre a qual a arte sutil de Vermeer encontrou seu público natural.
Na década de 1650, o artista havia se convertido em um “pintor de gênero” ou “costumes”, retratando a vida cotidiana. Duzentos anos depois, os artistas da era de Manet também voltaram seu olhar para o real e despretensioso. Havia chegado a hora de o mundo tranquilo e introspectivo de Vermeer brilhar.
Enquanto isso…
Na Gemäldegalerie Alte Meister (Galeria de Pinturas dos Mestres Antigos) de Dresden, a Moça lendo uma carta à janela seguia imutável. Em 1859, Thoré conseguiu confirmar sua hipótese de que se tratava de uma obra de Vermeer e que, inclusive, estava assinada.
No entanto, alguns observadores notaram um detalhe curioso na parede nua ao fundo: se via claramente contornos escurecidos que pareciam a sombra projetada por uma tela pendurada. Teria havido alguma vez um quadro pendurado ali, como em outras de suas obras?
Em 1979, uma radiografia mostrou que havia de fato uma imagem oculta dentro do quadro: um cupido nu que adornava a parede. Por que havia sido apagado? Talvez porque assim ditavam os gostos da época; quem sabe, para subtrair o erotismo da obra. Ou, de repente, por um mero capricho. Continua sendo um mistério difícil de desvendar.
Ainda mais importante era determinar se foi Vermeer quem empunhou o pincel que escondeu o deus do amor erótico e do desejo da mitologia clássica. Era possível.
No fim das contas, estudos revelaram que ele testou pelo menos três versões diferentes da composição final e pintou vários elementos que depois descartou, desde uma taça de vinho que é claramente visível por raios-X no canto inferior direito até outra cadeira no estreito espaço entre a beirada frontal da mesa e a borda inferior da pintura, cujos contornos são visíveis em imagens infravermelhas.
É por isso que, embora se soubesse da existência do cupido, o mesmo permaneceu oculto por quase mais quatro décadas: se o artista havia decidido eliminar aquele quadro-dentro-do-quadro de sua obra, ninguém tinha o direito de ir contra seus desejos.
A tecnologia responde
Em 2017, teve início um projeto de avaliação e restauração, apoiado por um painel de especialistas internacionais, no qual foram realizados ou reavaliados raios-X, espectroscopias de refletância do infravermelho próximo e microscopias da pintura a óleo.
Quando começaram a remover as camadas de verniz do século 19, os especialistas em conservação descobriram que as “propriedades de solubilidade” da pintura na parte central da parede eram diferentes daquelas do resto da pintura.
Após mais investigações, constataram que havia camadas de agente aglutinante e uma camada de sujeira entre a imagem do cupido e a pintura. O enigma havia sido resolvido. As evidências mostravam que várias décadas se passaram entre a finalização de uma camada e a adição da seguinte. Não foi Vermeer quem apagou o cupido. Alguém fez isso após sua morte.
Em 2018, a Staatliche Kunstsammlungen Dresden, uma das instituições de museu mais antigas e reconhecidas do mundo, decidiu remover a camada pintada por cima. Como? Com um bisturi fino sob um microscópio.
O método é extremamente difícil e trabalhoso, mas os especialistas determinaram que somente assim seria possível manter a camada original de verniz aplicada por Vermeer.
Pouco a pouco
Assim era o quadro antes da restauração, e depois que o verniz foi removido:
Então, aos poucos, começou a se revelar o que estava na parede ao fundo quando a pintura saiu do ateliê de Vermeer.
E aqui está: um cupido de pé com um arco e flecha, enriquecendo a parede ao fundo do cômodo em que a moça lê sua carta.
Apesar do quadro ser quase tão grande quanto a própria jovem, o cupido, em vez de roubar a cena, dá uma sensação de harmonia. E a presença do deus do amor faz mais do que mudar a aparência e a sensação da pintura, também altera seu significado.
Durante décadas, se debateu qual poderia ser o conteúdo da carta. Antes de se ter conhecimento do quadro na parede, o historiador da arte Norbert Schneider, por exemplo, interpretou a janela aberta como um símbolo do mundo exterior, argumentando que a pintura representava o “desejo da moça de ampliar sua esfera doméstica”.
Quando o cupido foi descoberto, Schneider concluiu que a carta era de amor. E não qualquer amor, mas um amor proibido — e sincero, porque o deus do amor surge pisando em máscaras que jazem no chão, que representam o engano e a hipocrisia, símbolo de que o verdadeiro amor prevalece.
Para o diretor da Gemäldegalerie Alte Meister em Dresden, Stephan Koja, a obra “é uma declaração fundamental sobre a natureza do amor”.