“Hoje ser gay é uma característica, como a cor do cabelo, da pele ou a altura”

ImageProxy (5)

Talvez você ainda não tenha decorado o nome dele, mas certamente conhece o trabalho do santistaRafael Gomes , 29 anos. Formado em cinema, foi responsável há quase 10 anos pelo curta “Tapa na Pantera”, protagonizado pela atriz Alice Vergueiro , verdadeiro fenômeno na web, com mais de 5 milhões de visualizações.

Em 2010 ele se arriscou no teatro, escreveu e dirigiu a peça “Música para Cortar os pulsos”, e fez sucesso também com a crítica: ganhou o prêmio de melhor espetáculo jovem pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). A peça volta ao cartaz para curta temporada nos  palcos paulistanos e segue em turnê pelo estado e depois para Brasília.

“Música para cortar os pulsos” tem um protagonista gay. Preparando sua nova peça, também com temática LGBT, o diretor conversou com o iGay.

iGay: De onde veio a ideia de “Música para Cortar os Pulsos”?

Rafael Gomes : Originalmente a ideia era fazer um filme que retratasse situações em que a música representasse os sentimentos, que refletisse a pós-adolescência, aquele período em que não somos mais adolescentes, mas ainda não somos adultos também. Quando um amigo, depois de ler o texto, achou que tudo aquilo deveria ser dito em um palco, fizemos a peça. Ele inclusive virou assistente de direção.

iGay: Como se deu a seleção das músicas que compõem o espetáculo, houve a preocupação de selecionar canções que fugissem do lugar-comum gay?

Rafael : A seleção se deu de dentro pra fora, não queríamos simplesmente agradar, mas sim escolher o que precisávamos para retratar aqueles personagens. Por isso fizemos uma trilha variada, que vai de Zezé de Camargo e Luciano a The Smiths.

iGay: A história é centrada em um personagem homossexual apaixonado por um amigo heterossexual, que por sua vez está interessado em uma mulher. Quanto disso vem da sua história?

Rafael : Na verdade, a peça é um emaranhado de vida. Tem parte da minha história, mas também de muitos amigos e conhecidos. Ela não é uma obra do arquétipo romântico de “Romeu e Julieta”, mas tem várias situações presentes também em “Romeu e Julieta”. Sempre parti do personagem gay que se apaixona por um menino hetero. A partir daí veio a personagem feminina, que tem muito emprestado da Mayara Constantino, atriz que interpretou a Isabela até recentemente.

iGay: A história no fim das contas é um triângulo amoroso.

Rafael : É um triângulo que não é um triângulo, ou melhor, são vários triângulos. Temos a relação de amizade de Isabela e Ricardo, da paixão platônica de Ricardo por Felipe e, por fim, do relacionamento amoroso de Felipe com Isabela, então temos vários triângulos, o de amizade, o de relacionamento que não dá certo, o de relacionamento que não tem como dar certo, são vários tipos de amor.

“A peça tem vários triângulos, o de amizade, o do relacionamento que não dá certo, o do relacionamento que não tem como dar certo. São vários tipos de amor.

 

iGay: O relacionamento que não tem como dar certo é o do personagem gay com o hetero?

Rafael :  Sim, existe esse pensamento de que todo mundo é bissexual. Nem vou entrar no mérito Freudiano da coisa, mas sim do cultural: o homem gay tem muito isso de que a heterossexualidade é uma barreira transponível, e na maioria das vezes ela não é, e não tem nada de errado com isso. É uma questão de origem. Transpor e invadir essas barreiras é uma agressão.

iGay: Quando você diz transpor limites está falando sobre gays que tentam “pegar” heteros?

Rafael : Sim, exatamente isso, mas digo também do lado contrário, o menino hetero que não pode ver duas meninas se beijando na balada que quer entrar ali no meio, que acha que é farra. Às vezes pode ser, mas muitas vezes essas meninas são namoradas, têm um relacionamento que não envolve ninguém além delas. Barreiras existem e quebrá-las por tesão, paixão ou até bebedeira é uma agressão.

iGay: A peça foi selecionada por um programa do SESI para ser apresentada nos teatros das redes. Algumas dessas unidades ficam em escolas, como foi a reação desse público, principalmente fora do eixo Rio/SP?

Rafael: A peça é jovem, mas não somente adolescente, e sempre funcionou no universo do ensino médio, por exemplo (a partir dos 15 anos). Quando o público é mais novo do que isso raramente funciona, não é um mundo comum a eles – não por conta do personagem gay, mas por falta de contexto mesmo. Com um público adolescente no geral ia bem. Em algumas apresentações os meninos, principalmente na primeira cena, quando notavam que Ricardo é gay, gritavam alguma coisa, mas depois se acostumavam e assistiam tudo. Mas tudo normal, o clima era de excursão escolar, um grupo muito grande de adolescentes reunidos, tem sempre o que quer aparecer, tivemos uma ou outra apresentação em que eles não pararam, mas fomos levando.

iGay: E a reação do público adulto, como foi?

Rafael : Admito que fomos munidos, prontos para sofrer algum tipo de represália, e nos surpreendemos. Tínhamos ali alguns estereótipos, o heterossexual machão que estava ali por obrigação, que acabou chorando. E a senhora que no final, quando nos dispusemos a responder perguntas da plateia, começou a falar de religião e no fim das contas queria contar que achou aquela história uma história de amor ao próximo, como pregava sua fé. Isso foi bem bacana por sinal.

“Na plateia tinha alguns estereótipos, o heterossexual machão que estava ali por obrigação e acabou chorando e a senhora religiosa que no fim das contas achou aquela história uma história de amor ao próximo, como prega sua fé.

 

iGay: Você contou que a atriz cedeu parte de sua história para a personagem. E para o papel do Ricardo, você buscou atores gays para ter identificação?

Rafael : A Mayara é minha amiga, temos um casamento artístico que é inclusive retratado um pouco na peça, ela expôs o que quis de sua vida no papel. Quando fomos selecionar os atores, era indiferente a sexualidade deles. Sexualidade, é algo interno, não uma característica física aparente. Não vi porquê escolher um ator gay, inclusive todos os atores que passaram pela peça são heteros.

iGay: O personagem gay da peça foge de todos os estereótipos comuns na TV e no teatro, sem nenhum tipo de afetação. Isso foi proposital ou houve algum tipo de suavização durante a composição?

Rafael: Não tinha o que suavizar, porque o personagem nunca teve nenhum trejeito, nem cabia naquele papel. Ele é gay, está apaixonado por um menino heterossexual e é isso que me importa, pra mim era importante sublinhar o romantismo dele, o amor dele, e não a homossexualidade dele. Tivemos a preocupação de ter uma peça protagonizada por um gay, mas não necessariamente uma peça gay. Não temos dois rapazes sem camisa no pôster de divulgação da peça e nem no palco. Isso é um vitória cultural.

iGay: Como assim?

Rafael : Durante muito tempo, as peças e os filmes sobre gays retratavam figuras cômicas ou o processo de se descobrir ou se assumir gay. Hoje ser gay é uma característica, como a cor do cabelo, da pele ou a altura. A história poderia ser composta apenas de homossexuais, teríamos que mexer, obviamente, porque o mote do amor realmente impossível não seria tão forte, não teria a barreira do gênero, mas seria ainda uma história de amores.

iGay: Quais seus próximos projetos?

Rafael : A peça segue por mais algum tempo em turnê pelo interior de São Paulo e depois Brasília, com elenco todo renovado, mas eu já começo a me distanciar porque estou com mil outros projetos. O principal é a montagem da peça “Gotas D’Água Sobre Pedras Escaldantes”, do Fassbinder (Rainer Werner Fassbinder), que teve uma versão francesa para o cinema em 2000. O Rainer tem textos com temáticas sexuais e gays muito fortes, que me interessam bastante. Também tenho colaborado com a série “Louco por Elas”, que brinco ser o programa mais gay de todos. Vira e mexe entra um personagem gay. (iG)

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *